sábado, 29 de junho de 2013

CONCEPÇÃO METAFÍSICA DA EXISTÊNCIA DE DEUS





"Deus pode ser tudo, inclusive, um flamejante sorvete de cerejas."

(Hilda Hilst)

Minha concepção é a de que Deus existe, sim. E para buscar esta compreensão basta olhar a vida, respirar, sentir-se vivo. Quem poderia construir tamanhas maravilhas? Que força mágica além de Deus poderia fazer uma folha das mais simples das zilhões que nos cercam? E as águas, o fluxo dos rios, o cantar das cachoeiras, as montanhas, os pássaros, o ar, a vida, enfim...
Então, vamos combinar: Deus existe e pronto. Querer novamente explicar seu formato, aparência, quer seja como ser humano, fonte, luz, força, ícone do universo, nuvem, é, antes de mais nada, mascará-lo de novo. É, enfim, "o dono do sim e do não diante da visão da infinita beleza." Pena que justamente, Caetano Veloso - o autor desta frase belíssima - ainda estufa o peito e se ufana por acreditar que ele não exista e por se dizer ateu. Pura bobagem, mesquinharia, quimera. Briguinha atôa fruto da competição e da vaidade humana, esta espécie tão pequena frente à grandiosidade e infinita magnitude de um ente que seria superior a ele. 
Agora, o que precisamos é de desdobrar esta questão no olho nu , juntando-se a ele, a ciência, as proposições da filosofia, do conhecimento, ou seja, todas as abordagens possíveis do saber. Porque falar em Deus, ou de Deus, não é qualquer coisa. Não podemos nos engalfinhar em teorias vazias, nas interações de ensaio e erro, pura e simplesmente. A sua grandiosidade requer respeito, cuidado, reflexões mais profundas que não podem caber em pequenos ensaios, por exemplo, como este.
 Assim, busca-se estereotipar a força da existência de Deus de muitas  formas, com todas as letras e forças. E mesmo os que defendem a sua existência fazem isto, de forma, por vezes, inconsciente. Pois, interessa ao poder da carne dos homens incautos e medíocres ofuscar e desmerecer este, que é um poder infinitamente maior. De começo inexplicável, de existência, até aqui, mesmo duvidosa - havemos de admitir - pelo menos do ponto de vista da limitada ciência, do nosso raciocínio estreito, tacanho e das formas de racionar que preservamos que saem de Descartes, chegando, no máximo à Da Vinci. Mas tudo isto é muito pouco para explicar a digna grandiosidade da existência divina.
Levantar questões sobre a existência ou não de Deus, leva-nos, necessariamente, a uma complexa multiplicidade de ideias que vão desde a afirmação ou, mesmo, a negação do fenômeno. E, se o afirmarmos, como  a exata maioria dos homens, qual a forma, o lugar, os meios, instrumentos, matérias que compõem esta maravilha?  E mais ainda, envolvendo fatores e elementos em tão grandes quantidades e qualidades que jamais poderíamos enumerar, ou, muito menos classificar dentro dos padrões normais de nossas linguagem e limitada capacidade de entendimento.
Nós, ocidentais, que vivemos "do lado de baixo do equador", somos, de maneira geral, ofuscados por duas concepções: a do divino e a da religião. E, claro, não podemos jamais confundir uma  com a outra. Pois, como já dissemos, estamos lidando com algo complexo. Que requer de nós o mais profundo modo de respeito  e veneração. Além, é claro, de muita sabedoria. É, pelo menos o que penso, como integrante da ala dos crêem na existência de uma divindade maior. Ou seja, de um Deus que nos orienta, conduz ilumina, permitindo, assim, entre outros prêmios, a vida. Longe dos estereótipos místicos primários que aí temos, mas observando pela ótica metafísica, os princípios da física quântica, o teor dos ciclos energéticos e suas grandiosidades, etc.
E ao falarmos na conexão do divino com a religiosidade, outros fatores vêm, senão, dificultar, mas reduzir nosso pensamento, o alcance de novas ideias a respeito de Deus - com letra maiúscula, por razões óbvias. Um deles é o pensamento "religioso medieval" que invade nossas crenças e cabeças desde tenra idade média. Nele, deus era tido como a imagem de seres monstruosos, que se comparavam aos mais horríveis dos dinossauros. Que cuspiam fogo cheiravam a enxofre, que destruíam céus e terras - contraditoriamente, com a visão aproximada que temos hoje, do demônio. 
Eles estilhaçavam pessoas e bichos, devendo, portanto, ser temidos e respeitados, pela ânsia, o pavor da destruição. Compondo, assim, a existência divina como algo extremamente prejudicial e negativo: um deus nervoso e mal, que punia, segregava, castigava, matava, condenava. Que ponderava as ações diante do horror do pecado, sem maiores explicações sobre suas causas e destinos. Enfim, de forma neutra e muito pouco compreensível diante da nossa limitação em pensar as coisas do alto.
Daí, caminhamos historicamente,  para o chamado "paradigma judáico-cristão". E ele ainda hoje referenda a ideia de Deus, na concepção de Jesus Cristo. Criando, para isto, uma figura humana, - um personagem - do sexo masculino, da raça branca, de olhos azuis, definindo, assim, sua fisionomia do padrão ariano ditado por Hitler, mais tarde. Cristo, por razões não-confessas de definir o axioma capitalista, nasceu e viveu pobre. Calçava sandálias manufaturadas e túnicas bem simples. Seus amigos eram os pescadores, as pessoas do povo, as prostitutas, a quem perdoava, assim como toda a sorte de pecadores: um sujeito acima de todas as dúvidas, um sábio, fazedor de milagres, mártir e exemplo, não só de vida, como de morte e ressurreição. Sendo, portanto, o verdadeiro fenômeno, acima do bem e do mal.
Jesus Cristo teria nascido de uma virgem que o concebera por obra do Espírito Santo, sem nenhum contato sexual ou matrimonial com um homem. Era. portanto, o filho unigênito de Deus pai, o que, a bem da verdade, seria magnífico, não fosse este um procedimento proibitivo do prazer da mulher. Que deveria ser submissa ao seu esposo, ao poder do falo, o que, querendo ou não o cristianismo judáico defende com toda a veemência, nas leituras e nos evangelhos que cultua, prega, impõe e dissimula. Assim, o cristianismo mantém uma hierarquia funcional, caquética, ultrapassada e absolutamente sexista. Jesus era homem, o papa, os cardeais, os bispos e párocos são todos homens. As mulheres, são, nesta feita, meros arranjos e enfeites. Cuidam da cozinha, da comida, dos feitos domésticos, para que os machos santificados comam, engordem e gozem de todo o conforto.
Ora, só aqui já se esboçam os padrões que norteiam a manipulação e a exploração das pessoas - especialmente das mulheres - o que, paradoxalmente, o cristianismo se diz contra, em absoluto. Mas que pratica em seus atos, sacramentos, celebrações. Cristo nasceu e viveu pobre para nortear as mentes de que a santidade, a divindade estariam com os pobres, de onde vem a máxima que dizem, bíblica: "É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no reino dos céus."
Acreditem se quiser, mas está aí difundida a ideia clara de que quem deseja estar próximo de Deus, ter o espírito em paz, e, por fim, salvar a sua alma, deve abdicar-se dos bens materiais, se acomodar com um salário para a subsistência básica. Para que, claro, toda a infinidade de bens e riqueza que resta, fique nas mãos e nos bolsos dos patrões, dos governos. Dos que regem a batuta da economia, neste mesmo reino onde o próprio Jesus seria o mito maior de todos. Não seria esta uma brutal incoerência? Mas, ainda não vemos e negamos a aceitar - caso contrário, dizem, iremos todos para o inferno, queimar no fogo eterno. Então aos que abocanham a grande riqueza que sobra, restaria a eles este sofrimento ? Eles querem isto? Não fica claro em nenhum ponto das escrituras sagradas, tal destinação e se mergulharmos nelas, começamos a enlouquecer. Pois este, na verdade, é o grande objetivo de tudo.
Definir, portanto, a função espiritual e divina, orientada e dirigida por Deus, num princípio dual e simplista dos pobres que se salvam e dos ricos, cuja destinação espiritual ficaria difusa e mal explicada é pouco e pobre perante a grandiosidade requerida pelo tema e as tentativas de seu entendimento o que deveria, pelo menos, ir muito mais longe. Mas o poder da igreja acha melhor ofuscar, o que precisamos entender e lutar contra, neste momento em que o País parece acordar do seu sono milenar.
Posso afirmar aqui,  que este é, sim, o maior dos cânceres que envolve a humildade . Especialmente, no mundo capitalista e nas esferas do poder, do dinheiro, da hierarquia e dos governos categoricamente erigidos encima de tais falácias, engodos e atrasos que  talvez nunca serão superados.
Restam as demais concepções, como  as crenças politeístas e tantas outras, mas que, no fundo, redundam nos mesmos males. Definindo, por baixo do pano a antiga e superada supremacia do branco, do macho e do capital e o fazem das formas mais dissimuladas. Nas quais, pelo prisma da lógica  seria impossível unir um ponto a outro.
 Contudo, os seres humanos dentro da era da alta tecnologia de dos conhecimentos profundos, ainda vivem à mercê de tais hipocrisias. Que, no final das contas, garantem privilégios e benefícios para as elites, em sua maioria, não-negras, na totalidade cheias do dinheiro e guiadas por patriarcas. Machos, maléficos que ainda agem como os primatas dos tempos draconianos da caverna.
Para concluir sim, que Deus existe. Mas, um Deus quântico, sistêmico, iluminado. Um Deus que  transpõe  e supera a necessidade de ter ou ser forma, som, fumaça, luz, energia. Deus é um fenômeno que fez, faz, fará e mantêm tudo o que está presente no real, no material, no místico, sutil, denso, complexo, compacto, das formas mais plurais. E, para tanto, cria uma sistematização que se integra de uma forma perfeita, harmônica e interativa, como a beleza da vida e a necessidade da morte. A intensa relação entre a luz, o lusco-fusco, a penumbra, a treva. O que se define em pontos de infinita  magnitude frente à nossa forma  de pensar e entender. 
Basta olhar os olhos de uma criança, que brilham. O sentimento, a fome, a capacidade de se alimentar, de beber, de eliminar os excessos, de respirar, de viver e, por que não?, também de morrer.
Deus, portanto,  não se explica. Esta simplicidade una e única que nos encanta. E que, quer de nós, apenas a consciência tranquila do dever cumprido. E, para o quê, basta apenas que escutemos os sons do coração com o qual encheu nossos peitos e encantou nossas mentes. Deus existe, não restam dúvidas. Não este Deus que imaginamos de forma conveniente o que nos deixa levar uma vida egoísta e mesquinha. E, ainda assim, julgarmos que estamos cumprindo o seu desejo. Pobres de nós. 
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Antonio da Costa Neto - é mestre em educação, professor universitário, pesquisador, conferencista e autor de livros e artigos sobre educação, qualidade de vida, ecologia humana e demais aspectos antropológicos.


