terça-feira, 28 de janeiro de 2014

POR QUE SOMOS TÃO BURROS - Artigo de André de Leones

 


Por que somos todos tão estúpidos? Por que, em plena “sociedade da informação”, as pessoas vivam justamente o paroxismo da desinformação, da ignorância, da imbecilidade? Por que as pessoas, por exemplo, confundem filosofia com metafísica e saem por aí dizendo cretinices como “a filosofia não serve pra nada?”
As pessoas não sabem que todas as ciências modernas foram criadas, sim, por filósofos? Que, por exemplo, o protocolo “www”, alicerce da internet tal e qual a utilizamos cotidianamente, foi criado por Tim Berners-Lee, e que Berners-Lee se inspirou, entre outras coisas, nos estudos de um filósofo e sociólogo chamado Ted Nelson? As pessoas acham que a medicina, as engenharias, a biologia, a física e a química foram criadas por indivíduos desde aqueles dias assim, especializadíssimos? As pessoas acham que a filosofia trata apenas de coisas abstratas, sem nexo e sem conexão com a realidade imediata?
As pessoas são burras? Você, leitor, é burro? Eu sou burro? O burro é burro? O que é burro? Eu acho que todos somos muito burros, sim. Eu mesmo sou uma anta. O Lino, quando eu ainda estava em Silvânia, disse que eu sou um sujeito muito inteligente, mas ele que me desculpe, porque eu não sou, não. Eu sou é burro demais. Já passei por um monte de coisas e nunca aprendi nada. Li uma pá de livros e estou sempre relendo um ou outro pra ver se gravo alguma coisa que preste. Cometo sempre os mesmos erros. Pior do que isso: há quem me pague para cometer erros.
O mundo é mesmo um globo superpovoado por gente burra, não? Mas aonde eu quero chegar? Exatamente aqui: as pessoas falam o tempo todo sobre um monte de coisas, mas não fazem ideia do que estão falando. As pessoas são, em tese, animais racionais, mas agem o tempo todo de forma irracional. Mas por que isso acontece? Por que as pessoas viraram as costas para toda a tradição cultural do Ocidente? As pessoas, em geral, estiveram, em algum momento, de frente para toda a tradição cultural do Ocidente?
Por que as pessoas, para usar aquele mesmo exemplo, dizem que “a filosofia não serve para nada” sem, contudo, saber, de fato, o que é filosofia? As pessoas, quando usam o termo “filosofia”, têm consciência do que estão falando? Sabem que filosofia não é só metafísica e abstrações e masturbação mental, mas também estética, lógica, epistemologia, ontologia (não, eu não escrevi “odontologia”, eu escrevi “ontologia”) e um monte de outras coisas?
Voltando novamente ao ponto: por que isto acontece? Eu digo que isso acontece por culpa da escola. Todo mundo, ou quase todo mundo passa anos e anos na escola estudando coisas como história, geografia, álgebra e trigonometria, mas ninguém sabe para quê. Um engraçadinho poderia dizer: Para passar no vestibular. Não é pouca coisa, está certo, mas e daí? Existe algum significado real em entender as causas e consequências da Revolução Francesa? Existe algum significado real em saber calcular uma hipotenusa? Existe algum significado real em saber desenhar a fórmula estrutural do ácido sulfúrico? Você, professor de física, pergunte ao seu aluno do primeiro ano: Por que estudar o movimento retilíneo uniformemente variado? Você, professor de literatura, pergunte ao seu aluno do terceiro ano: Por que estudar a Geração de 45?
E não aceite como resposta qualquer coisa associada a passar no vestibular. Pergunte pelo significado real (se é que existe algum) de cada uma dessas coisas. E, afinal, quando confrontado com aquele silêncio sepulcral, pergunte a si mesmo, professor: O que eu estou fazendo aqui? Por que eu estou aqui?! Eu penso que a forma como os jovens são educados é errada. A maneira como conteúdos e conceitos são transmitidos é errada. O modo como procuram criar cidadãos conscientes é errado porque os educadores muitas vezes não são cidadãos conscientes. O que acontece, então? E qual seria a “maneira correta”? O que acontece é que o estudante conclui o ensino médio, mas é incapaz de formular um raciocínio completo e coerente. O que acontece é que muitos professores são incapazes de formular raciocínios completos e coerentes. O que acontece é que o professor de exatas despreza as humanidades porque não enxerga nelas qualquer “funcionalidade”, qualquer “valor prático”. 
