segunda-feira, 1 de outubro de 2012



HEBE CAMARGO E A SUA DELICADA HIPOCRISIA: UMA GRACINHA

 O Brasil, certamente, ficou bem mais empobrecido e triste com a morte da famosa e querida Hebe Camargo. E eu também. Sempre fui um telespectador assíduo de seus programas desde antes do SBT (e olha que já tem tempo) e sempre a considerei uma mulher e tanto. Arrojada, leve, elegante, com um humor afinadíssimo, muito inteligente, uma artista versátil, uma brasileira inquieta, etc. etc., o que não é, em definitivo, pouca coisa. 
Hebe Camargo como artista, como ser humano tem sim o seu valor que deverá figurar para sempre na história de nós brasileiros e também como figura marcante no mundo do espetáculo, da música e da TV, inclusive, internacionalmente. Digna da nossa saudade, do nosso encantamento, da admiração que o Brasil inteiro tem - e deve mesmo ter - por ela, e quem sabe, até o mundo. Na verdade, trata-se de um ser humano grandioso, que se vai, precocemente, em função da sua jovialidade, sua lucidez, sua vida, suas alegrias.
 Mas também... vamos lá, minha gente, será que ela era tão boa assim, tão merecedora deste jargão todo, consternação e encantamento? Ou será que somos mesmo ingênuos demais, tupiniquins demais e nos derretemos diante de quaisquer estereótipos de bem-avanturança, por vezes até falsos e falaciosos, que é com o que, a bem da verdade, Hebe Camargo chegou onde chegou e fez o que fez. Era uma dama, a diva da televisão brasileira, não resta dúvida. Mas também, havemos de admitir que era a rainha do morde e assopra, com o que agradou sempre a gregos e troianos e como toda unanimidade é burra, como dizia Nelson Rodrigues - este sim - trago comigo, no fundo do peito, junto com as lágrimas e as saudades que também sinto, algumas dúvidas e questionamentos.
D. Hebe Camargo foi sempre na televisão a grande protetora da pequena-burguesia. Fazia discursos arraigados e emocionantes contra a corrupção, a violência, as elites, mas, claro, sem dar nomes aos bois e, em seguida, desmanchando tudo o que fez por entre lágrimas ou gargalhadas, copões de cerveja que tomava  e deixava todo mundo estasiado, porque nunca arrotou, por maior que fosse a quantidade de cerveja que ingeria. Espetacular. E tudo isto constituia o seu discreto charme, que, por sua vez, fazia desencadear toda a admiração, o júbilo, o sucesso, o verdadeiro império material que constituiu durante sua prestimosa, laboriosa e ostentada existênica - me lembro aqui o famoso dito de que os caixões não têm gavetas. 
Hebe era exuberante, mesmo, em tudo; tanto para as bondades, quanto para o que não presta. Acabava de fazer um discurso emocionado, longo, aos gritos - ou melhor ainda aos berros - contra os políticos irresponsáveis, a ladroagem com o dinheiro do povo, as obras faraônicas. Limpava os olhos, fazia um vapt-vupt que plagiava de Chico Anísio. No intervalo, ela retocava a maquiagem e recebia Paulo Maluf e sua Sylvia, para entre abraços e beijos se esquecer e fazer com que esquecessem o discurso anterior. Mas, lógico, ficava a fama, o nome, a bandeira de luta. Pelo que, ao contrário do que parece, abria mais espaços para os Malufes e seus pares, passarem a mão, gatunarem, e continuarem, como ela mesma dizia: umas gracinhas!!!
 O tão decantado sofá da Hebe era só para os elegantes, os ricos, os que ainda vivem, pela mesma curriola, nos endereços chiques, nos metros quadrados mais caros de toda a América Latina, no Morumbi, como ela própira, o que não estou mal-empregando, mas chamando a atenção para a incoerência brutal, que, de fato, não enxergamos, na maioria das vezes. "As pessoinhas" do jargão hebecamarguiano eram e são, de fato, os corruptos, os poderosos, os artistas ricos, as elites nacionais e internacionais, com suas meias-verdades entermeadas por jóias grandiosas, algumas até de gosto duvidoso. Muita maquiagem e muito laquê no cabelo, fazia com que se tornassem mais e mais perversos e poderosos.
 Sei que serei taxado de radical e de estremista, assim como sei também que é esta  ingenuidade brasileira que nos encaminha para o caos. Por isso, admirarmos os governos do PT que permitem os mensalações, os recheios de meias e cuecas, a transgressão, a arbitrariedade, o roubo, o assassínio de nossas consciências e nunca nos acordamos para enfrentar este desafio.
 Somos judáico-cristãos pordemais, balizados no barateamento do perdão, com o que aplaudimos e mitizamos nossos algozes, os verdadeiros responsáveis por nossas dores, sofrimentos, conflitos e crises. 
E é o que nos arrasta para a dor, o sofrimento, a miséria de sempre e já passa muito a hora de entendermos e desmascararmos estas indiossincrasias, que, na verdade, constituem os nossos infernos individuais e coletivos, ou seja, o da sociedade brasileira. Somos bobinhos demais e não aprendemos a desdobrar, a ver o que há por trás das enormes simpatias, dos discursos belos, dos sorrisos rasgados e seus poderes sugjacentes.
 E Hebe tinha mesmo que ser assim. Pois neste país, infelizmente, só vence na vida, ganha júbilo e história quem tem a coragem de vestir esta fantasia. Temos que ser, para vencer e sermos aceitos, hipócritas e simpáticos.
 Agradarmos a todo o mundo, para não agradarmos a ninguém. E, no fundo, darmos autógrafos aos pobres e infelizes, interrompermos nossos jantares, abraçar operários suados nas ruas, mesmo tomando um banho de álcool para nos desinfetar da fétida pobreza quando chegamos em casa.
 E isto a Hebe fez muito bem. Teve cara o suficiente para os "nina-nina-não!!!" quando se tratava de crimes horripilantes, mas sem se envolver, sem dar a sua cara, sem descer do muro. Mas ela fez muita coisa boa também. Contribuiu para a evolução da televisão que está aí como um dos melhores instrumentos de comunicação, educação e aprendizado.
 Só falta mesmo algum conteúdo que preste. Mas ela contribuiu e muito para que tecnicamente, pelo menos a televisão ai permacecesse e deu-nos muitas alegrias com sua arte, com sua graça. Como Hebe, eu também faço aqui um morde e assopra, porque quero que meu texto seja lido. Mas... se eu fosse membro do júri universal, eu a absolveria e dava o céu para ela. Afinal de contas, tadinha, ela já está muito acostumada. E eu não quero ser falso nem fingindo, advogando uma coisa e fazendo outra na contra-mão dos discursos que é o que aqui critico até de forma tão veemente.
 E pra criticar, tenho que ser melhor em termos de concepção, filosofia e valores. Eu daria o céu para ela. Afinal, somos "pessoinhas" filhas de Deus. Umas gracinhas. E merecemos todos, o melhor de tudo. Até ela. E por que não?