quinta-feira, 27 de junho de 2013

MANIFESTANTES, VÂNDALOS, BADERNEIROS, GOVERNANTES E OUTROS... VAGABUNDOS...

           Finalmente, a população brasileira resolveu acordar e sair, os poucos privilegiados, dos berços esplêndidos, e, a maioria violentada; sofrida, de suas tocas, barracos, favelas e o que o valham, para, assim, buscar o nivelamento mais do que justo e necessário das condições de vida e cidadania. O Brasil fervilha de manifestações contra os abusos gritantes cometidos pelo governo, o poder, a elite econômica, que se dissimulam por meio de uma mídia comprometida, uma educação funcionalista e reprodutora da sociedade que temos em que poucos segregam, exploram e consomem muitos. E um modelo familiar, de religião, que faz a mesma coisa em nome de Deus, dos anjos, dos santos e por aí vai.
           O Brasil está, de norte a sul, repleto de manifestações. As pessoas estão nas ruas e o grito por melhores condições de vida, educação, saúde, transporte, saneamento ecoa num coro forte, uníssono e antes nunca ouvido nos contornos de nossa história. Mas, enquanto isto o que temos são as copas de futebol, os gols que nos causam as alegrias efêmeras e passageiras, mas que são supra valorizados pela nossa cultura, nossa economia e nosso governo. Mas isto não se dá por causa do gol, mas da extrema força psicológica no sentido de amortecer as consciências e neutralizar a dor dos conflitos reais por que passa a sociedade brasileira, estes sim, deveriam ser superados. Mas o governo dos trabalhadores prefere investir nesta ilusão passageira e o faz da forma mais dissimulada possível, por meio de suas ações burocráticas incoerentes e profundamente elitistas. E nós, o povo, precisamos, mais do que nunca, compreender isto (Veja neste blog o texto Criança que pratica esporte respeita as regras do jogo... capitalista, de V. Bracht e, certamente, você entenderá melhor esta questão).
           Claro que é justa a presença do futebol, da diversão e do prazer para o povo. Mais tais aspectos não podem ser mais importantes e valorizados do que critérios de vida, saúde, educação, cidadania. Quanto ganha um jogador que dribla, encanta e faz gols que não levam a nada? Quanto ganha um professor, um médico por melhor profissional que seja, um pedreiro, uma cozinheira? Ou seja, quem trabalha pela e para a solução dos problemas reais do povo nada vale, não é mito, celebridade, nada. Pois é preciso, simbolicamente, que o torcedor se veja na pessoa do ídolo, do atleta, que, na sua cabeça, o representa. E se meu ídolo não tem problemas financeiros, habitacionais ou de saúde, é claro, que todos eles doem menos na minha pela. É a força da mente, o fator psicológico que nossas elites fascistas sabem usar como ninguém. Daí a fome, a miséria, a opressão, a corrupção, o desmprego serem aceitos e tolerados muito mais facilmente. Por isso, nossos governantes exercem bem as suas funções de canalhas e investem tanto no futebol, na construção de estádios e no pagamento de seus mitos.
           Mas, voltemos às manifestações, que, segundo nossa mídia e autoridades, são compostas de manifestantes, badeneiros e vândalos. Mas será que manifestações prontamente pacíficas e bonitinhas levariam a alguma forma de mudança, de transformação na ordem das coisas? Creio que não. Manifestantes pacíficos serveriam só de palhaços, de bobões servindo de espetáculos dantescos como que atirados às covas dos leões famintos da antiga história da humanidade. Assim, todos são manifestantes, que o fazem de diferentes formas. Pois vândalos, baderneiros e vagabundos não participam de nenhuma forma de manifestação ou de protesto. Eles trabalham em palácios, moram bem, comem melhor ainda e estão em pleno gozo dos privilégios, pelos quais, os outros brigam. Tudo, portanto, são formas de se protestar e que não nascem de formas gratuitas, tudo tem suas causas.
Se tivéssemos educação, descência, cidadania, não estaríamos nas ruas, prontos e misturados ao quebra-quebra, dos gases lacrimogênios, das balas de borracha e da truculência de uma polícia barata, mal preparada e, por isso mesmo, vendida.
           Claro que não devemos estimular as formas mais agressivas de manifestações, mas entender as razões do porque elas acontecem. Elas não são causas de nada, são apenas o reflexo das ações dos irresponsáveis que governam, que orientam, que mandam. Baderneiros, vagabundos e vândalos são os responsáveis por tais acontecimentos e que estão, pela própria estrutura que criaram, protegidos de seus efeitos no cotidiano. São pessoas que dizem nos representar mas que estão em outros status: ganham aos tubos, tornam-se ricos, elitistas, poderosos, e, como tal, só fazem o que interessam à manutenção de suas próprias zonas de conforto.
           E nisto que precisamos nos concentrar, entender e mudar. Mesmo que, para isto, tenhamos que dar boas vindas a toda a diversidade de manifestações.O que buscamos são condições de vida e dignidade. Entendamos o raciocínio, a conduta e a história. Desçamos, portanto, do muro. Pois, só assim é que poderemos fazer alguma coisa por nós, pelos nossos. Congregando, assim, as mudanças com as quais tanto sonhamos.
                                                                                                                          

                                                                                                                           (Antonio da Costa Neto)