O que acontece é que o professor de humanidades despreza as exatas porque nunca conseguiu calcular aquela maldita hipotenusa. O que acontece é que ninguém sabe nada sobre coisa alguma. Os alunos não aprenderão enquanto não houver uma reforma ou mesmo uma revolução no ensino. Os alunos não aprenderão enquanto os educadores não compreenderem que têm de ser mais flexíveis. Os alunos não aprenderão enquanto os educadores não se adequarem a eles, porque, sim, o sistema que precisa se adequar aos estudantes, não o contrário.
Como fazer um adolescente entender e obedecer a uma disciplina, para os padrões dele, desgraçadamente rígida? Como pretender que um adolescente “fique quieto e aprenda” quando o que é ensinado, da forma como é ensinado, simplesmente não o interessa? Como pretender que um adolescente “fique quieto e aprenda” quando ele sequer pode escolher as disciplinas que mais lhe interessam? Com a desculpa de oferecer uma “formação ampla” aos estudantes, acabam oferecendo uma formação nula. Como pretender que um adolescente “fique quieto e aprenda”, por exemplo, geografia quando, no fim das contas, nem o professor de geografia compreende o que é que está ensinando e por quê? O que temos hoje no sistema educacional em todo o mundo é uma cadeia de erros que perpetua a burrice, a apatia, o desinteresse.
Uma cadeia de erros que forma milhares de profissionais especializadíssimos, mas - inacreditavelmente - despreparados. Uma cadeia de erros que está relegando ao abismo toda uma tradição cultural porque as pessoas não pensam mais, as pessoas não raciocinam mais, as pessoas não têm mais bases para pensar e para raciocinar, não têm mais bases para se situarem historicamente, filosoficamente. Como uma pessoa acéfala, amante das novelas e séries globais toscas que, não, não abordam a realidade cotidiana, mas uma idealização cretina da mesma, como uma pessoa assim pode ter subsídios para, por exemplo, apreciar a contento um material riquíssimo como a adaptação de A Pedra do Reino, na mesma Globo? 
As pessoas vivem dispersas no vácuo, girando e girando pela eternidade afora, sem qualquer referência, divorciadas dos outros e de si mesmas, divorciadas até mesmo de Deus, posto que a ideia de Deus, como defende Baudrillard, perdeu-se em razão de simulacros e de rituais vazios, perdeu-se nos vãos da burocracia das religiões. No fundo, além de burros, somos todos ateus. E, não, as coisas não vão melhorar.
___________
(*)André de Leones
Orgulhosamente para o Jornal A VOZ
de Silvânia-Goiás
(*) um jovem e brilhante escritor silvaniense, radicado em Sampa e escrevendo coisas maravilhosas, fazendo loucuras, nos encantando. Me orgulho de ser seu conterrâneo, amigo.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

RESENHA COMENTADA DO LIVRO O ÓCIO CRIATIVO DE DOMENICO DE MASI




RESENHA BIBLIOGRÁFICA COMENTADA
DO LIVRO
O ÓCIO CRIATIVO (*)
DE
DOMENICO DE MASI

POR:

ANTONIO DA COSTA NETO (**)


“O trabalho poderá tornar-se uma fonte de felicidades, como já o é para muitos empresários e altos executivos, se as empresas transformarem a competitividade em competência e a destrutividade em relações solidárias. Se elas forem mais cuidadosas com a estética de seus ambientes e objetos de trabalho. Se adotarem boas maneiras nas relações interpessoais e introduzirem um pouco da alma feminina em seus castelos embarricados pelos homens. Se abrirem uma brecha nos seus muros de proteção permitindo a entrada de um pouco de ar puro. Aí sim, o trabalho, junto ao calor do convívio cordial se tornará uma oportunidade para a socialização, o prazer e a melhoria contínua da qualidade da vida.Igualmente, para que a empresa tenha este carisma será sempre necessária a presença de chefes que incutam o entusiasmo, liberem os grupos dos procedimentos inúteis, gratifiquem os criativos, olhem para o futuro, promovam a inovação e tenham coragem de enfrentar o desconhecido.Para tanto, as condições ideais ainda são aquelas descritas por Platão em O banquete: comodidade, um grupo de amigos criativos, paixão pela beleza e pela verdade, liberdade carismática, tempo à disposição sem a angústia de prazos e vencimentos improrrogáveis. Felicidade, afinal, consiste também no fato de não ter prazos a cumprir.Precisamos, portanto, educar as pessoas para o ócio, enriquecendo as coisas de significado, preparando-as para gozarem a vida e não, apenas, para exercerem profissões. Enfim, para descobrirem que o paraíso existe e que é aqui na terra. Mas o inferno também existe e consiste em não se dar conta de que vivemos num paraíso.”

