quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O FEMININO QUE HÁ EM NÓS


"A arte e o impulso de cuidar e acolher são algumas das manifestações da porção feminina da alma. Conhecer esse leque de qualidades é ganhar a chance de saber mais sobre si mesma. Então, vamos entrar um tantinho nesse rico universo. "
___________________

O espírito mesmo não tem sexo, profetiza a maioria das tradições. Mas a alma, ao viver na Terra e receber um corpo, masculino ou feminino, é influenciada por essa condição. "Certas características são atribuídas ao universo feminino: o cuidar e a cura, o nutrir e o educar, a compaixão, o amor à natureza e ao belo", diz a educadora Neuza Russo. "Essas qualidades e ações são tradicionalmente ligadas aos aspectos femininos do ser", afirma. O feminino, segundo ela, também se caracteriza por um sentimento profundo de falta. Muitas vezes, na história da arte, ele é representado por um vaso ou um cálice, pelo que precisa ser preenchido. "É essa sensação de insatisfação perene que conduz ao movimento e à busca espiritual", acrescenta Neuza. E a alma, quando preenchida pelo sagrado, imediatamente amplia sua relação com o mundo. "Passamos a reconhecer a sacralidade do corpo, da natureza e do outro", afirma a educadora. É nesse momento de plenitude que se dá o exercício da espiritualidade em seu lado feminino. A mulher se torna xamã e curadora, mestra e servidora, cuidadora e artista. "Cada pessoa irá desenvolver um desses aspectos, mas certamente todos eles estarão interligados num nível mais profundo", diz ela. E como isso acontece?
INTEGRAÇÃO E NASCIMENTO
Pode-se dizer que tudo que esteja relacionado ao reino da criatividade e intuição, ao acolhimento e à afetividade, ou à natureza e a seus ciclos, se ligue a aspectos do feminino, tanto na mulher, onde eles se manifestam majoritariamente, como no homem, que também tem sua contraparte feminina. Já a lógica e a razão, o que estabelece leis e regras, o que é mais rígido e compartimentado, se associa aos aspectos masculinos, quer no homem (onde estão mais pre sentes) como na mulher. As sociedades matriarcais do passado incentivavam aspectos femininos no conjunto de seus valores e padrões de comportamento. "Isso não quer dizer que uma matriarca não soubesse ser cruel e dura, guerrear e estabelecer regras. Ou que o homem não pudesse se embelezar e pintar seu corpo para as festas cerimoniais em uma vivência de entrega aos mistérios de sua religião. Continuamente, lançamos mão de nossos aspectos masculinos e femininos, conforme a necessidade", diz o psicoterapeuta Luiz Geraldo Benetton, estudioso de psicologia da religião. Na sociedade patriarcal, que se mantém no poder há milhares de anos, os valores femininos foram abafados. O que era relacionado à mulher era considerado sem prestígio, mas essa situação, segundo Benetton, está mudando. E já aponta no horizonte uma nova estrutura social e cultural, com mais ética, consciência do outro - seja ele uma pessoa ou a própria natureza. A valorização da ecologia, por exemplo, faz parte dessa nova consciência. A natureza não é mais vista apenas em seu aspecto mágico, como nas sociedades matriarcais, nem mais como a natureza-objeto, que só serve para ser usada e explorada, destituída de alma, como nas sociedades patriarcais. "Assistimos ao nascimento de uma sociedade em que o ser humano se vê como integrante de seu entorno, consciente de que faz parte de um todo e de que suas ações têm influência sobre esse conjunto", declara o terapeuta. Em outras palavras, a união de compreensão e consciência ao lado do amor à natureza e o reconhecimento da sacralidade da vida. "Isso também deverá ocorrer em relação à espiritualidade, que poderá ser vivenciada de forma mais dinâmica e aberta e não somente debaixo de ritos, leis e dogmas e nem só servindo a uma visão mágica e temerosa das forças do Universo", completa Benetton. Você vai conhecer agora a história de seis mulheres que encarnam aspectos relacionados à espiritualidade feminina. Elas vão dizer como a cura, o contato com a natureza, o cuidado, o servir, a maestria e a arte influenciam seu coração e sua vida.

Curadora Miriam Leiner aprendeu a "dançar" a cura. "Vida é movimento, fluxo, ciclo, ritmo, som. Por isso, dançar é tão profundamente terapêutico, curador. A consciência do movimento e do corpo resgata o sentimento de unidade que temos com a vida", diz a terapeuta. Além disso, a flexibilidade da dança, segundo Miriam, dissolve padrões, inclusive os que podem nos levar ao desequilíbrio. "A doença é uma exteriorização da falta de harmonia com o princípio vital, com a natureza, com o semelhante. E a cura nada mais é do que a volta dessa sintonia, dessa sensação de pulsar junto com o Universo", diz. Nesse sentido, ela nos fala que as mulheres são privilegiadas. "As mulheres têm uma profunda ligação com a natureza: sabemos a importância dos ciclos e ritmos por que menstruamos e somos regidas pelas fases da Lua; da criatividade porque geramos a vida em nosso ser; e da flexibilidade, em todos os sentidos, porque cuidamos da família e administramos conflitos." Para Miriam, a dança inclui todos estes aspectos: criatividade, flexibilidade, integração, unicidade e, principalmente, alegria. "Quem põe o pé na avenida no desfile de uma escola de samba sabe do que estou falando: aquele mar de gente vibrando junto, celebrando o estar vivo", lembra. Até organizar seus grupos de consciência do corpo por meio do movimento e fazer atendimentos individuais de terapia corporal, ela percorreu um longo caminho, que inclui a psicologia de Carl Rogers, que sustentava que a cura é autocura, os ensinamentos da bionergética, os estudos sobre o movimento do ucraniano Moshe Feldenkrais, a biodanza do antropólogo chileno Fernando Toro e as lições do coreógrafo brasileiro Klaus Vianna. Além disso, compreen deu a interação energética que se faz entre o homem e o Cosmo com a terapia japonesa do jin-shin-jyu-tsu e a medicina chinesa. "Hoje, o movimento corporal consciente na dança é, para mim, a mais profunda forma de oração e espiritualidade. E um dos caminhos mais completos para o despertar da autocura."
A Servidora, uma das frases mais repetidas pela terapeuta Mara Maldaun diante de alguém com dificuldades é: "E como é mesmo que eu posso te ajudar?" Essa frase, que para muitas pessoas é tão difícil de ser pronunciada, para ela se tornou quase um mantra. Compartilhar e servir são ações que Mara vive nas mais diversas condições. Ela já trabalhou em favelas, tratou de dependentes químicos e participou da implantação de uma escola antroposófica em uma comunidade carente, entre tantas outras ações voluntárias. "A compaixão é uma condição natural da alma. Pode estar presente no coração de homens e mulheres, mas está mais relacionada ao aspecto feminino do ser. A mulher já vem preparada para se doar", diz ela. Esse seu jeito atento às necessidades do outro foi cultivado na família. Pai, mãe, irmãos eram praticantes do espiritismo kardecista, que dá particular importância à caridade. "Desde pequena, percebi que servir conscientemente ao próximo traz muita alegria", recorda Mara. "Na verdade, acontece uma troca. Você doa, mas ganha em felicidade", assegura. É algo tão natural que seu próximo projeto é se mudar para o interior de São Paulo e, como primeira providência, plantar uma horta comunitária no quintal com as crianças pobres do bairro. Seu mestre, o guru indiano Sai Baba, assim como o trabalho de madre Teresa de Calcutá, são inspirações para Mara Maldaun se envolver cada vez mais nesse servir. "As obras desses dois seres cheios de compaixão são conhecidas em todo o mundo. Mas em cada lugar do planeta, independentemente de mestres e exemplos, o mínimo que se espera é que cada um faça sua parte."
A MestraA trajetória espiritual da educadora Neuza Russo começou há 16 anos de forma inesperada. Em 1991, aos 50 anos de idade e durante uma viagem ao Peru, Neuza conta que se viu diante de uma das aparições da Mãe Divina, no Templo da Lua, em Cuzco. "Não era uma entidade inca nem uma antiga sacerdotisa local. Era uma mulher de pele e vestes muito brancas e longos cabelos escuros. Algum tempo depois, reconheci essa mesma representação numa imagem de Nossa Senhora numa igreja no Chile", conta Neuza. Diante dessa forma feminina, Neuza se ajoelhou e, de acordo com ela, recebeu uma iniciação que deveria ser repassada posteriormente a todos homens e mulheres que desejassem recebê-la. "A Mãe Divina chamou esse ritual espiritual de Toque da Lua. Ele é muito simples e nos conecta às qualidades lunares que as tradições espirituais reverenciam, como suavidade, amorosidade, abundância", diz Neuza. Para a educadora, que tem uma sólida formação intelectual, foi difícil aceitar a realidade dessa manifestação. "Levei seis anos para compreender o que tinha se passado", reconhece. Hoje, o ritual se dá nas Luas cheias de cada mês numa região nobre nos arredores de São Paulo. "A Lua é um eterno símbolo do feminino. Ela influência a natureza como um todo, mas principalmente as águas, o nascimento e a morte. O Toque da Lua nos faz lembrar, e honrar, sua importância em nossa vida."

A Artista


Antes de pintar uma tela, Nancy Andrade Pinto, conhecida pelo pseudônimo de Fletea, se conecta e busca inspiração nos planos divinos, colocando-se a serviço deles. Das formas leves e abstratas de suas pinceladas, nascem anjos, divindades de várias tradições e seres celestiais. "É mais do que um quadro. É uma ancoragem de energia que chega de outras dimensões. A tela, então, se torna um pólo irradiador dessa força para o benefício de todos os seres", acredita Fletea. Pintar é uma forma de externar sua espiritualidade. Ela também ensina os fundamentos do que chama de "ancorela", composições de anjos baseados na geometria sagrada (triângulo, quadrado, círculo e espiral). "É importante que essa energia não fique restrita a meu trabalho. Ela precisa se espalhar, pois o planeta tem urgência em recebê-la", garante a artista plástica. Para se inspirar, ela usa a respiração e a música erudita. "A arte é terapêutica e lúdica e toca a essência das coisas", afirma Nancy.