domingo, 9 de junho de 2013

ÉTICA, VIOLÊNCIA E RACISMO, POR MARILENA CHAUÍ

Ética, Violência e Racismo

Em uma perspectiva geral, nós podemos dizer que a ética define a figura do agente ético e das suas ações e o conjunto de noções ou de valores que balizam o campo de uma ação para que ela seja considerada ética. O agente ético é definido como um sujeito ético, isto é, como um ser racional, consciente, que sabe o que faz. Como um ser livre, que decide e escolhe o que faz, e como um ser responsável que responde por aquilo que faz.
A ação ética, por sua vez, é balizada pelas ideias de bom ou mal, justo ou injusto, virtude e vício, isto é, por valores cujo conteúdo pode variar de uma sociedade para outra ou na história de uma mesma sociedade, mas que propõe sempre uma diferença intrínseca entre condutas segundo o Bem, a Justiça e a Virtude. Assim, uma ação só será ética se for consciente, livre e responsável. Só será virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo. E a ação ética só é virtuosa se for livre, e só será livre se for autônoma, isto é, se resultar de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma ordem, a um comando, ou a uma pressão externos. Enfim, a ação só ética se realizar a natureza racional, livre e responsável do agente, e se o agente respeitar a racionalidade, a liberdade e a responsabilidade dos outros agentes, de sorte que a subjetividade ética é sempre uma intersubjetividade. A ética não é um estoque de condutas, e sim uma praxis que só existe pela ação dos sujeitos individuais e sociais e na ação deles, definidos por formas de sociabilidade que são instituídas pela própria ação humana em condições históricas materiais determinadas.
A ética, portanto, como nós acabamos de apresentá-la, se opõe evidentemente à violência. Violência é uma palavra do latim e que significa, primeiro: tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de alguém, violência significa desnaturar. Segundo, todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém. Violência significa coagir, constranger, torturar, brutalizar. Em terceiro, todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade. Violência significa violar. Quarto, todo ato de transgressão contra aquelas coisas ou ações que alguém ou alguma sociedade define como justas e como um direito. Quinto, violência é um ato de brutalidade, sevícia, abuso físico e psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e relações sociais definidas pela opressão, intimidação, medo e terror. A violência se opõe à ética, porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagens e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes, passivos.
Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, de vontade, de liberdade e de responsabilidade é tratá-lo como não humano, portanto tratá-lo violando sua natureza, fazendo-lhe violência nos cinco sentidos que demos a essa palavra. É sob esse aspecto, entre outros evidentemente, que o racismo é violência fundada na naturalização das diferenças e na legitimação da exclusão e do extermínio dos diferentes, postos como inferiores. O racismo é uma crença fundada em uma hierarquia entre raças. É uma doutrina baseada no direito de uma raça, tida como pura e superior, de dominar as demais, e ele é um sistema político. Então ele é uma crença, uma doutrina, e ele é um sistema político fundado na extrema hostilidade contra os que são postos como inferiores levando a leis de discriminação, leis de separação ou apartamento total, o apartheid, e de legitimação e destruição física dessas pessoas, isto é, o genocídio.
Para entendermos o modo de funcionamento do racismo precisamos recordar alguns dos sentidos da palavra representação. Essa palavra, que significa estar no lugar de um outro, possui três sentidos principais. O primeiro, que se encontra na própria origem do seu uso, é o sentido jurídico, isto é, desde Roma, é o advogado que se apresenta em nome de um acusado e fala em seu nome. O segundo sentido é teatral, referindo-se ao ator que se apresenta no lugar da personagem, fala por ela e como ela. O terceiro sentido é derivado dos dois primeiros, isto é, é o sentido político, refere-se àquele que é escolhido para representar publicamente a vontade, os interesses e os direitos de um outro do qual recebeu o mandato para falar no seu nome. O núcleo do lugar da representação é, portanto, estar no lugar de um outro e falar em nome desse outro.
Ora, o pensamento crítico moderno mostra o que acontece com a ideia da representação nas sociedades fundadas na divisão social das classes. Ela serve para que a classe dominante de uma sociedade ofereça uma imagem dos dominados por meio da qual ela o define como o seu outro e o constrói como naturalmente inferior. Dessa construção resultam dois efeitos políticos. No primeiro, o outro é definido racialmente como inferior, posto desprovido de pensamento, voz e vontade, precisando por isso que a classe dominante ocupe o lugar desses inferiores e fale no seu nome, ou seja, a representação é usada para legitimar a exclusão racial no espaço público. Quero frisar porque estamos lutando pela representação, é preciso lembrar que a classe dominante manipula a noção de representação para produzir a exclusão. Em segundo lugar, a classe dominante considera este que é inferior como um perigo, isso por isso ela legitima o seu extermínio. Então nós precisamos lidar com todas as contradições da representação, porque a noção de representação em uma sociedade racista e dividida em classes legitima o racismo, a opressão, a exclusão, e o extermínio. Nós temos que desconstruir a noção dominante de representação e criar uma outra, senão não faz sentido nós irmos para o espaço público com a mesma ideia de representação, que é aquela que nos sufoca.
No caso do Brasil esse dois efeitos se encontram presentes, mas eles são sistematicamente ocultados por um mito, o mito da não violência brasileira, que permite afirmar que não há racismo no Brasil. Por isso é necessário examinar, ainda que brevemente, a representação imaginária que sustenta o mito da não violência brasileira. Passo então ao meu segundo tópico, o mito da não violência.
Mito da não violência
Por que mito? Primeiro porque um mito opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo, e que por isso são transferidos de uma solução imaginária que torna suportável e justificável a realidade tal como ela é. Um mito nega e justifica a realidade negada por ele. Segundo, um mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas em um grau tal que não são percebidas como crenças, mas tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Um mito substitui a realidade pela representação imaginária e torna invisível a realidade existente. Terceiro, um mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam, isso é, um mito produz valores, ideias, comportamentos e práticas que o reiteram pela ação da sociedade. Um mito não é um simples pensamento, mas uma forma de ação.
A mitologia da não violência brasileira opera alguns mecanismos ideológicos que garantem a sua conservação, mesmo contra todos os dados factuais contra ela. O primeiro mecanismo é o da exclusão. Afirma-se que a nação brasileira é não violenta e, se houver violência, ela é praticada por gente que não faz parte da Nação, mesmo que tenha nascido e viva no Brasil. O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um “nós brasileiros não violentos” e “eles não brasileiros” violentos, eles não fazem parte de nós.
O segundo é o mecanismo da distinção. Distinguisse o essencial do acidental, isto é, por essência os brasileiros não são violentos e, portanto a violência, quando ela existe, é acidental, é um acontecimento efêmero, passageiro e por isso se diz que uma epidemia de violência, um surto de violência, que está cristalizado na superfície de um tempo e de uma espaço definidos, ela é vista como superável e ela deixa intacta a nossa essência não violenta.