                                                                                                                                (Domenico De Masi)
I – O AUTOR E A OBRA

Domenico De Masi, sociólogo italiano que expôs neste livro suas ponderações sobre a sociedade e o trabalho, sempre atento aos conceitos de uma visão de futuro. Responde a perguntas feitas por Maria Serena Palieri sobre a sociedade pós-industrial, desenvolvimento sem emprego, globalização, sociedade e tempo livre, compondo assim um ‘livro-entrevista’ denso, caprichoso e instigante.
O autor é um insatisfeito com o modelo social centrado da idolatria do trabalho e propõe um novo paradigma baseado na simultaneidade entre trabalho, estudo, jogo e lazer, no qual os indivíduos são educados para privilegiar a satisfação de necessidades radicais, como a introspecção, a amizade, o amor, as atividades lúdicas, a ecologia, a paz, a convivência pacífica, o que, inteligentemente chama de ócio criativo.
Alerta ainda que o ócio pode transformar-se em violência, neurose vício e preguiça. Mas pode também elevar-se a arte, criatividade, liberdade e bem-estar. Lembra-nos que é no tempo livre que devemos passar a maior parte de nossos dias e neles concentrar nossas melhores potencialidades.
Elabora temas sobre a feminilização, o declínio das ideologias tradicionais e dos sujeitos sociais emergentes. Domenico De Masi critica o modelo social do ocidente; sobretudo, dos Estados Unidos, advogando as seguintes premissas: crescimento do tempo livre e decrescimento do trabalho, distribuição equânime da riqueza produzida, do saber, do poder e a educação para melhorar a vida como um todo e não, apenas, o trabalho e a produção.

II – SINOPSE DA OBRA

Comecemos a falar do período da história de 70 milhões de anos atrás, quando se tem notícia dos primeiros sinais de vida na terra. Passemos depois para 700 mil anos passados, quando o homem aprendeu a se criar, a andar ereto, a cuidar da prole. Mais tarde, a descoberta do cérebro com seus 100 bilhões de neurônios, dos quais mais de l5 bilhões constituem o córtex cerebral, responsável pela racionalização, o pensamento lógico, que passou a ser, ao longo da própria história, o mais desenvolvido e valorizado.Assim, o ser humano deixou de se importar com a estética, a beleza, o bem-estar, sendo apenas a lógica necessária à vida. Também por isso, a maioria dos ambientes de trabalho ainda é horrível, com cores neutras, móveis e decoração do tipo hospitalar, nenhuma preocupação com o bom gosto, a estética.
Depois do auto desenvolvimento humano veio a descoberta da semente, novas formas de crescimento, a necessidade de aprender, o advento do papel da mulher. Mas, aprendizagem, até então, significava colonizar o cérebro com o objetivo de moldá-lo de acordo com os interesses do grupo de referência. Filosofia era, segundo Francis Bacon um amontoado de tagarelices de velhos estonteados para jovens desocupados. Vindo a ocorrer, mais tarde, um salto de época, ou mudança de paradigma, resgatando novos valores para a ciência, a cultura, o aprendizado. Gerando novas epistemologias e novas formas de ver o mundo e os seus processos. Ultrapassando a importância do puro e simples trabalho manual – uma coisa feita para macacos – bastando observá-lo por alguns minutos para aprender a fazê-lo e repeti-lo para sempre.
Mudança de paradigma apenas acontece quando coincidem: novas fontes energéticas e novas divisões do trabalho e do poder. A mudança de um ou de alguns destes aspectos é apenas inovação. Mudança só acontece quando todos mudam em ondas (ou períodos) curtas, médias, breves ou longas.
Vem depois o direito de propriedade, diferenciando substancialmente o homem dos outros animais e o trabalho é sistematizado, segundo Marx, para produzir coisas espirituais para os ricos e idiotices e imbecilidades para o trabalhador; culminando com a Encíclica Papal de João Paulo II, de que a caridade deve ser exercida pelos ricos, e, a paciência, pelos pobres.