A Xamã


Na franja de seu poncho, a campineira Izabel Camargo Donalisio ainda vê as marcas dos dias em que ficou sozinha numa montanha no México, praticando o trabalho espiritual xamânico da Busca da Visão. Foram nove dias em jejum, dormindo em chão de terra sem barraca e enfrentando o medo do escuro. Nesse período, ela procurou entender o simbolismo dos animais, das aves e dos insetos que vinham visitá-la para descobrir a si mesma: ultrapassou limites e desenvolveu capacidades e dons. No Peru, onde morou por sete anos, participou de várias saunas sagradas, rituais de fogo para purificação, cerimônias para entrar em contato com guias espirituais. No Brasil, dessa vez numa linda (e chuvosa) montanha de Santa Catarina, passou mais um período solitário de 13 dias, contando o tempo nas franjas do poncho, para completar o ciclo de Busca da Visão, um dos passos iniciais do caminho xamânico para a ampliação da consciência. Pertencente à seita xamânica Fogo Sagrado de Itzchatilatlán, Izabel encontrou a forma de expressar sua espiritualidade junto à natureza. "Descobri a sacralidade da vida, as dimensões que nos perpassam, a imensidão do mundo espiritual", diz ela, que hoje comanda rituais do fogo em São Paulo. A intensa ligação com a tradição espiritual das Américas, porém, não a impede de ter compromissos bem rotineiros: ir ao banco, fazer compras, viajar a trabalho. Ou procurar conciliar a atividade do mundo xamânico com a calma do mundo contemplativo, pois Izabel também é praticante de meditação zen. E essa integração espiritual, tão típica do feminino, é vivida com leveza e graça - talvez a mesma dos seus brincos em forma de colibri.

A Cuidadora

Ao ver Diana, a netinha recém-nascida, no berçário da maternidade, Blanca Suarez se perguntou: quem é esse ser? O que ele veio apren der aqui? Como ajudá-lo a desa brochar? "Dispensei os adjetivos 'que gracinha!' e tal. Não teve nada disso. Só fiquei ali, tentando descobrir o melhor de mim para dar a ela", diz Blanca. E essa é uma prática de todos os dias. "Cuidar é estar per to e dedicar atenção. A comida que faço tem atenção, tanto como o DVD ou os livros que escolho para ela. Diana, agora Didi, sente que é amada e responde com amor." Blanca tenta transmitir valores espirituais para a neta sem discursos e teorias. "Esse aprendizado nasce do cotidiano, da minha interação com ela. E nossos diálogos são inesquecíveis", conta. Um deles aconteceu quando Blanca contou sobre a morte da bisavó. "Foi muito difícil colocá-la diante do mistério que é a morte. Mas, à noitinha, a convidei para ver um lindo céu estrelado e disse que a bisa tinha morrido e virado uma estrelinha", diz. A reação da neta foi imediata. "Nossa, será que ela não vai ficar triste se ficar lá tão longe e sozinha?", ela perguntou, aflita. "Não", disse a avó. "Ela também vai viver aqui, dentro de meu coração." Didi ficou pensativa e depois retrucou: "Quer dizer, vó, que um dia eu também vou morrer?" Mais uma pausa. "E que você vai morrer também?!?" Sem esperar a resposta, emendou: "Não fica triste, não. Você também vai viver para sempre em meu coração quando virar estrelinha..."


Texto de Liane Alves
(Enviado de presente por Magda Mateuci)

terça-feira, 25 de setembro de 2007

CÓDIGOS MORAIS EM NOSSOS GENES


Nicholas Wade

De onde vêem as regras morais? Da razão, dizem certos filósofos. De Deus, asseguram os crentes. Mas dificilmente leva-se em consideração uma fonte atualmente defendida por vários biólogos. A evolução. À primeira vista, a seleção natural e a sobrevivência do mais apto podem dar a impressão de recompensar somente os valores mais egoístas. Mas para os animais que vivem em grupos, o egoísmo precisa ser rigorosamente controlado, ou não haverá vantagem na vida social. Poderiam os comportamentos desenvolvidos nos animais sociais para possibilitar o funcionamento das sociedades ser a base a partir da qual evoluiu a moralidade humana? Em uma série de artigos recentes e um livro, "The Happiness Hypothesis" ("A Hipótese da Felicidade"), Jonathan Haidt, psicólogo da Universidade de Virgínia especializado na questão da moral, vem construindo uma ampla visão evolucionária da moralidade na qual esta tem conexões tanto com a religião quanto com a política.
Haidt compara a máquina moral subterrânea da mente a um elefante.Ele iniciou a sua carreira de pesquisador examinando o sentimento de repulsa. Testando as reações das pessoas a situações como aquela de uma família faminta que cozinhou e comeu o seu cão de estimação depois que este foi atropelado e morto por um veículo na estrada, ele analisou o fenômeno da perplexidade moral - quando as pessoas têm uma forte sensação de que algo está errado, mas são incapazes de explicar por que.

Esse fenômeno levou-o a ver a moralidade como sendo motivada por dois sistemas mentais distintos, um antigo e um moderno, embora a mente basicamente não tenha consciência dessa diferença. O sistema antigo, que ele chama de intuição moral, baseia-se em comportamentos morais carregados de emoção que se desenvolveram antes do surgimento da linguagem. O sistema moderno - que ele chama de julgamento moral - veio após a linguagem, quando as pessoas tornaram-se capazes de expressar por que algo é certo ou errado. As respostas emocionais da intuição moral ocorrem instantaneamente - elas são reações viscerais primitivas que se desenvolveram para gerar decisões imediatas e maximizar a sobrevivência em um mundo perigoso. O julgamento moral, por outro lado, veio mais tarde, à medida que a mente desenvolveu uma racionalização plausível para a decisão à qual o indivíduo já havia chegado por meio da intuição moral.

Segundo a ótica de Haidt, a perplexidade moral ocorre quando o julgamento moral não consegue apresentar uma explicação convincente para aquilo que a intuição moral decidiu.Assim sendo, por que a evolução equipou o cérebro com dois sistemas morais, quando apenas um parece ser suficiente? "Nós possuímos uma mente animal complexa, que apenas recentemente desenvolveu a linguagem e o raciocínio baseado na linguagem", explica Haidt. "De forma nenhuma o controle do organismo seria entregue a esta nova faculdade". Ele compara a máquina moral subterrânea da mente a um elefante, e o raciocínio moral consciente a um pequeno indivíduo montado na garupa do elefante. Haidt acredita que os psicólogos e os filósofos adotaram por muito tempo uma visão demasiadamente estreita de moralidade, porque se concentraram no indivíduo que viaja na garupa do elefante, praticamente ignorando este último. Haidt desenvolveu uma percepção melhor do elefante após visitar a Índia por sugestão do antropólogo Richard Shweder.

Em Bhubaneswar, no Estado indiano de Orissa, Haidt observou que as pessoas reconheciam um domínio moral muito mais amplo do que aquele que diz respeito às questões de danos e justiça, que são partes fundamentais da moralidade ocidental. Os indianos mostravam-se preocupados com a integração da comunidade através de rituais, além de estarem comprometidos com o conceito de pureza religiosa como forma de controle de comportamento. Após retornar da Índia, Haidt pesquisou vários trabalhos de antropologia e psicologia em busca de idéias de diversas parte do mundo sobre a moralidade. Ele identificou cinco componentes da moralidade que são comuns à maior parte das culturas. Alguns dizem respeito à proteção dos indivíduos, e outros aos vínculos que agregam um grupo. No que diz respeito aos dois sistemas morais que protegem os indivíduos, um deles tem como objetivo impedir danos à pessoa e o outro garantir reciprocidade e justiça.

Menos familiares são os três sistemas que promovem comportamentos desenvolvidos para fortalecer o grupo. São eles a lealdade para com os membros do grupo, o respeito à autoridade e à hierarquia e um sentido de pureza ou santidade. Segundo a visão de Haidt, os cinco sistemas morais são mecanismos psicológicos inatos que predispõem as crianças a absorver certas virtudes. Como essas virtudes são aprendidas, a moralidade pode variar bastante de uma cultura para outra, embora preservando o seu papel central de elemento de contenção do egoísmo. Nas sociedades ocidentais, o foco está na proteção dos indivíduos com a insistência de que todos sejam tratados com justiça. A criatividade é alta, mas a sociedade é menos ordenada. "Em diversas outras sociedades, o egoísmo é suprimido por meio de práticas, rituais e histórias que ajudam a pessoa a desempenhar um papel cooperativo em uma entidade social mais vasta", afirma Haidt. Ele está consciente do fato de que muita gente - incluindo os membros da "disciplina homogeneamente política da psicologia" - considera a moralidade um sinônimo de justiça, direitos e bem-estar do indivíduo, descartando tudo mais como sendo mera convenção social. Mas Haidt observa que muitas sociedades espalhadas pelo mundo comportam-se de fato como se a lealdade, o respeito à autoridade e a santidade fossem conceitos morais, e isso justiça que se adote uma visão mais ampla do domínio da moral.

Haidt diz que a idéia de que moralidade e santidade estão entrelaçadas pode atualmente estar fora de moda, mas que ela tem um pedigree respeitável, que remonta a Emile Durkheim, um dos fundadores da sociologia.Haidt acredita que a religião desempenhou uma função importante na evolução humana ao fortalecer e ampliar a coesão fornecida pelos sistemas morais. "Se não tivéssemos mentes religiosas, não teríamos feito a transição para a tendência aos grandes agrupamentos", diz ele. "Ainda seríamos apenas grupelhos vagando a esmo". Para ele, o comportamento religioso pode ser o resultado da seleção natural, modelado em uma época na qual os primeiros grupos humanos competiam entre si. "Aqueles que gostavam de se agrupar tiveram mais sucesso", afirma o pesquisador. Haidt passou a reconhecer a importância da religião por uma rota indireta. "Eu encontrei o divino pela primeira vez na repulsa", escreve ele no seu livro "The Happiness Hypothesis".A sensação de repulsa provavelmente desenvolveu-se quando as pessoas tornaram-se comedoras de carne, e tiveram que aprender quais alimentos poderiam estar contaminados com bactérias, um problema que não ocorria com a comida de origem vegetal. Ele argumenta que a repulsa passou, a seguir, a abranger várias outras categorias, como pessoas sujas, práticas sexuais inaceitáveis e uma ampla classe de funções e comportamentos corporais que eram vistos como limites de separação entre humanos e animais. "Imagine visitar uma cidade na qual as pessoas não usam roupas, nunca tomam banho, fazem sexo em público em 'estilo canino' e comem carne crua arrancando os pedaços com os dentes diretamente da carcaça", escreve Haidt. Ele vê na repulsa provocada por tal cena uma aliada das idéias de pureza física e religiosa.

Para Haidt, a pureza é um sistema moral que promove as metas de controlar os desejos egoístas e de agir de uma maneira religiosamente aprovada. As noções de repulsa e de pureza estão disseminadas fora das culturas ocidentais. "Os liberais educados são o único grupo a afirmar, 'Acho tal coisa repulsiva, mas isso não torna essa prática errada'", diz Haidt. Trabalhando em conjunto com Jesse Graham, um aluno de pós-graduação, Haidt detectou uma impressionante dimensão política na moralidade. Ele e Graham pediram a pessoas que identificassem a sua posição em um espectro político que ia do liberal ao conservador, e que a seguir preenchessem um questionário que avaliava a importância atribuída a cada um dos cinco sistemas morais (o teste, chamado questionário de bases morais, pode ser acessado online no site http://www.yourmorals.org/).