O terceiro mecanismo é jurídico, a violência fica circunscrita ao campo da delinquência e da criminalidade, e o crime é definido como ataque à propriedade privada, o furto, o roubo, latrocínio. Esse mecanismo jurídico permite de um lado determinar quem são os agentes violentos, em função dos mecanismos anteriores, da exclusão e da distinção, os agentes violentos são os pobres, e entre os pobres, evidentemente, os negros, e legitimar a ação da polícia contra a população pobre, e em particular contra os negros. A ação policial pode ser às vezes considerada violenta, ela recebe o nome de chacina, massacre quando de uma só vez e sem motivo o número de assassinados é elevado. No restante das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural, uma vez que ele protege o “nós não violentos” contra o “eles violentos”.
Finalmente o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos, ideias e valores violentos como se fossem não violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção à natural fragilidade feminina – proteção que inclui a ideia de que as mulheres precisam ser protegidas delas próprias, pois como todos sabem o estupro é um ato feminino de provocação e sedução. O paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a naturalidade e indolência dos negros, os quais, como todos sabem são incapazes e incompetentes.
O exemplo luminoso desse mecanismo de inversão tem sido a reação de uma parte da sociedade ao PROUNI, ao ENEM, às cotas. Antes de prosseguir eu quero contar para vocês um episódio. Eu tenho uma parente (todo mundo sempre tem um parente, né?) que ligou para mim há mais ou menos um mês: “Marilena, você não sabe o que aconteceu, o que está acontecendo”, eu disse, “Aparecida, o que é?”, [Ela disse] “Você não sabe, o Governo acaba de introduzir o racismo no Brasil”, e eu disse “É mesmo, Aparecida, e como foi isso?”, [Ela] “Ah, PROUNI, ENEM, cotas, vai ser a opressão dos estudantes brancos, vai ser opressão nossa, o Governo está introduzindo o racismo no Brasil”. Então esse é um típico mecanismo de exercício da violência através da inversão do real. Muitos dizem que se trata da opressão racial contra os brancos, e no momento de entrada da universidade trata-se do estímulo ao ódio contra os negros durante a sua permanência universitária, em suma, o PROUNI, o ENEM, as cota, seria, como disse a minha parenta, a criação do racismo no Brasil.
Em resumo, no Brasil a violência não é percebida ali mesmo onde ela se origina, ali mesmo onde ela se define como propriamente dita, isto é como toda prática e toda ideia reduz um sujeito à condição de coisa que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do isso, a sociedade não percebe que as próprias explicações que ela oferece para violência são violentas, porque ela está cega ao lugar efetivo da produção da violência. Isto é, a estrutura da sociedade brasileira, que em sua violência cotidiana, reitera, alimenta e repete o mito da não violência.
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é denominada pelo predomínio do espaço privado, portanto os interesses econômicos, sobre o espaço público, e tendo no centro a hierarquia familiar, a sociedade é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos. Nela, as relações sociais intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior que manda e um inferior que obedece (Sabe com quem está falando?). As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito, nem como sujeito de direitos, e jamais é reconhecido como subjetividade e alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de parentesco, de compadrio, isto é, de cumplicidade. E entre aqueles que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da cooptação, e quando a desigualdade é muito marcada assume pura e simplesmente a forma da opressão.
Assim a naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo que a naturalização das diferenças étnicas, consideradas desigualdades raciais entre superiores e inferiores, desigualdades religiosas e de gênero, assim como naturalização de todas as formas visíveis e invisíveis da violência. Nós podemos resumir simplificadamente os principais traços da nossa violência social, considerando a sociedade brasileira oligárquica, autoritária, vertical, polarizada entre a carência e o privilégio e com bloqueios e resistências à instituição dos direitos civis, econômicos, sociais e culturais.
Nossa sociedade conheceu a cidadania através de uma figura inédita, o senhor (de escravos) cidadão, e concebe a cidadania como privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidirem. Pelo mesmo motivo, no caso das camadas populares, os direitos em lugar de aparecerem conquistas dos movimentos sociais e populares organizados, são sempre apresentados como concessão ou outorga feitas pelo Estado, dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio do governante. Em nossa sociedade, as diferenças e assimetrias sociais pessoais são imediatamente transformadas em desigualdades naturais, que permitem a legitimidade da hierarquia de mando e obediência. Na nossa sociedade as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para repressão e a opressão, jamais definindo direitos e deveres concretos e compreensíveis para todos. Toda essa situação é claramente reconhecida pelos trabalhadores quando eles afirmam que a justiça só existe para os ricos.
O poder judiciário é claramente reconhecido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social. Para os grandes, a lei é privilégio, para as camadas populares, repressão. A lei não figura o polo público do poder e da regulação dos conflitos, não define direitos e deveres dos cidadãos, porque em nosso país a tarefa é da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por esse motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas. Situação violenta que é miticamente transformada em um traço positivo quando a transgressão é elogiada como o jeitinho brasileiro. Os partidos políticos tendem a ser clubes privados das oligarquias locais e regionais, sempre tomam a forma clientelística na qual a relação é de tutela e de favor, isto é, os interesses econômicos dos dominantes. A indistinção entre o público e o privado é a estrutura mesma do campo social e do campo político. É uma sociedade que por isso bloqueia a esfera pública da opinião como expressão de interesses e grupos, classes sociais diferenciadios e antagônicas. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas é um conjunto de ações determinadas que se traduzem em uma maneira determinada de lidar com a esfera da opinião.
Os meios de comunicação monopolizam a informação e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como ignorância, atraso e perigo. É uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explícita de contradições, justamente porque leva as desigualdades sociais ao limite e não pode aceitá-las de volta sequer através da chamada rotinização dos conflitos de interesses (que é como opera na democracia liberal). Pelo contrário, a classe dominante exorciza o seu horror às contradições produzindo uma ideologia da indivisão nacional e da união nacional a qualquer preço, por isso ela recusa perceber e trabalhar os conflitos e as contradições sociais, econômicas e políticas enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem mítica da boa sociedade indivisa, una, pacífica, ordeira e generosa, que não conhece violência.