Certos trabalhos, como os domésticos, se adéquam à natureza das mulheres, criando-se assim, uma massa – uma mediocridade coletiva – que de acordo com Stuart Mill, que vem culminar com a televisão como instrumento de dominação consensual, inclusive para facilitar a burocracia e dificultar a criatividade, intervindo na natureza humana para melhor dominá-la.
A passagem de uma economia de produção para uma economia de serviços faz com que paulatinamente os ricos se tornem menos e muito mais ricos e os pobres aumentem em número e em pobreza. O que muito influiu os partidos de esquerda que, difundiram que quanto mais fracos são os países capitalistas, mais chances têm de chegarem ao poder; ou conquistando votos, ou estabelecendo alianças com forças da direita, pagando este apoio com uma política conservadora.
Chegamos a ponto de que o único emprego remunerado disponível é do intelectual criativo. Aquele que não estiver preparado para isto, terá como futuro o desemprego. O trabalho de produção decresce numa dimensão geométrica, enquanto o criativo cresce numa proporção apenas aritmética e os operários braçais deixarão de ser uma força revolucionária. Tudo hoje é tecnologia. Até um frango tem mais tecnologia do que carne. Enquanto isto, muitos economistas – conselheiros do príncipe – fazem tudo para ocultarem esta dura realidade.
Deveria ser melhor divulgado o número de empregos que são suprimidos e, não só, os que são criados. O futuro pertence aos que sabem usar mais a cabeça e menos as mãos. A pesquisa, a psicologia, o marketing, a arte, a educação, estas são as funções do futuro e não mais a guerra, o petróleo, a fabricação de parafusos e geladeiras. Milhões de homens ainda conseguem os meios de sobrevivência estritamente necessários somente por meio de um trabalho cansativo e fisicamente desgastante, moral e espiritualmente deturpador e são obrigados a considerar uma sorte, a desgraça de terem achado o tal trabalho. O atual modelo capitalista reflete paradoxos que são desonestamente ocultos por cientistas e sociólogos europeus e americanos. Como, por exemplo, a poderosa importância da tecnologia que não pode mais ser dirigida por indivíduos isolados.
Precisamos absorver os princípios fundamentais da sociedade pós-industrial: a) passagem da produção de bens para a produção de serviços; b) importância dos profissionais liberais e dos técnicos em relação aos operários; c) a importância do saber tecnológico como um primado das ideias; d) gestão integrada do desenvolvimento técnico; e) criação de uma tecnologia intelectual: máquinas inteligentes e capazes de substituir o esforço racional humano. Portanto, é a subjetividade que orientará a vida e o trabalho daqui para frente, como podemos refletir a partir do poema de Carlos Fuentes quando nos indaga: “Viemos aqui para chorar. Estamos por morrer ou por nascer?”
Como a geração dos revolucionários do passado, somos nós aqui a termos a responsabilidade de mudança. E devemos começar por nós mesmos aprendendo a não rejeitar antecipadamente o novo, o surpreendente, aquilo que parece ser radical. O que significa afastar os destruidores de idéias, que, apressadamente, reprovam qualquer proposta nova como irracional. Eles defendem tudo aquilo que já existe como racional, independente do quanto possa ser absurdo ou superado.
Isto significa lutar pela liderança de expressão, pelo direito de manifestar as próprias ideias e reivindicar este processo de reconstrução antes que o totalitarismo retorne às praças, tornando impossível uma transição pacífica rumo à democracia do Séc. XXI.
Vamos ter de inventar algo novo, além da matéria similar, dos motores e da inteligência artificial; dos recursos materiais como o barro, o ferro, a fabricação de materiais; incluindo aí a subjetividade que é a satisfação de desejos de indivíduo para indivíduo e daí para os nichos de mercados. O homem sempre oscilou entre dois desejos: o de distinguir e o de homogeneizar num processo de dois séculos de homogeneização absolutamente imposto pela indústria. Hoje, a tecnologia nos permite diferenciar, e é o que estamos fazendo. Evoluímos da homogeneização para a diferenciação, o que nos referenda Toffler, quando nos fala da desmassificação da mídia, criando ambientes inteligentes armazenados pelo computador; trabalhando em casa, estabelecendo relações virtuais com amigos e parentes; conjugando o pequeno, o grande, o individual e o coletivo.