Eles descobriram que as pessoas que se identificavam como liberais atribuíam um forte peso aos dois sistemas morais de proteção ao indivíduo - aquele que preconiza que não se cause danos a outros e o que aconselha a pessoa a só tratar os outros como gostaria de ser tratada. Mas os liberais atribuíram menos importância aos três sistemas morais de proteção ao grupo. Os que dizem respeito à lealdade, ao respeito à autoridade e à pureza. Os conservadores valorizaram todos os cinco sistemas morais, mas deram menos importância do que os liberais às moralidades que protegem os indivíduos. Haidt acredita que as várias discórdias políticas entre liberais e conservadores podem refletir a diferente ênfase dada por cada um desses grupos às cinco categorias morais. Vejamos, por exemplo, o posicionamento em relação à arte e a música contemporâneas. Os conservadores temem que a arte subversiva mine a autoridade, viole as tradições internas do grupo e ofenda os cânones da pureza e da santidade. Por outro lado, os liberais vêem a arte contemporânea como uma protetora da igualdade, ao atacar o establishment, especialmente se a arte for produzida por grupos oprimidos. Haidt argumenta que os liberais extremados não dão quase nenhuma importância aos sistemas morais que protegem o grupo. Para Haidt, devido ao fato de os conservadores darem algum valor às proteções individuais, eles freqüentemente entendem melhor as visões liberais do que os liberais entendem as atitudes conservadoras.

Haidt, que se descreve como sendo um liberal moderado, afirma que a sociedade necessita de gente com os dois tipos de personalidade. "Uma moralidade liberal encorajaria uma criatividade muito maior, mas debilitaria a estrutura social e esgotaria o capital social", diz ele. "Fico realmente feliz com o fato de termos Nova York e São Francisco - a maior parte da nossa criatividade vem de cidades como essas. Mas uma nação que fosse constituída apenas de Nova York e São Francisco não poderia sobreviver por muito tempo. Os conservadores fazem mais doações para obras de caridade, e tendem a apoiar mais as instituições essenciais, como as forças armadas e as polícias". Outros psicólogos vêem de formas diversas as idéias de Haidt.Steven Pinker, um especialista em ciência cognitiva que leciona na Universidade Harvard, afirma: "Sou um grande fã do trabalho de Haidt". Ele acrescenta que a idéia de incluir a pureza no domínio moral pode fazer sentido sob o ponto de vista psicológico, mesmo que a pureza não tenha lugar no raciocínio sobre a moral. Mas Frans B.M. de Waal, um primatologista da Universidade Emory, diz que discorda da visão de Haidt segundo a qual a função da moralidade é suprimir o egoísmo. Muitos animais demonstram empatia e tendências altruístas, mas não possuem sistemas morais. "Para mim, um sistema moral é aquele que resolve a tensão entre os interesses do indivíduo e do grupo de uma forma que parece ser a melhor para a maioria dos membros do grupo, e que, portanto, promove uma relação de reciprocidade", argumenta de Waal. Ele diz que também discorda da maneira como Haidt associa os liberais aos direitos individuais e os conservadores à coesão social."É óbvio que os liberais enfatizam o bem comum - legislações de segurança para minas de carvão, sistema de saúde para todos, apoio aos pobres -, de uma forma que está longe de ser reconhecida pelos conservadores", observa de Waal. Essa associação também perturba John T. Jost, especialista em psicologia política da Universidade de Nova York.

Jost diz que admira Haidt com "um psicólogo social muito interessante e criativo", e que achou o seu trabalho útil para chamar atenção para o forte elemento moral presente nas crenças políticas. Mas o fato de liberais e conservadores concordarem quanto aos dois primeiros princípios de Haidt - não prejudicar as outras pessoas e só tratar os outros como gostaríamos de ser tratados - significa que esses dois princípios são bons candidatos a virtudes morais. "Para mim, o fato de liberais e conservadores discordarem quanto aos três outros princípios sugere que essas não são virtudes morais gerais, mas sim compromissos ou valores ideológicos específicos", afirma Jost. Em defesa das suas idéias, Haidt afirma que as alegações morais podem ser válidas, mesmo que não sejam universalmente reconhecidas. "É pelo menos possível que as sociedades conservadoras e tradicionais tenham algumas visões morais ou sociológicas que os liberais seculares não entendem", diz Haidt.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

ENCANTOS DE ALZIRONA










(Sinopse do capítulo: Mistérios e Encantos de Alzirona, do meu livro: Anjo sem asas : tio Inácio cheio de graças. Publicado pela Editora Kelps: Goiânia-GO, 2006).
Alzirona era gostosamente vulgar. Besteirenta, altiva, esguia, pecoçuda. Quando tinha certeza de alguma coisa ela já berrava: - "Dô meu cu pros cachorro na Rodoviara se num fô isso..." Aliás, cu, era a palavra que não saia da sua boca. Sempre associada a tudo. Quando uma coisa era muito boa ela falava logo: - "Foi mió do que dedo no cu..." Quando alguém não cumpria o prometido: - "Quem num tem cu num faiz trato cum pica..." E por aí vai...
Quando ela ficava anciosa, coçava as partes mais íntimas com tanta força e tanto frisson, que até parecia querer se livrar delas. E depois de olhar discretamente e se certificar que não tinha ninguém vendo, ela levava, de forma sorrateira e escondida, o dedo no nariz e inspirava fundo e lentamente. Com um sorriso de prazer nos lábios, com um suspiro longo e que parecia vir da alma. Ela fazia uma cara de quem sentia o melhor dos orgasmos, o maior dos prazeres. Acho que só por saber fazer isso Alzirona era muito mais feliz do que muita gente boa que anda por aí com cara de pura, de honesta... Gente que não sabe nada dos prazeres da vida...
Além de tudo Alzirona era meio lésbica. Tinha vontade de transar consigo mesma. Um gênio. Uma mulher mais que especial.
Boa de dança, não se pode negar. Era inquieta, exibida, metida a besta, de nariz arrebitado, sempre. Sapateava flacamencamente com sua postura de bailarina já meio tonta àquela altura da noite fria e carregada de lua. Com aquele olhar vesgo e os tamancos de madeira estalando no chão. Ela rebolava segurando a saia farta na altura das ancas. Pisava miudinho e freneticamente por horas, até suar. E o pó de arroz barato e abundante descer às bolas pela cara, pelos seios, entrando no 'soutien' de seda bordada, que um dia já foi branco...
Ela não perdia a pose e nem a chance. Não trocava por nada seus momentos de glória. Uma filósofa, ela era. E sabia muito das coisas. Alzirona sabia muito mais que Sócrates e Aristóteles juntos.
Sempre atenta, para ver se tinha platéia para o seu espetáculo. Era quando agarrava o Chico da França, que nem francês era. Na verdade, era de Franca, no interior de São Paulo, mas aproveitava a coincidência para mentir e forçar o sotaque, até que o apelido pegou. E não há mais quem tire.
E os dois bailavam tão soltos que a sanfoninha quase não se segurava. Davam tremendas voltas no salão com a saia dela batendo as pontas nas pernas das pessoas.
Alzirona era barulhenta, bem-humorada, sacudida e virada no bofe. Ela podia. Seu misto de de santa, deusa, rainha e puta, dava-lhe o direito de escandalizar com seus berros, urros, gestos estapafúrdios. Lá pelas tantas e com muitas "louras" na cabeça, ela começava a gritar no meio da dança: - "IIh! Ruu! É ferro no cu da pobreza!" Enquanto o seu parceiro, Dito da França, homem casado e pai de família que já dançava com a puta, o que já era mais que motivo para dar escândalo e apanhar em casa, repondia entre dentes, para que ninguém e todo o mundo escutasse: - "Ih! Ruu! É cu no ferro da pobreza!"
Muita gente ria. As crianças, envergonhadas, olhavam para suas mães, com as mãozinhas na boca, num misto de escândalo, graça e susto, querendo a qualquer custo conter o riso que se teimava em explodir. Elas as repreendiam, dando bronca e fazendo um bico bem sério e bem feio. Algumas até recolhiam suas proles e voltavam para casa reclamando daquela sem-vergonhisse toda. E saiam pelas ruas escuras, enchendo os buracos e reclamando da vida, com as crianças chorando porque queriam ficar mais na festa...
Na outra volta, Alzirona e Dito da França refaziam o trocadilho e o pau quebrava até o amanhecer com cheiro de suor e de dança na roça. Alzirona dançava com seu parceiro e piscava para a rapaziada em sua volta, buscando garantir mais cliente para encerrar a noite. De manhãzinha, ela ia embora.Reclamando das dores nas pernas e pelo corpo. Com a flor de pano que tinha na cabeça, amassada na mão, embrulhada no xale suado, deixando ferpas e franjas presas ao capim cheio de flores que ladeava o riacho vizinho e testemunha dos seus encantos, pecados e farras. Cançado de ouvir suas gargalhadas rasgadas e a gritaria das mães e esposas que todos os dias chegavam armadas até os dentes, procurando seus maridos, filhos, noivos, namorados...Todos os dias tinha confusão. Das boas.

domingo, 9 de setembro de 2007

RESENHA BIBLIOGRÁFICA COMENTADA DO ÓCIO CRIATIVO










RESENHA BIBLIOGRÁFICA COMENTADA
DO LIVRO
O ÓCIO CRIATIVO (*)
DE
DOMENICO DE MASI

POR:

ANTONIO DA COSTA NETO (**)


O trabalho poderá tornar-se uma fonte de felicidades, como já o é para muitos empresários e altos executivos, se as empresas transformarem a competitividade em competência e a destrutividade em relações solidárias. Se elas forem mais cuidadosas com a estética de seus ambientes e objetos de trabalho. Se adotarem boas maneiras nas relações interpessoais e introduzirem um pouco da alma feminina em seus castelos embarricados pelos homens. Se abrirem uma brecha nos seus muros de proteção permitindo a entrada de um pouco de ar puro. Aí sim, o trabalho, junto ao calor do convívio cordial se tornará uma oportunidade para a socialização, o prazer e a melhoria contínua da qualidade da vida.Igualmente, para que a empresa tenha este carisma será sempre necessária a presença de chefes que incutam o entusiasmo, liberem os grupos dos procedimentos inúteis, gratifiquem os criativos, olhem para o futuro, promovam a inovação e tenham coragem de enfrentar o desconhecido.Para tanto, as condições ideais ainda são aquelas descritas por Platão em O banquete: comodidade, um grupo de amigos criativos, paixão pela beleza e pela verdade, liberdade carismática, tempo à disposição sem a angústia de prazos e vencimentos improrrogáveis. Felicidade, afinal, consiste também no fato de não ter prazos a cumprir.Precisamos, portanto, educar as pessoas para o ócio, enriquecendo as coisas de significado, preparando-as para gozarem a vida e não, apenas, para exercerem profissões. Enfim, para descobrirem que o paraíso existe e que é aqui na terra. Mas o inferno também existe e consiste em não se dar conta de que vivemos num paraíso.”