Contradições e conflitos não são ignorados, eles recebem uma significação precisa, eles são considerados sinônimos de perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar. A sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilegio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e agora a consolidação da democracia.
A democracia e criação de direitos
Uma sociedade – e não apenas uma forma de Governo de Estado – é democrática quando institui algo profundo que é condição do próprio regime político. Ou seja, quando institui direitos. Essa instituição de direitos é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática realiza-se socialmente como luta social, e politicamente como um contrapoder social que determina, dirige, controla, limita, modifica a ação estatal e o poder dos governantes. Fundada na noção de direitos e de criação de direitos a democracia está apta a diferenciá-los de privilégio e carências.
Um privilégio é por definição algo particular, que não pode generalizar-se em um interesse, nem universalizar-se num direito, sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta, também particular ou específica, que desemboca em uma demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se num interesse comum, nem universalizar-se em um direito. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular nem específico, ele é geral e universal. Universal, seja porque ele é o mesmo válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque, embora diferenciado, ele é reconhecido como um direito por todos, como é o caso dos chamados direitos das minorias.
Uma das práticas mais importantes da políticas democrática consiste justamente em propiciar ações capazes de unificar a dispersão e a particularidade das carências para que se tornem os interesses comuns e, graças a essa generalidade dos interesses, fazer com que elas alcancem a esfera universal dos direitos. Em outras palavras, privilégios e carências determinam a desigualdade econômica, social e política, contrariando o principio democrático da igualdade, de sorte que a passagem das carências dispersas a interesses comuns e dos interesses comuns a direitos é a luta pela igualdade.
Avaliamos o alcance da cidadania popular quando ela tem força para desfazer privilégios, seja porque os faz passar a interesses comuns, seja porque os faz perder a legitimidade diante dos direitos. E também quando tem força para fazer as carências passarem a condição à condição de interesses comuns e, desses, a direitos universais. O que caracteriza a democracia, retomando o que disse Valdir Pires, é que a democracia é o único regime político e a única forma social verdadeiramente histórica, ou seja, ela está aberta ao tempo, e ela está aberta ao tempo porque ela se define pela criação de novos direitos. Então, na medida em que a democracia é o processo contínuo de criação de novos direitos, ela é uma sociedade temporal e uma política temporal ou histórica no sentido forte da palavra.
Modificações da estrutura social do Brasil 
Eu passo então para o que aconteceu conosco nesse processo de consolidação democrática e o surgimento, todo mundo diz que surgiu uma nova classe média. Meu combate, meu embate, a minha luta é dizer que surgiu uma nova classe trabalhadora e não uma classe média.
Estudos, pesquisas e análises mostram que houve uma mudança profunda na composição da sociedade brasileira, graças aos programas governamentais de transferência de renda, inclusão social e erradicação da pobreza, à política econômica de pleno emprego e elevação de salário mínimo, a recuperação de parte dos direitos sociais das classes populares, sobretudo alimentação, saúde, educação e moradia, à articulação desses programas com o principio da igualdade social e o principio do desenvolvimento sustentável e aos primeiros passos de uma possível reforma agrária que permitam as populações do campo não recorrer à migração forçada em direção aos centros urbanos.
De modo geral, utilizando a classificação dos Institutos de Pesquisa de Mercado e da Sociologia de origem Norte-Americana, costuma-se organizar a sociedade em uma pirâmide seccionada em classes designadas como A, B, C, D e E, tomando como critério a renda, a propriedade de bens móveis e imóveis, a escolaridade e a ocupação ou profissão. Por esse critério chegou-se a conclusão de que, entre 2003 e 2011, as classes D e E diminuíram consideravelmente, passando de 26,2 milhões de pessoas a 63,5 milhões. Também no topo da pirâmide, houve crescimento das classes A e B, que passaram de 13,3 milhões de pessoas a 22,5 milhões. Mas a expressão verdadeiramente espetacular ocorreu na classe C, que passou de 65,8 milhões de pessoas a 105,4 milhões.
Essa expansão tem levado à afirmação de que cresceu a classe média brasileira, ou melhor, que teria surgido uma nova classe média no país. Sabemos, entretanto, que há uma outra maneira de analisar a divisão social das classes, tomando como critério a forma da propriedade. No modo de produção capitalista, a classe dominante é proprietária privada dos meios sociais de produção, o capital produtivo e capital financeiro. A classe trabalhadora, excluída desses meios de produção e neles incluída como força produtiva, é “proprietária” das forças de trabalho vendida e comprada sob a forma do salário.
Marx falava em pequena burguesia para indicar uma classe social que não se situava nos dois pólos da divisão social constituinte do modo de produção capitalista. Ele usava essa expressão para indicar, por um lado, a proximidade dessa classe do ponto de vista social e ideológico, com a burguesia e não com os trabalhadores. E por outro lado ele usava essa expressão para indicar que, embora ela não fosse proprietária privada dos meios sociais de produção, ela poderia ser proprietária privada de bens móveis e imóveis. Numa palavra, ela se encontra fora do núcleo central do capitalismo por não ser detentora do capital e dos meios sociais de produção e não ser detentora da força de trabalho que produz capital. Ela se situava, tempos atrás, nas chamadas profissões liberais, na burocracia estatal ou serviços públicos, na burocracia empresarial, a gerência, na pequena propriedade fundiária e no pequeno comércio.
É a sociologia – sobretudo de inspiração estadunidense – que introduz a noção de classe média para designar do setor socioeconômico, empregando os critérios de renda, escolaridade, profissão e consumo (não entra o critério de propriedade, se entrasse o critério da propriedade essa classificação estaria perdida). Produzindo assim as pirâmides das classes A, B, C, D e E, e a célebre ideia da mobilidade social para descrever a passagem de uma classe de um individua para outra. Se abandonarmos a descrição sociológica, se ficarmos com a constituição das classes sociais no modo de produção capitalista, e se considerarmos as pesquisas atuais e os números que elas apresentam relativos à diminuição e o aumento do contingente nas três classes sociais, nós poderemos chegar a algumas conclusões.
Primeiro, os projetos e programas de transferências de renda e garantia de direitos sociais – educação, saúde, moradia, alimentação – e econômicos – o aumento do salário mínimo, de pleno emprego, reforma agrária, cooperativas da economia solidária, etc. – indicam que o cresceu no Brasil foi a classe trabalhadora, cuja composição, entretanto, é complexa, heterogênea e não se limita aos operários industriais e agrícolas, porque a classe trabalhadora a partir da economia neoliberal não se situa apenas no campo do trabalho industrial. Esse é um ponto decisivo. Se a gente não levar em conta a modificação que a economia neoliberal produziu na economia, ao fragmentar a produção econômica, dispersá-la através do planeta inteiro e reuni-la apenas no momento final de montagem e consumo e, portanto desfazer as formas clássicas da classe trabalhadora, nós não vamos entender por que tem uma nova classe trabalhadora. Por exemplo, além da fragmentação que leva, por exemplo, a um crescimento, em determinados pontos do planeta, da economia familiar.