O artesanato era pequeno e bonito, depois veio a indústria grande e feia. Atualmente, conseguimos de forma distinta as duas dimensões, fazemos compras nos supermercados e encomendamos um móvel sob medida a um carpinteiro. As coisas mudam, confluem-se; o presente é o porvir, o coração da sociedade é a informação, o tempo livre e a criatividade científica jamais deram tanta importância à estética, fazendo o que é belo possuir sentido. A burocracia, uma doença endêmica, está dando lugar à saúde criativa, exigindo que não só nos oponhamos ao projeto do outro, mas, para sobreviver, teremos de ter um projeto próprio.
A fabricação achata a diversidade. Os poucos milhardários do mundo são mais ricos do que a metade da população planetária como um todo, o que, mais que um absurdo é um crime. As várias formas de co-globalização estão presentes e potencializam seus efeitos nefastos reciprocamente, são eles: a) conhecer e mapear o planeta; b) escambo – troca de mercadorias; c) colonização material dos povos limítrofes; d) invasão dos mercados com as próprias ideias e moedas; e) globalização psicológica, sem dúvida, o efeito mais forte.
Vivemos em uma cidade e trabalhamos em outra, tiramos férias em uma terceira; tudo mescla certa fragilidade impotente gerando uma competição cada vez mais opressiva entre concorrentes mais numerosos e mais aflitos com o perigo de perder o que está em jogo. A globalização aumenta os níveis de competitividade, provocando oscilação entre a euforia e o temor. Achatando cada vez mais a diversidade, num astuto plano de exploração e selvageria.
Ao contrário, a civilização nasce do tempo livre, do jogo, do sexo, do prazer. É, portanto, impossível só trabalhar quando trabalhamos e só jogar quando jogamos, não misturando estas coisas e tendo como único objetivo desempenhar um trabalho e ser pago por ele. E só quando o trabalho estiver pronto que começamos o jogo, mas nunca antes, de conformidade com Henry Ford.
Foi a indústria que separou o lar do trabalho, a vida das mulheres da vida dos homens, o cansaço da diversão e o trabalho assumiu uma importância desproporcionada, tornando-se a categoria dominante na vida humana em relação a qualquer outra coisa. “É melhor que a vida e o trabalho se separem... eles têm lógicas e culturas diversas e a riqueza da existência está em combinar os tempos e os âmbitos de cada um. Segundo Aris Acornero, a justaposição de ambos é um mito a ser esconjurado.”
Meu parecer é justamente o oposto. Quanto mais a natureza do trabalho se limita a mera execução e implica em puro esforço físico, mais ele se priva da dimensão cognoscitiva, da dimensão lúdica e da dimensão da flexibilidade. A plenitude da atividade humana apenas é alcançada quando se acumulam o estudo, o trabalho e o jogo. Aquele que é mestre na arte de viver faz pouca distinção entre o seu trabalho e o seu tempo livre, entre a sua mente e o seu corpo, entre a sua educação e a sua recreação. Distingue uma coisa da outra com dificuldade. Almeja a excelência em qualquer coisa que faça, deixando aos demais a tarefa de decidir se está trabalhando ou se divertindo. Ele acredita que está sempre fazendo as duas coisas ao mesmo tempo.
A intelectualidade prescinde à habilidade manual, devemos usar mais a cabeça do que a força física e entre as habilidades intelectuais a mais apreciada é a criatividade e o aspecto técnico prescinde do estético. É a estética que conduz à subjetividade. É preciso melhorar o produto e o processo da sua confecção, assim teremos mais objetos e mais tempo livre para usufruir deles. Minimalismo do consumo; já temos muitos livros e muitos discos, é chegado o momento de desfrutá-los. Outros valores emergentes são a emotividade e a feminilidade. Devemos valorizar sem temor a esfera afetiva. A racionalidade permite-nos executar bem as nossas tarefas, mas sem a emotividade não é possível criar nada de novo.
É chegado o fim do ‘homossexualismo masculino’ intelectual ou separatismo machista das dimensões intelectuais entre os homens. Já faz parte do passado as mulheres, quase sempre semi-analfabetas, que ficavam confinadas em casa, em convívio com as escravas e entregues aos serviços domésticos, grosseiros, humilhantes e quase pueris. O que se referia à beleza, à solidariedade, à natureza, à emotividade era relegado a um segundo plano e delegado à mulher, ao lado da criação dos filhos e do ensino. E muitas delas ainda conduzem o machismo que, como a hemofilia, quem padece da doença são os homens, mas quem transmite são as mulheres, o que advém deste modelo machista de se viver.