(Domenico De Masi)


I – O AUTOR E A OBRA

Domenico De Masi, sociólogo italiano que expôs neste livro suas idéias sobre a sociedade e o trabalho, sempre atento aos conceitos de uma visão de futuro. Responde a perguntas feitas por Maria Serena Palieri sobre a sociedade pós-industrial, desenvolvimento sem emprego, globalização, sociedade e tempo livre, compondo assim um ‘livro-entrevista’ denso, caprichoso e instigante.
O autor é um insatisfeito com o modelo social centrado da idolatria do trabalho e propõe um novo paradigma baseado na simultaneidade entre trabalho, estudo, jogo e lazer, no qual os indivíduos são educados para privilegiar a satisfação de necessidades radicais, como a introspecção, a amizade, o amor, as atividades lúdicas, a ecologia, a paz, a convivência pacífica, o que, inteligentemente chama de ócio criativo.
Alerta ainda que o ócio pode transformar-se em violência, neurose vício e preguiça. Mas pode também elevar-se a arte, criatividade, liberdade e bem-estar. Lembra-nos que é no tempo livre que devemos passar a maior parte de nossos dias e neles concentrar nossas melhores potencialidades.
Elabora temas sobre a feminilização, o declínio das ideologias tradicionais e dos sujeitos sociais emergentes. Domenico De Masi critica o modelo social do ocidente; sobretudo, dos Estados Unidos, advogando as seguintes premissas: crescimento do tempo livre e decrescimento do trabalho, distribuição equânime da riqueza produzida, do saber, do poder e a educação para melhorar a vida como um todo e não, apenas, o trabalho e a produção.

