sábado, 27 de setembro de 2008

PARABÉNS, SILVÂNIA!...


Todo mundo tem uma paixão secreta, acredito! Seja ela qual for. Mas sei também que todo mundo tem uma paixão explicita. E aqui venho deixar escancarada e clara uma das minhas. Domingo, 05 de outubro pode ser para muita gente uma data comum. Um dia sem nenhum brilho especial. Uma ou outra pessoa pode até puxar pela memória e ser pega de surpresa ao lembrar, ainda que de maneira atrasada, o aniversário de alguém. De um acontecimento marcante, um amor, um beijo, alguma coisa feliz, gratificante.
Eu, porém, vou mais longe, se me permitem. Vou voltar no tempo e arriscar algumas emoções. Pois, 05 de outubro é a data de aniversário da minha cidade natal. A minha amada Silvânia, a antiga e inesquecível Bonfim, de todos nós. "Terra que ensinou Goiás a ler, a ter cultura, sendo sua Atenas". Cidade que viveu tempos memoráveis do cinema. Onde olhos curiosos acompanhavam ansiosos o mundo que se descortinava frente às enormes telas do Cine Teatro Municipal e do Cinema do Seu Aurelino, na rua do Neves de Siqueira. Ou do teatro das freiras salesianas e da arte suprema e inesquecível de D. Nair Damásio.
Ali, muitos se conheceram e, possivelmente, se apaixonaram. Apertaram as mãos às escondidas, trocaram o primeiro beijo, a primeira carícia carregada de suspiro como se a vida quisesse imitar a arte. E conseguisse. Cidade que tem às margens a telúrica Estação Ferroviária, um por do sol poético. Cheiro do eucalipto, as águas do Rio Vermelho, as velhas histórias de Zé Caetano, Josito, D. Maria Teresa. Silvânia do saudoso Manezão, das figuras humanas tão suas, tão próprias: Hermínio Cotrim, Urbano Caetano, D. Fleuza Corrêa, Chico da Altina, Sinhô.
Silvânia, fragmentos de poemas, sempre inacabados. A voz da Salete encantando multidões. Gracinha do Acrísio, um misto de beleza, carisma, inteligência. Maria Érika, sua arte, sua força. Carmita, seu sorriso, sua máquina de costura, sua batalha incansável, por anos, até hoje, até sempre. Silvânia do Inácio, o anjo sem asas. Do Astrogildo, homem bom, sensível, bem-humorado, uma pessoa maravilhosa. Fazendo par com a sua Cota e ciranda com seus filhos e netos. Silvânia dos Damásios, de D. Darvina, minha eterna professora, com quem muito aprendi. Dos jardins paradisíacos de D. Inácia Leite. As fazendihas com suas porteiras rangendo, suas vacas, galinhas, hortas, flores ao vento. E, logicamente, dos Silva, que lhe deram o nome, a graça, o encantamento da simplicidade que tudo dignifica.
Que Tem os famosos colégios Anchieta, Nossa Senhora Auxiliadora e o Aprendizado Padre Lancísio. Além do José Paschoal, de educação rigorosa, desdobrando as tradições da clássica pedagogia, dos ensinamentos igualmente especiais e profundos como os suspiros, as saudades, a bondade no coração do seu povo. A Catedral Nossa Senhora do Rosário e a Igreja Matriz do Senhor do Bonfim, com sua pracinha de cidade de interior. Um coreto melancólico e solitário, que nos faz voltar no tempo. Terra de gente católica, que tem como símbolo da fé um Cristo de braços abertos.
Silvânia deve estar em festa. Antes estaria. E era festa das grandes. Os desfiles em comemoração a sua fundação, eram verdadeiros motivos de grandes expectativas. Os ensaios das "bandas" de cada escola se sucediam cansativos, mas cheios de entusiasmos. Cada um queria render sua homenagem. Numa das principais avenidas da cidade os dobrados emocionavam o público. Um amontoado de gente formava um verdadeiro corredor humano para ver o desfile passar. Alguns nem respiravam. Cada centímetro era disputadíssimo. E a cidade lá, acolhendo cada nota como prêmio de uma segura gratidão. Silvânia dos festivais, dos encontros de juventude, dos cursilhos de cristandade, das festas dos ex-alunos. Dos espetáculos, das semanas de retiro, dos jogos escolares. Os uniformes de gala, as gincanas.
As excursões para Aparecida, D. Rilza sorridente e amorosa. Dr. Helvécio atendendo as pessoas no seu casarão da Praça. Os ciprestes do quintal de D. Quetinha. A livraria da Nenzita, Vivin, Maria Preta fazendo graças. Os velórios das pessoas ricas. As pamonhadas, a feira ao lado do Céssi. Os pomares de jabuticabeiras, o rádio de D. Nestina sempre no último volume. Os anúncios do Ditão no alto-falante da igreja.
A visita da imagem do Divino Pai Eterno e toda gente animada decorando suas portas, iluminando a graça das toalhas brancas e bordadas ao calor das mãos humanas, calejadas, sofridas. A cidade que tem como um dos cartões postais a Praça do Rosário. Famosa por sua fonte luminosa onde todos se encontram durante o final de semana e ainda vivem ali os grandes carnavais. Os bailes do Clube Recreativo, as festas religiosas e profanas. A Avenida, o Bar Patropi, o saudoso Tôen do Clóvis...
A casa deliciosa de Seu Cipriano, onde íamos estudar entre paredes de adobo, terreiro de margaridas, cortinas estampadas ao vento. E aquele portão lá na rua, longe da casa onde a gente batia e ficava esperando a pessoa e o sorriso. Os meninos do Seu João de Oliveira, com quem eu até não me encontrava muito, mas até hoje, quando encontro qualquer um deles é uma festa tão grande, a demonstração de uma alegria tão imensa, que fico sem graça, emocionado e sem ar. Os filhos do Soguim e D. Laudicena. As nossas idas em sua casa para colher as uvas-do-Pará, uma delícia como poucas. Como não sentir saudades?
Silvânia dos Clubes Atenas e das Pedrinhas, do queridíssimo Padre Januário. Da AABB. E como não poderia deixar de lembrar aqui, Silvânia das galerias enormes do Anchieta, das festas juninas, da quadra de vôlei no meio da praça. A quadrilha lindamente marcada pela voz da Amelinha, do Toinho da Elpídia. Não se sabia o que era mais belo, se a dança, as roupas, a alegria dos casais ou a voz melodiosa de seus marcadores. Do relógio acertado pelo Tãozinho, do Zequita, D. Luiza Mestre, a Julina do Asilo, D. Preta do Hermelindo, Ivani, Antonio da Laura, D. Almira, Neném do Nego, Vó Cândida e inúmeros outros amores profundos e inesquecíveis. Impagáveis.
Silvânia de D. Inhazica, encantadora. Do Zé Caixeta, um grande prefeito, seguido de Zé Denisson, Zé Tavares, Milton, Adonias do Prado, Augusto Siqueira e tantos outros. Silvânia das festas maravilhosas de São Sebastião, do Divino, das comemorações da Paixão de Cristo, do Natal. O mês de maio, inteirinho dedicado à Maria. Silvânia de D. Josefina Batista, D. Nina. Lôpo Ramos, Tim, Moisés Umbelino, Pe. Pedro Celestino.  D. Miçana, Seu Clarido, Amelinha. Moisés Português, Seu  Oscar, Bendita de  Eva, Nigrinha do João Alfaiate... Das plantações de marmelo mais cheirosas dos que as noivas e o seu perfume invadia toda a pequena cidade durante as noites inteiras. E a gente acordava se deliciando e dando graças a Deus por aquele presente: motivo pra sorrir e agradecer sempre.
Silvânia do mel de Seu Brenner, do sorriso doce de D. Isaura, o mais eficaz dos remédios do hospital. Além das mãos mágicas do Dr. Thiago, um outro santo da nossa terra. O sino das igrejas, as músicas, as rezas de D. Tina Guimarães. A elegância de D. Didi Félix, a doçura de D. Teresinha Lobo. A poesia, a pureza, as madrugadas silenciosas e repletas de bênçãos para os dias que sempre chegavam radiantes, vindos das mãos de Deus. Os pedaços da cidade que adolesciam com a sua juventude a cada final de manhã, a cada nova primavera. Silvânia de tantas outras lembranças. Silvânia, minha paixão ensolarada, repleta de luz, de sonhos e poesias. Cheia da sutileza que transforma os homens em santos, as mulheres em anjos. Levando, enfim, todas as suas almas para o céu.
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Antonio da Costa Neto