Partimos agora para uma sociedade andrógina, sem papéis hierárquicos rígidos para homens e mulheres. Hoje são as máquinas que realizam as funções cansativas e repetitivas, deixando para os humanos de todos os gêneros, e, sem distinção, as atividades flexíveis, intuitivas e estéticas. A sociedade deve facilitar a riqueza da pluralidade, com poder de decisão tanto de mulheres quanto de homens. Os homens estão perdendo a hegemonia e adotam medidas femininas: cuidando do corpo, usando adornos e cores vistosas, demonstrando amor, afetividade, cuidando da casa e das crianças. As mulheres estão se desenvolvendo na vida pública, com mais acesso às poltronas do poder. O nascimento de um filho altera a vida dos dois: pai e mãe. E ao desejo e a busca da plenitude dá-se o nome de amor, e, não mais, de autoritarismo e competição.
Somos nômades e começou a era do horror ao domicílio fixo. Primeiro fomos nômades, depois, sedentários. O nomadismo difuso leva à elasticidade mental para lidar com novas pessoas, momentos e lugares, vendo a sociedade por ângulos diversos. Mudar de lugar estimula a criatividade, viaja-se com a mente mesmo que o corpo não se mova. Contudo, o excesso de recursos de hoje em dia, zera o número de pessoas que não se movem, para o quê, precisamos de uma maior autonomia e independência. Quem não dispõe de pelo menos dois terços do próprio dia é um escravo, não importando o que seja no resto: homem de Estado, comerciante, funcionário público ou estudioso; recobrando aqui uma citação de Nietzsche.
Necessitamos de uma redução mais que drástica dos horários de trabalho e acabar com a força supérflua, tanto dentro quanto fora da empresa. Proponho cinco ou seis horas por dia, de três a quatro dias por semana e três semanas por mês de trabalho. É errada a convicção de que quanto mais o empregado permanecer na empresa mais produzirá, pois o que se pede hoje ao trabalhador são ideias e não coisas. Quanto mais se fica na empresa, preso, como num aquário, menos se tem estímulos criativos. Esta forma torna a organização um amontoado de regulamentos inúteis à sua eficiência e danosos à sua produtividade.
A ordem é expulsar o “overtime”, sendo o tempo ideal de trabalho vinte e oito horas semanais e três semanas por mês. As pessoas devem aprender a curtir mais o tempo livre e usá-lo para si. Ficar no emprego mais tempo que o necessário só serve para inventar coisas prejudiciais e aumentar gastos e custos para as empresas que são habitudinárias como paquidermes e repetem a vida inteira as mesmas coisas sem que percebam a sua inutilidade.
Bertrand Russel, em O elogio do ócio afirma que é possível garantir para toda a humanidade um nível razoável de qualidade de vida, desenvolvendo e equilibrando a capacidade de trabalho, evitando que quem tem trabalho morra de trabalhar, enquanto o restante morre de fome, o que ele chama de “o antagonismo do absurdo” ou “o sistema do caos”.
As organizações têm uma compulsão ao conservadorismo e para expulsá-la, pequenos retoques já não bastam. Precisamos ousar mais, incluindo o teletrabalho, a semana brevíssima, melhorando a organização, as formas de trabalhar e a vida das pessoas que passarão a planejar um fim de semana com três ou quatro dias, a repensar seus relacionamentos, a cuidar melhor do jardim, da casa, das crianças e da sua própria emotividade, para assim poderem curtir melhor o tempo livre que passarão a ter, com o quê, automaticamente, melhorarão o mundo.
Vamos ter que mudar toda a existência da organização e a vida do empregado dentro e fora dela. Agora, com a Internet, tudo pode ser modificado com muito mais facilidade. Devemos evitar que o indivíduo, uma vez liberto, depois de décadas contínuas, não saiba lidar com esta nova situação, tendo dificuldades para enfrentar este impacto de liberdade. Uma pessoa que não tem tempo livre há anos precisará de uma reeducação para aprender a utilizá-lo, é lógico.
As gerações atuais são muito mais fluidas, móveis e centradas em interesses rápidos e transitórios, enquanto a ideologia social continua a mesma. Assistimos ainda a passeatas de trabalhadores, de massas oprimidas, mas não de homens e mulheres bem de vida. Há poucos ricos e infinitos pobres. A dita classe média vem se desfavorecendo assustadoramente desde o final do Séc. XIX. Mas, por feliz sorte, o poder está saindo paulatinamente das mãos dos que possuem para as mãos dos que sabem. Porém dos que sabem o quê? E como utilizam este saber, o que na verdade, constitui um outro sério problema: a questão da ideologia do saber, este vírus terrível que invade e consome as escolas, as universidades. Ninguém é mais explorador ou explorado apenas, mas, ambas as coisas ao mesmo tempo e a grande divisão entre ricos e pobres durou até os anos 60 e a educação formal das pessoas deveria deixar isto às claras. Hoje a forma mais adequada de se garantir a produtividade na empresa é, justamente, melhorar a qualidade de vida dentro e fora dela. É preciso deslocar o trabalho para onde estão os trabalhadores e sermos nômades em busca do lazer, do estudo e da cultura.