II – SINOPSE DA OBRA

Comecemos a falar do período da história de 70 milhões de anos atrás, quando se tem notícia dos primeiros sinais de vida na terra. Passemos depois para 700 mil anos passados, quando o homem aprendeu a se criar, a andar ereto, a cuidar da prole. Mais tarde, a descoberta do cérebro com seus 100 bilhões de neurônios, dos quais mais de l5 bilhões constituem o córtex cerebral, responsável pela racionalização, o pensamento lógico, que passou a ser, ao longo da própria história, o mais desenvolvido e valorizado.Assim, o ser humano deixou de se importar com a estética, a beleza, o bem-estar, sendo apenas a lógica necessária à vida. Também por isso, a maioria dos ambientes de trabalho ainda é horrível, com cores neutras, móveis e decoração do tipo hospitalar, nenhuma preocupação com o bom gosto, a estética.
Depois do autodesenvolvimento humano veio a descoberta da semente, novas formas de crescimento, a necessidade de aprender, o advento do papel da mulher. Mas, aprendizagem, até então, significava colonizar o cérebro com o objetivo de moldá-lo de acordo com os interesses do grupo de referência. Filosofia era, segundo Francis Bacon um amontoado de tagarelices de velhos estonteados para jovens desocupados. Vindo a ocorrer, mais tarde, um salto de época, ou mudança de paradigma, resgatando novos valores para a ciência, a cultura, o aprendizado. Gerando novas epistemologias e novas formas de ver o mundo e os seus processos. Ultrapassando a importância do puro e simples trabalho manual – uma coisa feita para macacos – bastando observá-lo por alguns minutos para aprender a fazê-lo e repeti-lo para sempre.
Mudança de paradigma apenas acontece quando coincidem: novas fontes energéticas e novas divisões do trabalho e do poder. A mudança de um ou de alguns destes aspectos é apenas inovação. Mudança só acontece quando todos mudam em ondas (ou períodos) curtas, médias, breves ou longas.
Vem depois o direito de propriedade, diferenciando substancialmente o homem dos outros animais e o trabalho é sistematizado, segundo Marx, para produzir coisas espirituais para os ricos e idiotices e imbecilidades para o trabalhador; culminando com a Encíclica Papal de João Paulo II, de que a caridade deve ser exercida pelos ricos, e, a paciência, pelos pobres.
Certos trabalhos, como os domésticos, se adequam à natureza das mulheres, criando-se assim, uma massa – uma mediocridade coletiva – que de acordo com Stuart Mill, que vem culminar com a televisão como instrumento de dominação consensual, inclusive para facilitar a burocracia e dificultar a criatividade, intervindo na natureza humana para melhor dominá-la.
A passagem de uma economia de produção para uma economia de serviços faz com que paulatinamente os ricos se tornem menos e muito mais ricos e os pobres aumentem em número e em pobreza. O que muito influiu os partidos de esquerda que, difundiram que quanto mais fracos são os paises capitalistas, mais chances têm de chegarem ao poder; ou conquistando votos, ou estabelecendo alianças com forças da direita, pagando este apoio com uma política conservadora.
Chegamos a ponto de que o único emprego remunerado disponível é do intelectual criativo. Aquele que não estiver preparado para isto, terá como futuro o desemprego. O trabalho de produção decresce numa dimensão geométrica, enquanto o criativo cresce numa proporção apenas aritmética e os operários braçais deixarão de ser uma força revolucionária. Tudo hoje é tecnologia. Até um frango tem mais tecnologia do que carne. Enquanto isto, muitos economistas – conselheiros do príncipe – fazem tudo para ocultarem esta dura realidade.
Deveria ser melhor divulgado o número de empregos que são suprimidos e, não só, os que são criados. O futuro pertence aos que sabem usar mais a cabeça e menos as mãos. A pesquisa, a psicologia, o marketing, a arte, a educação, estas são as funções do futuro e não mais a guerra, o petróleo, a fabricação de parafusos e geladeiras. Milhões de homens ainda conseguem os meios de sobrevivência estritamente necessários somente por meio de um trabalho cansativo e fisicamente desgastante, moral e espiritualmente deturpador e são obrigados a considerar uma sorte, a desgraça de terem achado o tal trabalho. O atual modelo capitalista reflete paradoxos que são desonestamente ocultos por cientistas e sociólogos europeus e americanos. Como, por exemplo, a poderosa importância da tecnologia que não pode mais ser dirigida por indivíduos isolados.
Precisamos absorver os princípios fundamentais da sociedade pós-industrial: a) passagem da produção de bens para a produção de serviços; b) importância dos profissionais liberais e dos técnicos em relação aos operários; c) a importância do saber tecnológico como um primado das idéias; d) gestão integrada do desenvolvimento técnico; e) criação de uma tecnologia intelectual: máquinas inteligentes e capazes de substituir o esforço racional humano. Portanto, é a subjetividade que orientará a vida e o trabalho daqui para frente, como podemos refletir a partir do poema de Carlos Fuentes quando nos indaga: “Viemos aqui para chorar. Estamos por morrer ou por nascer?”
Como a geração dos revolucionários do passado, somos nós aqui a termos a responsabilidade de mudança. E devemos começar por nós mesmos aprendendo a não rejeitar antecipadamente o novo, o surpreendente, aquilo que parece ser radical. O que significa afastar os destruidores de idéias, que, apressadamente, reprovam qualquer proposta nova como irracional. Eles defendem tudo aquilo que já existe como racional, independente do quanto possa ser absurdo ou superado.
Isto significa lutar pela liderança de expressão, pelo direito de manifestar as próprias idéias e reinvindicar este processo de reconstrução antes que o totalitarismo retorne às praças, tornando impossível uma transição pacífica rumo à democracia do Séc. XXI.
Vamos ter de inventar algo novo, além da matéria similar, dos motores e da inteligência artificial; dos recursos materiais como o barro, o ferro, a fabricação de materiais; incluindo aí a subjetividade que é a satisfação de desejos de indivíduo para indivíduo e daí para os nichos de mercados. O homem sempre oscilou entre dois desejos: o de distinguir e o de homogeneizar num processo de dois séculos de homogeneização absolutamente imposto pela indústria. Hoje, a tecnologia nos permite diferenciar, e é o que estamos fazendo. Evoluímos da homogeneização para a diferenciação, o que nos referenda Toffler, quando nos fala da desmassificação da mídia, criando ambientes inteligentes armazenados pelo computador; trabalhando em casa, estabelecendo relações virtuais com amigos e parentes; conjugando o pequeno, o grande, o individual e o coletivo.
O artesanato era pequeno e bonito, depois veio a indústria grande e feia. Atualmente, conseguimos de forma distinta as duas dimensões, fazemos compras nos supermercados e encomendamos um móvel sob medida a um carpinteiro. As coisas mudam, confluem-se; o presente é o porvir, o coração da sociedade é a informação, o tempo livre e a criatividade científica jamais deram tanta importância à estética, fazendo o que é belo possuir sentido. A burocracia, uma doença endêmica, está dando lugar à saúde criativa, exigindo que não só nos oponhamos ao projeto do outro, mas, para sobreviver, teremos de ter um projeto próprio.
A fabricação achata a diversidade. Os poucos milhardários do mundo são mais ricos do que a metade da população planetária como um todo, o que, mais que um absurdo é um crime. As várias formas de co-globalização estão presentes e potencializam seus efeitos nefastos reciprocamente, são eles: a) conhecer e mapear o planeta; b) escambo – troca de mercadorias; c) colonização material dos povos limítrofes; d) invasão dos mercados com as próprias idéias e moedas; e) globalização psicológica, sem dúvida, o efeito mais forte.
Vivemos em uma cidade e trabalhamos em outra, tiramos férias em uma terceira; tudo mescla certa fragilidade impotente gerando uma competição cada vez mais opressiva entre concorrentes mais numerosos e mais aflitos com o perigo de perder o que está em jogo. A globalização aumenta os níveis de competitividade, provocando oscilação entre a euforia e o temor. Achatando cada vez mais a diversidade, num astuto plano de exploração e selvageria.
Ao contrário, a civilização nasce do tempo livre, do jogo, do sexo, do prazer. É, portanto, impossível só trabalhar quando trabalhamos e só jogar quando jogamos, não misturando estas coisas e tendo como único objetivo desempenhar um trabalho e ser pago por ele. E só quando o trabalho estiver pronto que começamos o jogo, mas nunca antes, de conformidade com Henry Ford.
Foi a indústria que separou o lar do trabalho, a vida das mulheres da vida dos homens, o cansaço da diversão e o trabalho assumiu uma importância desproporcionada, tornando-se a categoria dominante na vida humana em relação a qualquer outra coisa. “É melhor que a vida e o trabalho se separem... eles têm lógicas e culturas diversas e a riqueza da existência está em combinar os tempos e os âmbitos de cada um. Segundo Aris Acornero, a justaposição de ambos é um mito a ser esconjurado.”
Meu parecer é justamente o oposto. Quanto mais a natureza do trabalho se limita a mera execução e implica em puro esforço físico, mais ele se priva da dimensão cognoscitiva, da dimensão lúdica e da dimensão da flexibilidade. A plenitude da atividade humana apenas é alcançada quando se acumulam o estudo, o trabalho e o jogo. Aquele que é mestre na arte de viver faz pouca distinção entre o seu trabalho e o seu tempo livre, entre a sua mente e o seu corpo, entre a sua educação e a sua recreação. Distingue uma coisa da outra com dificuldade. Almeja a excelência em qualquer coisa que faça, deixando aos demais a tarefa de decidir se está trabalhando ou se divertindo. Ele acredita que está sempre fazendo as duas coisas ao mesmo tempo.
A intelectualidade prescinde à habilidade manual, devemos usar mais a cabeça do que a força física e entre as habilidades intelectuais a mais apreciada é a criatividade e o aspecto técnico prescinde do estético. É a estética que conduz à subjetividade. É preciso melhorar o produto e o processo da sua confecção, assim teremos mais objetos e mais tempo livre para usufruir deles. Minimalismo do consumo; já temos muitos livros e muitos discos, é chegado o momento de desfrutá-los. Outros valores emergentes são a emotividade e a feminilidade. Devemos valorizar sem temor a esfera afetiva. A racionalidade permite-nos executar bem as nossas tarefas, mas sem a emotividade não é possível criar nada de novo.
É chegado o fim do ‘homossexualismo masculino’ intelectual ou separatismo machista das dimensões intelectuais entre os homens. Já faz parte do passado as mulheres, quase sempre semi-analfabetas, que ficavam confinadas em casa, em convívio com as escravas e entregues aos serviços domésticos, grosseiros, humilhantes e quase pueris. O que se referia à beleza, à solidariedade, à natureza, à emotividade era relegado a um segundo plano e delegado à mulher, ao lado da criação dos filhos e do ensino. E muitas delas ainda conduzem o machismo que, como a hemofilia, quem padece da doença são os homens, mas quem transmite são as mulheres, o que advem deste modelo machista de se viver.
Partimos agora para uma sociedade andrógina, sem papéis hierárquicos rígidos para homens e mulheres. Hoje são as máquinas que realizam as funções cansativas e repetitivas, deixando para os humanos de todos os gêneros, e, sem distinção, as atividades flexíveis, intuitivas e estéticas. A sociedade deve facilitar a riqueza da pluralidade, com poder de decisão tanto de mulheres quanto de homens. Os homens estão perdendo a hegemonia e adotam medidas femininas: cuidando do corpo, usando adornos e cores vistosas, demonstrando amor, afetividade, cuidando da casa e das crianças. As mulheres estão se desenvolvendo na vida pública, com mais acesso às poltronas do poder. O nascimento de um filho altera a vida dos dois: pai e mãe. E ao desejo e a busca da plenitude dá-se o nome de amor, e, não mais, de autoritarismo e competição.
Somos nômades e começou a era do horror ao domicílio fixo. Primeiro fomos nômades, depois, sedentários. O nomadismo difuso leva à elasticidade mental para lidar com novas pessoas, momentos e lugares, vendo a sociedade por ângulos diversos. Mudar de lugar estimula a criatividade, viaja-se com a mente mesmo que o corpo não se mova. Contudo, o excesso de recursos de hoje em dia, zera o número de pessoas que não se movem, para o quê, precisamos de uma maior autonomia e independência. Quem não dispõe de pelo menos dois terços do próprio dia é um escravo, não importando o que seja no resto: homem de Estado, comerciante, funcionário público ou estudioso; recobrando aqui uma citação de Nietzsche.
Necessitamos de uma redução mais que drástica dos horários de trabalho e acabar com a força supérflua, tanto dentro quanto fora da empresa. Proponho cinco ou seis horas por dia, de três a quatro dias por semana e três semanas por mês de trabalho. É errada a convicção de que quanto mais o empregado permanecer na empresa mais produzirá, pois o que se pede hoje ao trabalhador são idéias e não coisas. Quanto mais se fica na empresa, preso, como num aquário, menos se tem estímulos criativos. Esta forma torna a organização um amontoado de regulamentos inúteis à sua eficiência e danosos à sua produtividade.
A ordem é expulsar o “overtime”, sendo o tempo ideal de trabalho vinte e oito horas semanais e três semanas por mês. As pessoas devem aprender a curtir mais o tempo livre e usá-lo para si. Ficar no emprego mais tempo que o necessário só serve para inventar coisas prejudiciais e aumentar gastos e custos para as empresas que são habitudinárias como paquidermes e repetem a vida inteira as mesmas coisas sem que percebam a sua inutilidade.
Bertrand Russel, em O elogio do ócio afirma que é possível garantir para toda a humanidade um nível razoável de qualidade de vida, desenvolvendo e equilibrando a capacidade de trabalho, evitando que quem tem trabalho morra de trabalhar, enquanto o restante morre de fome, o que ele chama de “o antagonismo do absurdo” ou “o sistema do caos”.
As organizações têm uma compulsão ao conservadorismo e para expulsá-la, pequenos retoques já não bastam. Precisamos ousar mais, incluindo o teletrabalho, a semana brevíssima, melhorando a organização, as formas de trabalhar e a vida das pessoas que passarão a planejar um fim de semana com três ou quatro dias, a repensar seus relacionamentos, a cuidar melhor do jardim, da casa, das crianças e da sua própria emotividade, para assim poderem curtir melhor o tempo livre que passarão a ter, com o quê, automaticamente, melhorarão o mundo.
Vamos ter que mudar toda a existência da organização e a vida do empregado dentro e fora dela. Agora, com a Internet, tudo pode ser modificado com muito mais facilidade. Devemos evitar que o indivíduo, uma vez liberto, depois de décadas contínuas, não saiba lidar com esta nova situação, tendo dificuldades para enfrentar este impacto de liberdade. Uma pessoa que não tem tempo livre há anos precisará de uma reeducação para aprender a utilizá-lo, é lógico.
As gerações atuais são muito mais fluidas, móveis e centradas em interesses rápidos e transitórios, enquanto a ideologia social continua a mesma. Assistimos ainda a passeatas de trabalhadores, de massas oprimidas, mas não de homens e mulheres bem de vida. Há poucos ricos e infinitos pobres. A dita classe média vem se desfavorecendo assustadoramente desde o final do Séc. XIX. Mas, por feliz sorte, o poder está saindo paulatinamente das mãos dos que possuem para as mãos dos que sabem. Porém dos que sabem o quê? E como utilizam este saber, o que na verdade, constitui um outro sério problema: a questão da ideologia do saber, este vírus terrível que invade e consome as escolas, as universidades. Ninguém é mais explorador ou explorado apenas, mas, ambas as coisas ao mesmo tempo e a grande divisão entre ricos e pobres durou até os anos 60 e a educação formal das pessoas deveria deixar isto às claras. Hoje a forma mais adequada de se garantir a produtividade na empresa é, justamente, melhorar a qualidade de vida dentro e fora dela. É preciso deslocar o trabalho para onde estão os trabalhadores e sermos nômades em busca do lazer, do estudo e da cultura.
A maior exploração é se apropriar da criatividade dos outros e as empresas fazem isto naturalmente, mantendo as pessoas em um baixo nível de idéias, utilizando apenas as suas capacidades executivas, fazendo-as perder a habilidade de inventar, transformando-as em robôs, em peões digitais, num autêntico neo-fordismo, mantendo, com isto, um imenso desperdício de inteligência.
