sexta-feira, 1 de agosto de 2008

SOBRE CIGARRAS E FORMIGAS



Era uma vez um grande Reino só de cigarras e formigas. As formigas eram muitas, bem mais do que as cigarras e estas, por sua vez, se julgavam mais fortes, bonitas, mais capazes, espertas, inteligentes, preparadas e trataram então de estabelecer as leis, as regras e normas para a vida cotidiana do Reino. E tudo parecia caminhar bem. Enquanto as cigarras habitavam suas casas enormes e muito confortáveis, cercadas de imensos jardins, lagos e cachoeiras, as formigas se amontoavam como podiam em pequenos buracos, onde famílias inteiras se ajeitavam nas noites de frio, depois de comerem as poucas folhas que sobravam dos lautos banquetes das cigarras-patroas.
Como começavam a acontecer alguns problemas em relação à enorme população de formigas. E já faltavam comida, escolas, remédios, diversão e outras coisas importantes. As cigarras resolveram formar uma Assembléia Geral e lá elaboraram um novo estatuto – um conjunto de leis e princípios constitucionais. Para continuar garantindo a paz, a serenidade , o conforto material e o ambicionado exercício do poder, e, lógico, pelo menos para elas, as cigarras, é claro.
As crianças formigas passaram a ser encaminhadas para as escolas das cigarras-professoras que eram cuidadosamente preparadas para repassarem as lições que elaboravam para o bom funcionamento do Reino. As formiguinhas achavam estranho, mas chamavam aquelas cigarras de Tias e cumpriam religiosamente todos os deveres que elas estabeleciam. E ficavam a cada dia, mais bobinhas, mais obedientes e submissas e nem se davam conta disso. Aos domingos, a quase totalidade das formigas e algumas cigarras desocupadas iam para as sinagogas onde eram catequizadas para ganharem o céu onde cigarras muito boazinhas iriam garantir que elas tivessem toda a alegria depois que partissem do Reino.
Elas ditavam o valor dos salários, o preço das coisas; administravam ao seu bel-prazer o dinheiro suado com que as formigas pagavam suas dívidas infinitas, os pesados impostos para sobreviverem ainda que miseravelmente. E, meio que por milagre, as cigarras estavam sempre mais ricas, cada vez mais bem vestidas, vistosas e elegantes. E as formiguinhas comendo pouco, se vestindo mal com o pouco dinheiro que ganhavam. Sempre tendo que trabalhar mais, descansar menos, aumentando drasticamente o sofrimento delas.
Assim, dia-a-dia, as cigarras iam ficando muito mais poderosas, donas de estabelecimentos comerciais, fábricas, escolas, ongs e sei lá mais o que. Onde as formigas eram obrigadas a trabalhar dia e noite. Retirando dali seu mísero sustento, esperando eternamente o tempo em que viveriam em paz sob a proteção daquelas cigarras boazinhas que só faziam o bem para todos.
Certa noite muito fria um bando de formigas quase morto de fome e frio resolveu assaltar um supermercado onde abundavam casacos, cobertores e toda a sorte de comidas. A guarda das cigarras reagiu , houve troca de tiros e infelizmente a formiga atingiu a cigarra que acabou morrendo. Foi um escândalo total. Só se falava no tal crime, o que levou as cigarras a se reunirem de imediato, e, sem muita discussão decretaram a pena de morte para todo e qualquer crime cometido pelas formigas que, afinal de contas, se tratava de seres minúsculos, de composição pouco complexa; bichinhos miseráveis e desprezíveis, sem a menor graça ou importância e que não fariam a menor falta, já que eram tantas.
No dia da execução da formiga criminosa todos se reuniram na praça para a grande festa. Como a ela estava magrinha, morreu fácil, fácil. E por toda a noite foi um grande carnaval para comemoração de cigarras e formigas. Pois afinal, estavam acabando o crime. Fazendo justiça e logo tudo se resolveria. Mas novos assaltos, crimes envolvendo formigas pobres, faveladas, pretas, estranhas, prostitutas, assassinas, adolescentes, drogadas, analfabetas continuaram a acontecer. Pois estas, famintas e desempregadas tinham de arranjar formas de alimentarem suas famílias. E claro, sempre acabavam presas, condenadas, executadas e mortas, com novas comemorações e novas festas.
Assim o Reino começou a ficar uma beleza; um grande silêncio. Sem formigas para sujar as ruas, depredar os prédios públicos, e, principalmente, cometer os assaltos e assassinatos terríveis e horripilantes. As escolas estavam vazias, os parques sem ninguém e então começou a faltar quem lavasse as preciosas roupas das cigarras. Quem limpasse suas casas, cozinhasse e passasse para elas. Quem trabalhasse para que a economia do Reino pudesse crescer e depositarem o lucro em suas contas no exterior, fazer passeios luxuosos, comprar iates, ilhas, apartamentos e mansões.
E se não tinham mais formigas, a quem as cigarras iriam explorar? Quem iria votar nelas para mantê-las no comando do Reino que parecia agora ser só de cigarras? De quem elas iriam confiscar as poupanças, cobrar os impostos de renda, sobre o trabalho, o consumo, o produto e impor pesadas taxas e multas? A quem elas iriam governar?
Desesperadas elas convocaram uma Nova Assembléia para destituir a pena de morte. Pois, senão, o Reino desapareceria em breve e elas não poderiam mais manter aquela vida cheia de luxo, prazeres e ostentação. E embora fosse sexta-feira e chovia bastante, todas as cigarras constituintes compareceram. Levando um discurso afiando e muito comovente, na ponta da língua. O plenário ficou lotado e continuou os trabalhos noite adentro, sem a menor demonstração de sono ou cansaço. Pois o assunto era da maior importância e dele dependeria a sobrevivência das cigarras-autoridades, suas famílias, suas castas e dependências.
Por fim, foram unânimes em abolir imediatamente a pena de morte, sob os auspícios do sagrado direito à vida e da responsabilidade de se defender com toda compaixão e o mais puro dos sentimentos e o sagrado direito à vida. Era preciso preservar a população de formigas, a quem as cigarras bondosas, honestas, sinceras e justíssimas, democraticamente representavam. E, para isso, inclusive, ganhavam altíssimos salários e tinham garantidas suas condições de vida, liberdade, conforto, segurança. Sendo, portanto, muito bom para elas. Que tudo fariam para se preservarem naquela situação privilegiada.
Tarde demais, não existiam mais formigas. Agora era um Reino só de cigarras. Só de autoridades. Desesperadas, enlouquecidas, humildes, piedosas e com os olhos rasos d’água começaram a trocar entre si, culpas e acusações. Procurando, sem esperanças ou perspectivas, alguma solução para o caos que tardiamente se instalara. Depois, em função da gravidade da situação, sentaram e começaram a realizar um grande planejamento para a nova fase de vida que, obrigatoriamente, começaria a partir dali.
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Antonio da Costa Neto


antoniocneto@terra.com.br

Um comentário:

Bruna Reis disse...

Bom texto,mais não era exatamente isso que eu gostaria.
Tchau,
Bruna