A maior exploração é se apropriar da criatividade dos outros e as empresas fazem isto naturalmente, mantendo as pessoas em um baixo nível de idéias, utilizando apenas as suas capacidades executivas, fazendo-as perder a habilidade de inventar, transformando-as em robôs, em peões digitais, num autêntico neo-fordismo, mantendo, com isto, um imenso desperdício de inteligência.
Quanto mais propicia a organização o desenvolvimento da criatividade, mais eficiente ela é. E não, porque sabe explorar mais seus funcionários. O que mede o desenvolvimento organizacional é o grau de criatividade e não, a capacidade de usar e explorar as pessoas, o que não passa de um nazismo camuflado.
Numa organização criativa os dias livres deveriam ser móveis, compartilhados socialmente, dedicados ao desenvolvimento e ao lazer das pessoas, ás suas famílias, amigos e à coletividade, o que deveria ser feito paulatina e equilibradamente.Eliminar o domingo de forma brusca e repentina seria devassar a economia dos estádios e das paróquias, mas é preciso que comecemos a aprender a descansar a qualquer hora do dia e dia da semana, atendendo aos pedidos de cada organismo.
Aí, faremos nós mesmos as nossas próprias instalações elétricas, prepararemos, com prazer o nosso pão em casa, cuidaremos das crianças, dos animais e dos parentes idosos. O trabalho doméstico será mais bem distribuído entre os sexos. Os homens poderão se dedicar mais ao afeto e à paternidade, desobrigando a mulher de se responsabilizar sozinha pelo mundo familiar, diminuindo a distância entre os trabalhos intelectual e manual e a masculinização da tecnologia. As atividades, inclusive as intelectuais e de execução serão mais delegadas às máquinas, cabendo aos seres humanos a escolarização, o lazer, os trabalhos flexíveis, criativos e agradáveis.
O teletrabalho passa a criar uma maior unidade espaço/tempo entre as pessoas, substituindo o conflito por movimentos difusos, unificando interesses e criando alianças para o futuro. As interações serão muito mais do que físicas, sendo preciso e possível lidar com a inovação sem fazer mais vitimas. Sem impedir o progresso, mas geri-lo de forma a criar uma felicidade mais coletiva e mais definida, adquirindo uma nova noção de tempo, uma nova noção de espaço. Nosso futuro será projetado por um certo, um outro “Bill Gattes”.
Aqueles que assimilam rapidamente as novas categorias se projetam para o futuro. O restante forma o grande exército de perdedores. No mundo de hoje, a velocidade impera, quem é lento fica à mercê. Quem é rápido, decide. O mundo exclui quem não é rápido. Privilegia-se a produção de ideias, exige-se corpo quieto e mente inquieta, o que eu chamo de “ócio criativo”: ter mais tempo para “bolar”, para “idear”.
O mundo atual é uma fábula onde a rapidez comanda e no lugar das fadas estão os engenheiros, dos feitiços, estão as fórmulas químicas e as quotações da Bolsa; no lugar dos duendes estão os bits. Nossos avós padeciam no tédio de dias sempre iguais, nós padecemos da vertigem de momentos diversos, dilatados, acelerados, excessivos, o que requer sabedoria e estilo para sincronizar-se com os ritmos frenéticos do mundo. Marcelo Marchesi explica: “... linda é a vida de hoje, vive-se mais tempo e morre-se mais vezes. Somos mordidos pelo bicho carpinteiro da velocidade urbana, consumimos o luxo de raras pausas, sonhando ou perseguindo a tranquilidade perdida. Dentro de nós conflituam os espíritos da vertigem, da calma, o espírito nômade e o espírito sedentário. O ócio é uma arte e nem todos são artistas.”