Quanto mais propicia a organização o desenvolvimento da criatividade, mais eficiente ela é. E não, porque sabe explorar mais seus funcionários. O que mede o desenvolvimento organizacional é o grau de criatividade e não, a capacidade de usar e explorar as pessoas, o que não passa de um nazismo camuflado.
Numa organização criativa os dias livres deveriam ser móveis, compartilhados socialmente, dedicados ao desenvolvimento e ao lazer das pessoas, ás suas famílias, amigos e à coletividade, o que deveria ser feito paulatina e equilibradamente.Eliminar o domingo de forma brusca e repentina seria devassar a economia dos estádios e das paróquias, mas é preciso que comecemos a aprender a descansar a qualquer hora do dia e dia da semana, atendendo aos pedidos de cada organismo.
Aí, faremos nós mesmos as nossas próprias instalações elétricas, prepararemos, com prazer o nosso pão em casa, cuidaremos das crianças, dos animais e dos parentes idosos. O trabalho doméstico será mais bem distribuído entre os sexos. Os homens poderão se dedicar mais ao afeto e à paternidade, desobrigando a mulher de se responsabilizar sozinha pelo mundo familiar, diminuindo a distância entre os trabalhos intelectual e manual e a masculinização da tecnologia. As atividades, inclusive as intelectuais e de execução serão mais delegadas às máquinas, cabendo aos seres humanos a escolarização, o lazer, os trabalhos flexíveis, criativos e agradáveis.
O teletrabalho passa a criar uma maior unidade espaço/tempo entre as pessoas, substituindo o conflito por movimentos difusos, unificando interesses e criando alianças para o futuro. As interações serão muito mais do que físicas, sendo preciso e possível lidar com a inovação sem fazer mais vitimas. Sem impedir o progresso, mas geri-lo de forma a criar uma felicidade mais coletiva e mais definida, adquirindo uma nova noção de tempo, uma nova noção de espaço. Nosso futuro será projetado por um certo, um outro “Bill Gattes”.
Aqueles que assimilam rapidamente as novas categorias se projetam para o futuro. O restante forma o grande exército de perdedores. No mundo de hoje, a velocidade impera, quem é lento fica à mercê. Quem é rápido, decide. O mundo exclui quem não é rápido. Privilegia-se a produção de idéias, exige-se corpo quieto e mente inquieta, o que eu chamo de “ócio criativo”: ter mais tempo para “bolar”, para “idear”.
O mundo atual é uma fábula onde a rapidez comanda e no lugar das fadas estão os engenheiros, dos feitiços, estão as fórmulas químicas e as quotações da Bolsa; no lugar dos duendes estão os bits. Nossos avós padeciam no tédio de dias sempre iguais, nós padecemos da vertigem de momentos diversos, dilatados, acelerados, excessivos, o que requer sabedoria e estilo para sincronizar-se com os ritmos frenéticos do mundo. Marcelo Marchesi explica: “... linda é a vida de hoje, vive-se mais tempo e morre-se mais vezes. Somos mordidos pelo bicho carpinteiro da velocidade urbana, consumimos o luxo de raras pausas, sonhando ou perseguindo a tranqüilidade perdida. Dentro de nós conflituam os espíritos da vertigem, da calma, o espírito nômade e o espírito sedentário. O ócio é uma arte e nem todos são artistas.”
O trabalho na era pós-industrial pode conjugar as vantagens das pequenas empresas artesanais, rapidez nos processos de decisão, flexibilidade, pouca burocracia com as vantagens da grande empresa; rapidez, intercomunicação, aprendizado. As pessoas podem ficar em casa como na oficina do artesão. Mas, ao mesmo tempo, pode se comunicar com os outros. Como na fábrica industrial, os processos mais rápidos, instantâneos, impera a simultaneidade entre fatos e fenômenos. O mundo é mágica.
Reduz-se a fratura entre tempo de trabalho e tempo de vida. As empresas, hoje dependem de seus empregados inseridos na sociedade e não, separados dela. O trabalho responde a outras necessidades urbanas, como o caos do trânsito, a poluição e isto exige interdisciplinaridades e contatos simultâneos com todas as dimensões do planeta.
Tempos atrás, quando se rezava, se rezava, quando era hora de diversão, nós nos divertíamos. Agora, pelo contrário, somos propensos a integrar estes momentos: enquanto trabalhamos rimos, brincamos e fazemos observações sobre o mundo exterior. Estamos introjetando a epistemologia da descontinuidade e da complexidade. Valorizamos a qualidade de vida e não queremos perder horas no engarrafamento nem o contato com a família. Vivemos num espaço ao mesmo tempo virtual e planetário.
Amanhã, teremos mais tempo para o amor físico, para a apoteose do gosto e do afeto. O trabalho reduzirá as relações obrigatórias com os outros deixando mais tempo para o contato afetivo com os verdadeiros amigos, os eleitos por cada um de nós.
Muitos amores sinceros nascem em locais de trabalho, muitos casamentos. Mas atribuir ao trabalho o mérito principal pela socialização é, no mínimo, um exagero. A empresa ainda não é particularmente adequada para fecundar amizades. Pois não escolhemos nossos colegas de trabalho, superiores e clientes. Apenas a luta de classes é que cimenta a união entre os trabalhadores. Em muitas empresas reina o clima de indiferenças, suspeitas recíprocas e medo. Nelas, o convívio é artificial e até as festas e comemorações são frias, tristes e patéticas. As panelinhas, as falsas alianças, os bandos de puxa-sacos, são grupos minados pela desconfiança, a transitoriedade, o carreirismo.
Muitos empresários e altos executivos entendem por flexibilidade o que lhes é cômodo: poder demitir quantos e quando quiserem. Quem faz sermão aos jovens para não ambicionarem emprego fixo, geralmente o tem e faz tudo para não perdê-lo. É preciso tomar um superior cuido para não se criar um terrorismo tecnológico para possibilitar o teletrabalho.
Formas existem muitas: empresas de trabalho a distância, escritórios-satélites, centros comunitários, trabalhos a domicílio, gerando vantagens de autonomia para o trabalhador em relação aos tempos, aos métodos, redução dos custos do estresse e do cansaço. Melhoria da gestão da vida familiar e social, relações de trabalho mais personalizadas, redução das horas de prestação de serviços, flexibilização da possibilidade de se passar mais tempo em casa. E as desvantagens de isolamento, marginalização do contexto e da dinâmica da empresa, redução de chances na carreira, problemas de reestruturação do espaço em casa, dos hábitos pessoais e das relações familiares. Dificuldades para ações coletivas entre colegas e ações sindicais. Deverá ser criado o telesindicato. Os empregados se sentirão estranhos e distantes da empresa.
Outras vantagens ainda para a sociedade seriam: o trabalho definido em zonas isoladas, periféricas, com mais trabalho para as chamadas categorias excluídas. Descongestionamento de áreas superpovoadas, redução do tráfego e da poluição, melhor manutenção do meio-ambiente, das ruas e das estradas. As desvantagens sociais imediatas seriam os custos com as instalações de cabos, tarifas de comunicação, áreas de trabalho pouco protegidas, renda não declarada ao fisco e redução da dimensão coletiva do trabalho.
Como vimos as vantagens são muito maiores do que as desvantagens: persistência ao trabalho, queda da resistência às mudanças, desaparecimento da cultura do “overtime”, dos chefes que querem manter os subalternos na palma da mão. Criando a necessidade de se reorganizar o trabalho e a própria vida. Contudo, teremos muitas resistências, sendo a maior delas, sem dúvida, o masoquismo coletivo: nem sempre as pessoas querem viver melhor e ser mais felizes.
Os aristocratas distinguiam-se não pelo que faziam, mas pelo que não faziam. Quem era da nobreza não devia trabalhar é para isto que existiam os servos, os operários e os escravos. Estamos emergindo da era da atividade física para a atividade intelectual. Atividade física pura ou atividade mental pura são extremos teóricos. O homem pensa e age o tempo todo, é que nos acostumamos a ativar o corpo e esquecer a mente.
Apenas o corpo é que conta. Se uma pessoa está com febre é considerada doente. Mas se está triste ou deprimida é tida como saudável. O tratamento psicanalítico ainda é considerado um luxo, mas o da pneumonia, por exemplo, é uma necessidade. Estamos numa fase de adestramento do corpo em muitas frentes, cuja desmaterialização começa com a invenção da escrita e se acelera pelo Séc. XX com o rádio, o cinema, a tv, dando um grande salto, quase um vôo com a internet.
Hoje em dia, a luta da mente prevalece à do corpo. Só nos lembramos dele quando nos faz sofrer ou rejeitá-lo. É quando corremos para as dietas, a ginástica, os tratamentos físicos, etc.
Sempre consideramos o trabalho uma atividade física cansativa e que desejávamos que acabasse o quanto antes. Só estamos motivados quando desejamos que alguma coisa continue, se prolongue. Ninguém nunca diz antes de começar um trabalho físico: “que ótimo, posso começar a trabalhar”, enquanto o trabalho criativo suscita o desejo de iniciá-lo.
O trabalho físico, para sobreviver, é sempre realizado sob a vigilância do patrão, enquanto a criatividade só exige dedicação e amor. A pessoa deverá se sentir atraída para o trabalho e só então ele será realizado pelo puro prazer. Nossa tendência natural é a de eliminar o dever físico e ampliar o prazer criativo. O trabalho poderá ser um prazer se for predominantemente intelectual, inteligente e livre.
Deve provocar cansaço, e, ao mesmo tempo, euforia. Quando é só físico, o trabalho trás o cansaço, a prostração, a vontade de parar. Quando é intelectual e criativo, o cansaço pode até não ser percebido: quem compõe música, escreve poesia ou pinta um quadro, pode até cair de cataplexia. Um poeta escreve versos até adormecer. No trabalho intelectual a motivação é tudo, ele pode nos agradar a tal ponto, que não nos damos conta de que nos cansamos. Até mesmo o esgotamento psíquico não permite um desligamento instantâneo, como acontece com o físico, o que acelera enormemente a dimensão do problema.
Se estou em busca de uma idéia, minha mente pode trabalhar por noites a fio sem parar nunca. Mas a organização do trabalho intelectual ainda é pouco difundida, conhecida ou estudada, enquanto sobre o trabalho físico existem bibliotecas inteiras, estudos, laboratórios, pesquisas.
Um sujeito pode passar horas em uma rede e estar trabalhando só com a cabeça. A rede é a antítese da linha de montagem, mas o grande problema é que ela nos foi proibida por muitos anos, criando outros arquétipos mentais. Assim como os peixinhos vermelhos quando saem do aquário continuam, em pleno mar, nadando em círculos por vários dias. Os seres humanos trabalham fechados dentro das empresas há mais de duzentos anos e não saem de dentro dela mesmo que a parede de vidro caia e não exista mais.
As atividades criativas também possuem suas regras, o desafio é criá-las respeitando os limites e não, impondo-os. O artista ama os vínculos e o jogador ama as regras. No trabalho criativo as regras são um desafio e no trabalho executivo, um limite que nos obriga a fazer mais e mais coisas desagradáveis num mesmo espaço de tempo possível.
As pessoas gastam vinte ou mais anos para aprenderem o que, de fato, poderiam aprender em três meses. Explorar o trabalho intelectual é, muitas vezes, utilizar as pessoas aquém de suas potencialidades e este é um capítulo da novela da grande infelicidade que gera medo e raiva, coisas que existem sem motivo e que são inúteis à produtividade, sendo mantidas pela alienação, a força física e a chantagem psicológica. Conduzindo ao desespero pessoal, familiar e social. O trabalhador – sobretudo o masculino – se quiser fazer carreira tem que estar disponível a um sem número de transferências, imposições e dogmas, sem nenhum questionamento.
Na Atenas de Péricles era no ócio que se criavam as idéias filosóficas, artísticas e políticas, o que requeria o “não suar” mantendo corpos e mentes sãos. A competição poética era freqüente, pois entendiam que a máquina psíquica era descontínua e necessitava de ser sempre treinada, enquanto a física era contínua, daí a preferência pelos exercícios mentais contínuos.
Algumas máquinas psíquicas produzem mais idéias ao amanhecer, outras ao entardecer ou à noite, algumas produzem continuamente, outras são intermitentes. Algumas são produtivas por um tempo, parando depois de grandes intervalos ou para sempre. Relembrando Oscar Wilde, só os medíocres dão o melhor de si o tempo todo e as organizações precisam interiorizar isto.
Às vezes as obras de juventude feitas na miséria são infinitamente melhores do que as da maturidade que são construídas com muito mais recursos e acontece também o oposto. Muitos estréiam com obras-primas de baixo custo e são medíocres para o resto da vida, ou o grande passo artístico, intelectual e criativo pode ser dado nas vésperas da morte. Não há como delimitar espaço ou tempo, a criatividade está muito mais agregada à possibilidade de acolher e de elaborar estímulos do que, propriamente, dos recursos disponíveis, regras, estatutos e normas.
É muito importante cultuar a fecundidade ideativa com agregação, liderança e incentivo à criatividade que tanto pode ser estimulada pela opulência ou pela miséria. O ser humano é diverso e complexo e haveremos de estudá-lo caso a caso. Apenas os gênios é que criam obras extraordinárias sob condições desastrosas, perseguidos por credores, encarcerados ou moribundos, como o Marquês de Sade, Marx ou Gramsci. A criatividade precisa de veículos, estímulos, desafios e não, de regras e barreiras burocráticas. O trabalho criativo requer uma relação cheia de caprichos com o tempo, o prazer, a vontade, a inspiração e a escolha.
Se o trabalho só físico tivesse escolha, as pessoas escolheriam não fazê-lo. Daí a coerção psicológica do tipo gozar o ócio é pecado; quem é ocioso é ladrão, viciado, criminoso e vai para o inferno.
As atividades intelectuais implicam no cansaço mental. Muito trabalho físico exige pouco repouso, mas para poucas idéias é preciso muito ócio. O ócio criativo não é parar o corpo e a mente. É aquela trabalheira mental que acontece quando dormimos à noite, por exemplo. Criar não significa não pensar. Significa não pensar regras obrigatórias, não ser assediado pelo cronômetro, não obedecer aos percursos da racionalidade e todas aquelas maluquices que Taylor e Fayol inventaram para bitolar o trabalhador e torná-lo eficiente. O ócio criativo é um instrumento da ideação, é uma matéria-prima, da qual o cérebro se serve para, mais uma vez, produzir idéias. O ócio é profundamente necessário para o desenvolvimento de idéias e estas, são fundamentais para o desenvolvimento da sociedade. Devemos, portanto, educar as pessoas também, eu diria, até principalmente, para o ócio e não só para o trabalho, como infelizmente acontece até os nossos dias.
Educá-las não para o ócio dissipador e alienante, que nos faz sentir vazios, inúteis e nos afundar no tédio, na depressão e nos subestimar. Mas no ócio criativo que torna a mente ativa, que nos faz sentir livres, fecundos e em crescimento. Não no ócio que nos depaupera, mas no que nos enriquece, alimentado por estímulos ideativos e interdisciplinaridades. Nele, as intuições surgem das hibridações de mundos diversos. Assim, ir ao cinema, ao teatro, à praia, tomar um chope, dançar, bater papo ou sair de férias, e até mesmo ficar sem fazer nada, não é tempo perdido, mas estímulo para intuir, para aprender coisas, compreender, executar e inventar outras.
Hoje, quanto mais tempo um executivo passa dentro de um escritório, menos produtivo é e menos idéias tem. Entretanto, com medo de mudarem seu esquema, as empresas pagam as pessoas para não produzirem nada. Os executivos vivem num quartel psíquico, são infelizes e limitados. Eles moram em casas belas e confortáveis em bairros agradabilíssimos, mas passam a maior parte do tempo trancafiados. Sonham para os filhos desempregados um emprego como o deles e os filhos esconjuram aquele emprego como se fosse uma peste.
Acho mesmo que os executivos de meia idade são pessoas doentes. E pior, sofrem de uma doença contagiosa. Transmitem aos mais jovens uma vida baseada no excesso de esforço, na subordinação, ao invés da dignidade. Eles deveriam ser isolados para não contaminarem. Mas, ao mesmo tempo, deveriam ser tratados com carinho. São uns alienados e infelizes e depois da aposentadoria vivem da solidão e do saudosismo.
O executivo fica, em geral, mais de dez horas por dia na empresa e assim ela condiciona também as suas noites. Uma executiva, por exemplo, quando faz amor à noite, não faz amor, o que faz amor é a máquina que está instalada dentro dela. A empresa é uma instituição totalitária como uma prisão ou um hospício. Ela suga a inteligência e condiciona as emoções e os afetos. O coletivo prevalece sobre o individual e a cultura da empresa tornou-se o motor de todas as demais organizações, elas discriminam o feminino, fazem prevalecer a aristocracia. Nelas consumam-se desperdícios incríveis, principalmente de tempo e inteligência, e, em nome da racionalidade realizam as escolhas mais inadequadas.