sábado, 13 de setembro de 2008

BERNARDO



Bernardo é quase árvore.

Silêncio dele é tão alto que os passarinhos

ouvem de longe.

E vêm pousar em seu ombro.

Seu olho renova as tardes.

Guarda num velho baú seus instrumentos

de trabalho:

1 abridor de amanhecer

1 prego de farfalha

1 encolhedor de rios - e

1 esticador de horizontes.

Bernardo consegue esticar o horizonte

usando três fios de teias de aranha.

A coisa fica bem esticada.

Bernardo desrregula a natureza:

seu olho aumenta o poente.

(Pode um homem enriquecer a natureza

com a sua incompletude?)


Manoel de Barros

terça-feira, 9 de setembro de 2008

HISTÓRIA DO MENINO JESUS


Esta é a história do meu Menino Jesus
Ele mora comigo na minha casa a meio do Outeiro.
É a eterna criança, o Deus que faltava.
Nem sequer o deixaram ter pai e mãe
como as outras crianças.
Seu pai eram duas pessoas: um velho caripinteiro
e uma pomba estúpida, a única pomba feia do mundo.
E sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher, era uma mala em que ele tinha vindo do céu.
E queriam, que justamente ele, pregasse o amor e a justiça.
Hoje ele mora comigo na minha aldeia.
E é apenas humano.
Limpa o nariz com o braço direito.
Chapina as poças d'água.
Colhe as flores, gosta delas, esquece-as.
E porque sabe que elas não gostam
e toda gente acha graça
ele corre atrás das raparigas que carregam as bilhas na cabeça
e levanta-lhes as sáis.
A mim, ele me ensinou tudo.
Ensinou-me a gostar dos reis e dos que não são reis.
E tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente.
Sempre a escarrar no chão e a dizer indescências.
E que a Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meias.
O Espiríto Santo coça-se com o bico.
Empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é tão estúpido como nas igrejas.
Diz-me que Deus não percebe nada das coisas que criou.
Do que duvido.
Ele diz por exemplo que os seres
cantam a sua glóira.
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Eles apenas existem e por isso são seres.
Ele é humano que é o natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E é por isso que eu sei com certeza
que ele é o Menino Deus verdadeiro.
...Quando eu morrer, filhinho, seja eu a criança.
Carrega-me tu ao colo.
E leva-me para dentro da tua casa.
E deita-me na tua cama.
Cante cantigas caso eu não queira adormecer.
E dá-me os sonhos teus para eu brincar...


(Fernando Pessoa)