Um outro elemento é a terceirização, isto é, uma série de atividades que faziam parte da grande planta industrial fordista, deixaram de fazer parte dessa grande planta e foram terceirizadas. Em uma classificação anterior nós chamaríamos todos esse trabalhadores de trabalhadores a indústria. É porque terceirizou que nós dizemos que eles não estão na indústria, mas eles estão na indústria, eles são um ramo da indústria. Então a um conjunto de equívocos, sobretudo de tipo sociológico e econômico, que não permite compreender que tem, no mundo inteiro, não é só no Brasil, uma nova classe trabalhadora heterogênea, complexa, e que nós conhecemos muito mal por enquanto.
Em outras palavras, o crescimento de assalariados no setor dos serviços não é crescimento da classe média, e sim crescimento de uma nova classe trabalhadora heterogênea definida por diferenças de escolaridade, habilidades e competências, que foram determinadas pela tecnociência. Mas a tecnociência é a grande força produtiva.
Eu sei que os intelectuais e cientistas ficam muito desesperados com essa ideia, porque eles sempre acharam que, se eram de esquerda, que eles se aliavam a trabalhadores, mas eles próprios não pertenciam à classe trabalhadora. Agora não tem jeito, a partir do momento em que a ciência e a tecnologia se tornaram força produtiva, os intelectuais e os cientistas são trabalhadores. Eles vão esbravejar, vociferar, eles vão ficar tristes, mas são parte constitutiva da classe trabalhadora. Eles estão fazendo acumulação de capital. Então [usar o] setor de serviço para definir classe média já era, não define mais, porque mudou o sentido do setor de serviços.
Então de fato, no capitalismo industrial, as ciências – ainda que algumas delas fossem autônomas, fossem financiadas pelo capital – se realizavam em sua maioria em pesquisas autônomas, cujos resultados poderiam levar a tecnologias aplicadas pelo capital na produção econômica. Essa situação significava que cientistas e técnicos pertenciam à classe média. Hoje, porém, as ciências e as técnicas se tornaram-se parte essencial da acumulação do capital, se tornaram as principais forças produtivas, e por isso cientista e técnicos passaram da classe média à classe trabalhadora como produtores de bens e serviços articulados à relação entre o capital e a tecnociência. Dessa maneira, renda, propriedade escolaridade não são critérios para distinguir entre os membros da classe trabalhadora e da classe média. De modo geral os da classe trabalhadora são muito mais sabidos, mais escolarizados do que a classe média que continua ignorante, que é a sua marca fundamental.
Terceiro, o critério da profissão liberal também se tornou problemático para definir a classe média, uma vez que a nova forma do capital levou à formação de grandes empresas de saúde, advocacia, comunicação, educação, alimentação, de maneira que seus componentes se dividem entre os proprietários privados dessas empresas e os assalariados delas, os advogados, os médicos, que devem ser colocados – mesmo que eles vociferem contra isso – na classe trabalhadora.
Quatro, a figura da pequena propriedade particular também não é critério para definir a classe média, porque a economia neoliberal, ao desmontar o modelo fordista – ao fragmentar e terceirizar o trabalho produtivo em milhares de microempresas, grande parte delas familiares, dependentes do capital transnacional – transformou esses pequenos empresários em força produtiva que, juntamente com os prestadores individuais de serviços – seja na condição de trabalhadores precários, seja na condição de trabalhadores informais –, é dirigida e dominada pelos oligopólios multinacionais. Em suma, os transformou em uma parte da nova classe trabalhadora mundial. Restaram, portanto, para classe media as burocracias estatal e empresarial, os serviços públicos, a pequena propriedade fundiária e o pequeno comércio não filiado às grandes redes de oligopólios transnacionais.
No Brasil, a classe média se beneficiou com as políticas sociais dos últimos dez anos. Ela também cresceu, prosperou, mas não há uma nova classe média no Brasil. Diremos que a nova classe trabalhadora brasileira começa finalmente a ter acesso aos direitos sociais e a se tornar participante ativa do consumo de massa. Como a tradição autoritária da sociedade brasileira não pode admitir a existência de uma classe trabalhadora que não seja substituída pelas miseráveis classes deserdados da terra, os pobres desnutridos, analfabetos e incompetentes, imediatamente passou a afirmar que existia uma nova classe média, pois é menos perigoso para a ordem estabelecida dizer isso do que admitir que uma nova classe trabalhadora surgiu como protagonista social e político.
Por mais que no Brasil as políticas econômicas e sociais tenham avançado em direção à democracia, as condições impostas pela economia neoliberal determinaram como vimos a difusão por toda sociedade da ideia da racionalidade do mercado como competição e promessa de sucesso. Visto que a nova classe trabalhadora brasileira se constituiu no interior desse momento neoliberal do capitalismo, marcado pela fragmentação e dispersão do trabalho produtivo, da terceirização, precariedade e informalidade do trabalho, percebido como prestação de serviço de indivíduos independentes que se relacionam com outros indivíduos independentes na esfera do mercado de bens e serviços, essa nova classe trabalhadora por isso se torna propensa a aderir ao individualismo competitivo e agressivo difundido pela ideologia da classe média. Em outras palavras, essa nova classe trabalhadora tende a aderir ao modo de aparecer do social que aparece como conjunto heterogêneo de indivíduos de interesses particulares em competição.
Ela própria, a classe trabalhadora, tende a acreditar que faz ela parte de uma nova classe média brasileira. À guisa de conclusão, se a política democrática corresponde a uma sociedade democrática e se no Brasil a sociedade é violenta, autoritária, hierárquica, vertical, oligárquica, marcada pelos preconceitos étnicos e de classe, polarizada entre a carência e o privilégio, só será possível dar continuidade a uma política democrática enfrentando essa estrutura social.
Propostas
A ideia de inclusão social não é suficiente para derrubar essa estrutura social e a polarização carência/privilégio. A polarização só pode ser enfrentada se o racismo e o privilégio de classe forem enfrentados. E eles só serão enfrentados, creio eu, por meio de quatro grandes ações políticas: 
1. A reforma tributária, que opere sobre a vergonhosa concentração da renda e faça o Estado passar da política de transferência de renda para distribuição e redistribuição da renda.
 2. A reforma política, que dê uma dimensão republicana às instituições públicas e permita redefinir o sentido público da representação.
3. A reforma social, que consolide o Estado de Bem-Estar social com uma política de Estado e não como um programa de Governo.
 4. E uma política de cidadania cultural que comece pela educação e alcance o conjunto das artes de maneira a desmontar o imaginário autoritário, quebrando o monopólio da classe dominante sobre a esfera dos bens simbólicos e a sua difusão, e quebrando a sua conservação por meio da classe média.
Mas a ação do Estado só pode ir até esse ponto. O restante, para construção de uma sociedade democrática, igualitária e sem racismo só pode ser a praxis dos movimentos sociais e populares organizados como sujeito de sua ação, isto é, como autênticos representantes de suas demandas, reivindicações e direitos."