As empresas mais inflexíveis exigem que seus empregados sejam flexíveis, numa brutal incoerência. Nelas multiplicam-se os procedimentos burocráticos, frauda-se o fisco e pagam-se manobras. A sociedade é, em tese, democrática, mas as empresas continuam cada vez mais hierárquicas, piramidais e autoritárias. Seus chefes não são eleitos pela base, mas nomeados pelo topo e, muitas vezes, vêm de fora e são impostos a qualquer custo. Aos subordinados só resta aceitarem as novas imposições das quais tomam conhecimento por meios de comunicação externos e não, da própria empresa, como era de se esperar.
Assim, como sua cópia autêntica, as comunidades sociais funcionam pessimamente. Exatamente porque o indivíduo igualitário é gerido por grupos, ditatorialmente, o que, de acordo com Tocqueville, significa contrariar o homem, diminuí-lo e lembrá-lo a todo instante da sua condição ínfima de subalterno, secundarizado e dependente.
Os novos presidentes das organizações chegam de fora, são portadores da discórdia, e, muitas vezes, são escolhidos por minorias e sob condições escusas e secretas. As organizações têm de ser salvas de sua estupidez gratuita, liberadas das restrições absurdas do taylorismo e reavivadas com boas doses de motivação e descentralizadas por meio do teletrabalho.
A demarcação entre estudo, trabalho e tempo livre deve desaparecer por completo, passando para uma concorrência leal e solidária capaz de garantir a produção e a distribuição da riqueza. Tudo isto pode e deve ser feito, graças ao progresso e à difusão cultural é possível eliminar o carrasco e o estresse. Mas, para tanto, os novos executivos
deverão tomar consciência da exploração que praticam, identificar seus opositores e se agregarem a novas alianças.
A nossa identidade dependerá da capacidade de produzirmos idéias, de viver o tempo livre, do nosso estudo e da nossa sensibilidade estética.Os seres humanos viveram o ócio durante milênios, foi a sociedade industrial que estabeleceu a lei da eficiência baseada na relação entre o trabalho e o tempo necessário para a sua execução. A introdução desta medida foi uma coisa imposta, forçando a natureza humana. Vivemos aturando o tempo imposto e é chegada a hora de viver o tempo escolhido. O ritmo infernal da sociedade industrial não nos deixa sobrar um minuto para respirar e compreendemos a importância de ter tempo porque o tínhamos e não era suficiente.
Chegou o tempo em que a vida aumenta e o trabalho diminui. Temos mais tempo, mais cultura e mais consciência disto. Diante desta revolução é esperada uma angústia existencialista como retratam os filmes e romances como A náusea, de Sartre e O tédio, de Maravia que, em síntese, revelam o desejo obstinado de libertar os fracos dos domínios dos poderosos. Mas, dentre estes, frios e entediantes, eu sempre preferi Albert Camus que é mais caloroso e cheio de generosidade. Como esquecer O mito de Sísifo, A peste ou O estrangeiro?
O tédio aumenta porque estamos acostumados a associar tudo na vida a uma só coisa: o trabalho que passou a ser, há milênios, o nosso compromisso-chave e este compromisso tem que passar a ser minoritário do ponto de vista temporal. Somos como o prisioneiro do filme de Tim Robbins, muita liberdade de repente pode nos encher de alegria ou nos atirar num buraco feito de pânico, de medo ou de tédio.
O tédio, por sua vez, pode ser vivido como uma paralisação ou como medida disspipativo-criminosa. Para não sê-lo, é preciso transformá-lo em ócio criativo, preenchendo o tempo, agora livre, com atividades escolhidas por vontade própria, ao invés da coação dos escritórios ou da linha de montagem. É a situação do poeta, do artista, do amante do xadrez, ou de quem adora computador, pintura, voluntariado ou alpinismo.
A criatividade se nutre do desperdício de milhares de horas de reflexão e exercícios que são uma perambulação do corpo e da mente que mais cedo ou mais tarde acaba desembocando em uma ação positiva; em uma obra de arte, um novo teorema, uma canção, versos, arranjos florais, jardins. Posso criar obras concretas esculpindo uma estátua ou fazendo um bolo. Enquanto estou sentado o cérebro passeia e eu escrevo. Somo as virtualidades do cinema às mais recentes evoluções da informática e da eletrônica. Faço artes gráficas no computador, transplanto fotografias, manipulo imagens.
De que serve viver se você não se sente viver? Saber viver hoje implica uma pedagogia baseada na solidariedade, nos princípios estéticos e criativos e o trabalho deve ser ensinado como um prazer criativo e estimulante. Deve-se ensinar também o não-trabalho: a viver prazerosamente e com sabedoria, apenas se deliciando, nada ,mais.
Outra palavra de ordem é criatividade. Os tecnocratas têm medo dela e da inovação, enquanto os criativos temem o imobilismo. Vencerão os criativos, pois a sociedade pós-industrial se alimenta de inovação, premia a iniciativa e joga fora o imobilismo. Hoje, o subalterno do engenheiro é outro engenheiro atualizado e ágil o que mina as bases da antiga concepção de chefia, cria uma organização por projetos e leva a uma rotação de lideranças. O trabalho nunca foi coisa para autodidata, tem que ser ensinado e aprendido durante pacientes anos de dedicação. Da mesma forma, o tempo livre prescinde de profundos aprendizados.
Os jovens de hoje, em 2 015 não poderão dar-se ao luxo de serem desonestos, pois lá os valores emergentes serão escolarização, emotividade, estética, subjetividade, confiança, estabilidade, feminilização, qualidade de vida, desestruturação do tempo e do espaço e a virtualidade. Será dada menos atenção ao dinheiro, posses e bens materiais e ao poder. Maior atenção ao saber, ao convívio social, ao jogo, ao amor, à introspecção. Os métodos pedagógicos deverão valorizar mais o diálogo, a escuta, a solidariedade, a criatividade.
A sociedade pós-industrial é menos ligada à agressividade, pois sua estrutura tem a forma de rede com um número potencialmente infinito de nós e malhas. As relações dela decorrentes são muito mais evolutivas, requerendo novas formações para a necessária mudança de paradigma. Deveremos então nos atualizar ininterruptamente, adquirindo formação filosófica, ética, estética, lingüística, técnica, econômica, psicológica, política, ecológica, cultural e sociológica, que deverá dar-se ao mesmo tempo. Será cada vez mais difícil separar o treinamento da formação e o jogo do trabalho e do prazer.
Haveremos de partilhar a riqueza ao invés de só aumentá-la. Ensinaremos que é inútil e pouco inteligente gastar energia para se tentar angariar novos bens se ainda não usufruímos realmente do que já dispomos. É inútil comprar livros ou discos quando ainda não lemos e nem ouvimos os que temos. Em outros tempos os ricos descansavam e os pobres se esfalfavam. Hoje isto se inverteu: os ricos correm doidos para cuidarem de seus negócios enquanto os pobres são obrigados à inércia do desemprego. E quem trabalha é obrigado a ficar aquém de sua capacidade, o que é alienante e aviltante.
É preciso educar para a complexidade, quanto mais a pessoa souber administrar esta realidade, mais madura será. A sociedade industrial simplificava os problemas complexos, transformando-os em vários problemas simplificados. A pós-industrial, por sua vez, dispõe de instrumentos potentes para enfrentar problemas de igual dimensão, encontrando muito mais facilmente as soluções adequadas frente ao saber secularmente acumulado. Assim, problemas, soluções e técnicas tornam-se uma corrente mais rica e mais humana porque o ser humano é igualmente complexo e aspirar administrar a complexidade com um pensamento simples e linear significa observar apenas a continuidade dos fluxos e suas várias fases. Já o pensamento complexo significa, ao contrário, aceitar o seu caráter mesclado, incongruente, descontínuo, e, para isto, precisamos de uma educação permanente para a descontinuidade e para a mudança.
A abordagem linear e a exigência de continuidade completamente anacrônicas despertam o medo e a insegurança diante do novo. O medo quase apocalíptico de algumas pessoas diante do novo nasce da dificuldade de enfrentar a descontinuidade. Temos medo de ter uma vida muito melhor do que a de nossos avós. Quanto mais ricas as pessoas, mais cínicas elas são. Têm medo de perderem justamente o privilégio que não merecem. Foi este o medo que serviu de base para o fascismo. A pedagogia da era industrial ensinava a separar as coisas: trabalho é trabalho e lazer é lazer. Hoje, pelo contrário, temos que perder o medo de encarar estas coisas juntas, acopladas, intercomplementares e simultâneas.
Ajudei, em 65 a retirar da máquina uma senhora totalmente ensangüentada, que acabava de ter amputados os quatro dedos e ainda gritava: - “... minha Nossa Senhora, meu Jesus Cristo, não vou poder mais trabalhar...” é uma das passagens demonstradas por Toffler.
Temos que usar a criatividade no trabalho juntando fantasia à concretude, é preciso saber realizá-las, mas unir fantasia a uma concretude medíocre será uma criatividade pobre. Mas podemos unir fantasia e concretude em altos níveis e realizar assim uma criatividade valiosa.É preciso unir pessoas que são mais lógicas com pessoas preferencialmente sonhadoras, para que ambas se ajudem mutuamente, realizando assim grandes projetos ricos e criativos. É este o único caminho para as nossas organizações, a única saída para que a vida continue a existir.
Não basta só juntar pessoas, é preciso ter uma liderança carismática para uma nova definição das regras do jogo. É necessário educar para a criatividade, ajudando a pessoa a encontrar a sua vocação autêntica, parceiros adequados e criar um contexto mais próprio. Descobrir formas de explorar os vários aspectos do problema que a preocupa. Fazer com que a sua mente fique relaxada e como estimulá-la para que crie idéias justas. Principalmente, educá-la para não temer e não dificultar o fluir incessante das inovações. Pois como dizia Heráclito: “É na mudança que as coisas repousam.”
Vamos, portanto, operacionalizar a mudança do processo executivo para o ideativo, da substância, para a forma, do duradouro para o efêmero, da prática para a estética, da precisão para a aproximação, do científico para o pós-científico. O que significa a necessária substituição de uma cultura do sacrifício e da especialização cuja finalidade era o consumismo, para uma visão pós-moderna do bem-estar e da interdisciplinaridade, cujo fim é o crescimento do subjetivo, da afetividade e da melhoria da qualidade do trabalho e da qualidade da vida.
Os mitos greco-romanos que propunham qualquer inovação eram severamente castigados como Ícaro, Sísifo, Ptolomeu e Ulisses. Uma máquina é uma maquinação e um expediente é uma armadilha contra a natureza. Para que aconteça o verdadeiro salto para a qualidade é preciso que existam pessoas desligadas da prática, que se dispunham de um tempo livre do esforço físico e que tenham gosto em inovar, seja por meio de especulações mentais ou experimentos, por meio dos quais a natureza é observada, cutucada e provocada.
Devemos caminhar da exatidão para a aproximação, evoluindo para depois de Galileu, Newton e Descartes, buscando um mundo cujo centro não seja mais a rigidez, mas e flexibilidade e que esta substitua a simples execução. O homem é um ser pensante, mas suas grandes obras se realizam quando ele não calcula e nem pensa, mas sonha. Não é o ângulo reto e nem a linha reta dura e inflexível que me atraem, mas a curva livre e sensual. De curvas é feito todo o universo, disse Oscar Niemeyer.
Até os Estados Unidos se fundam na economia do ócio, isto, é claro, sem se dar conta; o que é comum em todos os países ditos avançados. Neles, a ética do trabalho é a ética da escravidão e o mundo pós-industrial não precisa mais de escravos. O trabalho já pode ser retirado do trono onde foi colocado pelos patrões, pelos filósofos e pela igreja católica no final do Séc. XVIII. Nos anos passados foi o trabalho que colonizou o tempo livre, nos anos futuros será o tempo livre que colonizará o trabalho. Afinal, aquele que só trabalha perde o tempo precioso, como diz um famoso provérbio espanhol.
Em muitas escolas, principalmente de administração, os horários são estressantes e a competitividade não conhece limites de modo a preparar o aluno exclusivamente para a vida profissional, com eficiência e sem escrúpulos. Sem qualquer interesse residual para o lazer, os afetos familiares, a liberdade de pensamento, conduzindo o futuro profissional para atividades tediosas, estúpidas e mal pagas. A missão que temos dentro de nós é a de educar a nós mesmos e aos outros a contaminar o estudo com o trabalho, o jogo e o prazer até fazer do ócio uma arte refinada, uma escolha de vida e uma fonte infindável de idéias. Até chegarmos ao ócio criativo, em que confluam e se misturem suavemente produção de sentido com produção de riqueza, alegria com aprendizado, pluralismo com identidade, fantasia e concretude, sensualidade e andragogia, racionalidade e afetividade. Criando um clima que sublima o cansaço em jogo, a música, as prescrições alegres, e, as poucas regras introjetadas, aceitas e construídas por todos e transcendentes de arte, sonhos, beleza e amor.
A organização aprende com a própria experiência, metaboliza as mais modernas técnicas construtivas, comunicativas e estéticas. Inclui e acolhe os sentimentos de estranheza entre quem participa e quem assiste. É uma festa doce, não-agressiva que cria a riqueza e amplia a economia do dom e não a do lucro.
Balançar-se numa rede parece-me ser o símbolo por excelência do trabalho criativo, perfeita antítese da linha de montagem, a qual foi símbolo do trabalho alienado. Em síntese, dar sentido às coisas de todos os dias, sempre lindas. Admirar quadros, assistir televisão, ler um livro, provocar discussão com o motorista do táxi, jogar conversa fora com os mendigos, admirar a sábia beleza de uma garrafa ou das carruagens que ainda passam pelas ruas.
A idéia de gozar o ócio sempre incomodou ao rico, pois com o advento da sociedade ociosa tudo muda. A escolha de um bom colchão é mais importante do que a de uma escrivaninha funcional. A escolha de um amigo com quem passear ou tirar férias é mais importante do que a escolha do colega de trabalho. É mais importante a escolha da faculdade que prepara para a vida do que a que prepara só para o exercício da profissão. O que conta não é o estresse da carreira, mas a serenidade da sabedoria.
Educar para o ócio significa ensinar a escolher um bom filme, uma peça de teatro, espetáculo de dança ou um livro. Ensinar como estar bem consigo mesmo, a habituar-se às atividades domésticas e com a produção de inúmeras coisas que antes comprávamos. Ensinar o ócio requer uma escolha atenta dos lugares justos para repousar, para amar e se divertir.
É preciso ensinar o jovem a se virar nos meandros do trabalho, nos meandros do prazer. Educar para a solidão e para a companhia, para a solidariedade, o voluntariado. Há tudo o que ensinar e tudo o que aprender. É necessário ter um sábio convívio com o ócio como produto também da educação.
Não existem mais motivos pelos quais a grande massa da população deva continuar sofrendo as privações do trabalho. Somente um ceticismo idiota para nos induzir a trabalhar tanto, quando não há mais necessidade disto. Educar para o ócio significa enriquecer as coisas de significado.
A criatividade e a inovação não podem brotar nas organizações que ainda são administradas com métodos, tempos e sistemas de comandos concebidos há mais de cem anos, onde o executar é tudo sendo proibido inovar e criar.
Temos que evitar métodos que sirvam apenas a um capitalismo disfarçado de social-democracia. O ócio criativo deve incluir a ginástica que harmoniza o corpo e a poesia que encanta a alma. Nele, a guerra deve ser em função da paz e as coisas úteis em função das belas. É muito mais agradável trabalhar com pessoas que descansam, se divertem e gozam a vida.
O trabalho é profissão e o ócio é arte e os escravos do trabalho são os que pararam de pensar, de sonhar, de amar. Os mestres da vida são os que amam apagar a sua distinção com a arte. Só atendo à plenitude da qualidade da vida quando consigo a serenidade natural da alegria, beneficiando a todos e sem prejudicar a ninguém. Viver o ócio criativo é ter a certeza de que o paraíso existe e é nesta terra. Mas o inferno também existe e consiste em não se dar conta de que vivemos num paraíso.

III – COMENTÁRIOS E CONCLUSÃO

O ócio criativo de Domenico De Masi uma obra absolutamente indispensável aos que lidam com as necessidades de transformação do mundo, da sociedade e da melhoria concreta da qualidade de vida. Numa linguagem rica, calorosa e bem-humorada, o autor consegue tratar de temas cruciais e necessários a todos os que trabalham com gente, educam, sentem, sofrem, vivem. Provoca a revolução inadiável frente aos conflitos porque passa o mundo, na plenitude do caos humano, social, político, ético, cultural, econômico e ecológico que ora atravessamos.
Um texto que abre perspectivas marcantes para a condução de princípios perseguidos pela humanidade há milênios. Uma leitura obrigatória aos estudantes de todas as ciências sem exceção, pois visa a construção de um mundo melhor, apoiada num novo ciclo pós-científico, na sensibilidade aguçada, na cooperação, na feminilidade, na autêntica parceria entre todos os povos.
O tema central está fincado nas condições políticas, na distribuição do poder e da riqueza para que todos possam viver com dignidade. Na redução drástica do tempo de trabalho, melhorando a vida das pessoas dentro e fora da empresa, para que todos possam ter acesso ao trabalho e a uma vida com muito mais qualidade, mais prazer e para o que, precisam ser continuamente educados e reeducados. Junção de idéias estranhas e pessoas de diferentes modos de pensar e estilos de vida. Construção coletiva das poucas necessárias regras de conduta, num mundo gerido pela ética, a estética e a justiça social, são as saídas que o autor advoga para as organizações e a sustentabilidade da vida humana.
Retrata o amor, a sensibilidade, a beleza, a paz, o teletrabalho, a descentralização do poder de decidir e a drástica redução do tempo de serviço como instrumentos para se viver o tempo livre e transformá-lo em ócio criativo e em novas idéias rumo a uma vida mais com melhor qualidade para todos. Enfim, o texto trata de sabedorias políticas e filosóficas indispensáveis frente a gravidade da conduta humana e do risco iminente nos tempos em que vivemos. Apresenta propostas novas e originais que, uma vez colocadas em prática por todos: governantes, empresários, trabalhadores, homens e mulheres comuns, poderão significar esperanças de melhorias concretas e garantias de uma vida digna e decente para todos, sem distinção.

_______________
(*) Livro-entrevista em que o sociólogo italiano Domenico De Masi (nascido em 1 938)responde a perguntas elaboradas por Maria Serena Palieri sobre mundo atual, tempo livre e globalização. Publicado no Brasil pela Editora Sextante, do Rio de Janeiro, 2000 – 336 págs. Tradução de Lea Manzi.
(**) MsC em educação e administração, consultor e professor universitário. Autor de artigos e livros, dentre os quais, Paradigmas em educação no novo milênio (Ed. Kelps, 2 003) e Escolas & Hospícios – ensaio sobre a educação e a construção da loucura (Ed. Vozes, 2 005). E-mail: antoniocneto@terra.com.br