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Professora Doutora Marilena Chauí, da Universidade de São Paulo


sábado, 8 de junho de 2013

A MÚSICA DE CHICO BUARQUE (A PERMUTA DOS SANTOS) E A POLÍTICA BRASILEIRA


A PERMUTA DOS SANTOS, DE CHICO BUARQUE E A NOSSA REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA


Ouvi hoje a música A permuta dos santos, de Chico Buarque, lindamente interpretada por Mônica Salmaso (embora eu seja daqueles que preferem ouvir Chico com Chico). E fiquei pensando num fenômeno que vem me incomodando muito, depois de assistir a algumas cenas dantescas  dentro da realidade política de nossos dias. A música, conforme vocês podem conferir, fala da necessidade de se incomodar os santos para que eles se lembrem do povo que sofre. E possam, então, providenciar os milagres e as melhoras que tanto deles se esperam.
É aquela dinâmica que dita a antropologia, quando retrata a  competitividade humana que podemos, didaticamente, sintetizar da seguinte forma: O ser humano, como todos os mamíferos e animais de sangue quente são, profundamente, competitivos. O homem, por sua racionalidade e inteligência, o é de forma muito mais forte e sistematizada. Pois ele, por ser inteligente, blefa, engana, joga, cria associa elementos da intersubjetividade para, com isto, justificar os próprios benefícios. A partir de quê, tudo faz, pensa e realiza para perpetuar e garantir estes mesmos privilégios, e, assim, sempre.
O que se sente na pele é ponto básico de sustentação para as atitudes, as ações da pessoa. O que se subjuga por meio dos critérios técnicos, das ideologias, que geram normas, leis e condutas, sempre privilegiando aqueles que as fazem em detrimento de quem as cumpre.
 Daí, pergunto, como pode um parlamentar, um político - deputado, senador, etc. - representar o povo brasileiro, se as condições de vida deles que governam são completamente contraditórias e até antagônicas às daqueles que são governados? E o pior, numa relação custo/benefício em favor deles próprios  sem considerar as reais condições de vida do povo.
Se como parlamentar represento o povo que passa fome, mora mal, usa o transporte urbano de péssima qualidade, está sem trabalho, sem renda, etc. no íntimo das pessoas existiriam condições reais  para que isto acontecesse? E as regras que norteiam tais processos? Quem as faz? Quem as cumpre? Este sim, ao meu ver, o grande, o complexo problema com o qual convivemos diuturnamente, e, sobre ele é que deveríamos nos debruçar para resolver de forma definitiva, não há, outra saída. Ou descentralizamos - com a máxima urgência - o poder de decidir e a riqueza produzida, e, mais rápido ainda, desassociando uma coisa da outra, ou sucumbiremos todos ao caos absoluto que circunda, há milênios, nossa realidade e nossas vidas.
A floclórica e bela música do Chico fala sobre a retirada dos santos de suas casas, indo de carroça e de jumento para as igrejas alheias, para que assim, incomodados, por estarem no lugar que não lhes pertencem  se lembrem de fazer o que é preciso para que seus fiéis, que sofrem dos mesmos males, possam receber os benefícios que lhes são próprios: casa, chuva, comida, conforto, vida, saúde, cidadania, etc. 
Se se constata a lógica que os santos devam ser  incomodados, para assim, fazerem os  milagres, não aconteceria o mesmo para que os políticos pudessem conceber e aprovar leis, decretos e políticas públicas que revertam, de fato nos benefícios concretos das pessoas do povo?
 Quem mora bem quer melhor sempre melhor ainda, o que não se torna possível se todos tiverem o direito do bem morar e assim, sucessivamente. Não teríamos recursos, condições, espaço para que todos morem tão bem. É preciso, portanto, sucumbir a maioria a morar em periferias, a se virarem em kitnets mínimas ou barracos de papelão e lona  para que a elite, da qual fazem parte os  políticos; pelas condições de vida que lhes são próprias se refestelem no eterno bem-estar e nas excelentes condições de vida que lhes são dadas.
Assim pensando e sob a "batuta buarqueana" imagino que, para se legitimar e democratizar a representatividade política seria preciso que os governantes sofressem na pele o que sofre o povo que eles governam, por quem foram eleitos e, em última análise, deveriam representar. É preciso que o político ganhe o que ganha o povo, coma o que ele come, se transporte nos ônibus miseráveis, sujos, lotados e caros. Tenham filhos nas escolas públicas caindo aos pedaços. Precisem  dos hospitais e serviços de saúde que atiram como esmola a um povo que morre à mingua, sem força ou consciência para gritar, ou mesmo, estender a mão em súplica. Pois é induzido para não enxergar tais processos e se acomodar na mandala do chute a gol, no ganho exclusivo do galã da novela, ou nas meias-verdades-meias-mentiras com que a mídia se presta a para informar as massas, numa inquieta repetitória de fome, miséria, opressão, violência, etc. etc. etc.
Finalizando, a música fala que, se os santos incomodados,  sem conforto e privacidade. Se mesmo assim, eles não fizerem os milagres esperados, não intercedendo junto ao universo para que os problemas sejam resolvidos e as dores minoradas, eles seriam, então, abandonados dentro de seus sofrimentos e tendo que se virarem sozinhos. Voltando para casa a pé, sem as procissões que os tiraram de suas respectivas zonas de conforto, ou sejam das igrejas a cada um deles dedicadas onde viviam, confortavelmente, como os políticos em seus palácios.
Em síntese, quem representa povo tem que ter vida, sabores, bens e coisas iguais ao povo e não, o contrário. Só posso representar em assembleia os alunos de uma instituição, por exemplo, se eu for aluno dela. Então como pode o político, humano e competitivo representar quem passa fome se ele nunca soube o que isto? Quem mora na periferia sob o sol e a chuva enquanto o seu representante degusta de palácios, mansões, banquetes, não tem contas a pagar e o dinheiro sobra a rodo, para implementar mais medidas em seu favor, e, igualmente, contra o povo?
A ordem é portanto,uma só: permutar povo e político as condições de vida real, para que todos possam sentir na pele as mesmas angústias, carências, dores e sofrimentos. Caso contrário tudo não passa de uma balela, de uma escabrosa, mas "elegantizada" mentira que nos impõem ao longo de toda a história. Povo pobre precisa de político pobre que o represente, de fato. Que busque a solução para os problemas da própria pobreza: educação, saúde, alimentação, moradia, ser cidadão...
...E o mestre Chico Buarque dá-nos, com isto uma bela lição de política. Resta-nos aprendê-la e fazer a permuta, o que, por enquanto, será bem difícil. Pois já foram vendidos todos os ingressos para a Copa das Confederações 2013. É, vamos de novo andar muitos quilômetros para trás. Rumo ao caos.

Dá-lhe Chico!!!!


(Antonio da Costa Neto)

sábado, 1 de junho de 2013

PODEMOS SIM, TRANSFORMAR O MUNDO...

...Suponhamos que comecemos fazendo uma lista dos problemas do mundo de hoje que, em princípio, podem ser resolvidos com a moderna tecnologia.
Em princípio, temos a capacidade tecnológica para alimentar, abrigar, proteger, dar carinho, afeto, calor humano e vestir adequadamente todos os habitantes do mundo.
Em princípio, temos a capacidade tecnológica para assegurar o suficiente cuidado médico, possibilitando uma saúde de alta qualidade para todos os habitantes do mundo.
Em princípio, temos a capacidade tecnológica, humana e pedagógica para oferecer suficiente educação a todos os habitantes do mundo para gozarem de uma vida intelectual e cultural madura.
Em princípio, temos a capacidade tecnológica de colocar fora da lei a guerra e instituir sanções sociais que evitarão o conflito ilegal e o derramamento de sangue de milhares de inocentes.
Em princípio, temos a capacidade de criar em todas as sociedades uma liberdade de opinião, pensamento e atitude que reduzirá ao mínimo os constrangimentos ilegítimos impostos pela sociedade ao indivíduo.
Em princípio, temos a capacidade de desenvolver inúmeras novas tecnologias  que libertarão novas fontes de energia natural  e poder para o pleno atendimento das emergências físicas, sociais, políticas, éticas, culturais, psicológicas e ecológicas em todo o mundo.
Em princípio, temos a capacidade de organizar as sociedades do mundo atual para realizarem planos de saúde, educação, liberdade humana, produção de alimentos, habitação, infra-estrutura desenvolvida a fim de resolver todos os problemas da pobreza, da miséria, fome, violência,  mortalidade infantil, degradação da natureza, educação e o desenvolvimento de novos recursos necessários para assegurar uma boa qualidade de vida para todos, indistintamente.
Claro, todos sabemos que o ser humano é capaz de fazer todas estas coisas. Por que então não as faz? Haverá um perverso traço de caráter que corre através da espécie humana e que torna um ser humano indiferente à condição do outro? Ou estamos essencialmente em face de um tipo de degradação moral que nos permite ignorar nosso vizinho em razão do nosso próprio interesse?
Existirá uma razão mais profunda e sutil pela qual, a despeito de nossa imensa capacidade tecnológica, não estamos ainda em condições de resolver os principais problemas do mundo? Se passarmos os olhos pela lista dos problemas, há um aspecto deles que logo se sobrepõe parcialmente. E claro que a solução de um problema tem muito haver com a solução de outro, que, por sua vez, tem muito haver com a solução de todos.
São tão interligados e imbricados de fato, que não é de modo algum claro por onde devemos começar. Suponhamos, por exemplo, que concebamos a idéia de que o primeiro problema a ser solucionado é o de alimentar, abrigar, assistir e vestir adequadamente todos os habitantes do mundo. Como começaríamos a resolver este problema? A capacidade tecnológica existe, a capacitação profissional, também. Podemos produzir todo o alimento necessário para se chegar a este resultado, os materiais de construção que ofereceriam o abrigo, os tecidos que vestiriam cada indivíduo e a assistência afetiva, moral e psicológica para cada um deles. Então, por que não fazemos isso?
A resposta é que não estamos organizados para fazê-lo.
Não fomos educados para fazê-lo.
A nossas exacerbadas competição e alienação não nos deixa fazê-lo.
Enfim, não queremos fazê-lo.
                                                                                                                   (C. West. Churchman)