O trabalho na era pós-industrial pode conjugar as vantagens das pequenas empresas artesanais, rapidez nos processos de decisão, flexibilidade, pouca burocracia com as vantagens da grande empresa; rapidez, intercomunicação, aprendizado. As pessoas podem ficar em casa como na oficina do artesão. Mas, ao mesmo tempo, pode se comunicar com os outros. Como na fábrica industrial, os processos mais rápidos, instantâneos, impera a simultaneidade entre fatos e fenômenos. O mundo é mágica.
Reduz-se a fratura entre tempo de trabalho e tempo de vida. As empresas, hoje dependem de seus empregados inseridos na sociedade e não, separados dela. O trabalho responde a outras necessidades urbanas, como o caos do trânsito, a poluição e isto exige interdisciplinaridades e contatos simultâneos com todas as dimensões do planeta.
Tempos atrás, quando se rezava, se rezava, quando era hora de diversão, nós nos divertíamos. Agora, pelo contrário, somos propensos a integrar estes momentos: enquanto trabalhamos rimos, brincamos e fazemos observações sobre o mundo exterior. Estamos introjetando a epistemologia da descontinuidade e da complexidade. Valorizamos a qualidade de vida e não queremos perder horas no engarrafamento nem o contato com a família. Vivemos num espaço ao mesmo tempo virtual e planetário.
Amanhã, teremos mais tempo para o amor físico, para a apoteose do gosto e do afeto. O trabalho reduzirá as relações obrigatórias com os outros deixando mais tempo para o contato afetivo com os verdadeiros amigos, os eleitos por cada um de nós.
Muitos amores sinceros nascem em locais de trabalho, muitos casamentos. Mas atribuir ao trabalho o mérito principal pela socialização é, no mínimo, um exagero. A empresa ainda não é particularmente adequada para fecundar amizades. Pois não escolhemos nossos colegas de trabalho, superiores e clientes. Apenas a luta de classes é que cimenta a união entre os trabalhadores. Em muitas empresas reina o clima de indiferenças, suspeitas recíprocas e medo. Nelas, o convívio é artificial e até as festas e comemorações são frias, tristes e patéticas. As panelinhas, as falsas alianças, os bandos de puxa-sacos, são grupos minados pela desconfiança, a transitoriedade, o carreirismo.
Muitos empresários e altos executivos entendem por flexibilidade o que lhes é cômodo: poder demitir quantos e quando quiserem. Quem faz sermão aos jovens para não ambicionarem emprego fixo, geralmente o tem e faz tudo para não perdê-lo. É preciso tomar um superior cuido para não se criar um terrorismo tecnológico para possibilitar o teletrabalho.
Formas existem muitas: empresas de trabalho a distância, escritórios-satélites, centros comunitários, trabalhos a domicílio, gerando vantagens de autonomia para o trabalhador em relação aos tempos, aos métodos, redução dos custos do estresse e do cansaço. Melhoria da gestão da vida familiar e social, relações de trabalho mais personalizadas, redução das horas de prestação de serviços, flexibilização da possibilidade de se passar mais tempo em casa. E as desvantagens de isolamento, marginalização do contexto e da dinâmica da empresa, redução de chances na carreira, problemas de reestruturação do espaço em casa, dos hábitos pessoais e das relações familiares. Dificuldades para ações coletivas entre colegas e ações sindicais. Deverá ser criado o tele sindicato. Os empregados se sentirão estranhos e distantes da empresa.
Outras vantagens ainda para a sociedade seriam: o trabalho definido em zonas isoladas, periféricas, com mais trabalho para as chamadas categorias excluídas. Descongestionamento de áreas superpovoadas, redução do tráfego e da poluição, melhor manutenção do meio-ambiente, das ruas e das estradas. As desvantagens sociais imediatas seriam os custos com as instalações de cabos, tarifas de comunicação, áreas de trabalho pouco protegidas, renda não declarada ao fisco e redução da dimensão coletiva do trabalho.
Como vimos as vantagens são muito maiores do que as desvantagens: persistência ao trabalho, queda da resistência às mudanças, desaparecimento da cultura do “overtime”, dos chefes que querem manter os subalternos na palma da mão. Criando a necessidade de se reorganizar o trabalho e a própria vida. Contudo, teremos muitas resistências, sendo a maior delas, sem dúvida, o masoquismo coletivo: nem sempre as pessoas querem viver melhor e ser mais felizes.
Os aristocratas distinguiam-se não pelo que faziam, mas pelo que não faziam. Quem era da nobreza não devia trabalhar é para isto que existiam os servos, os operários e os escravos. Estamos emergindo da era da atividade física para a atividade intelectual. Atividade física pura ou atividade mental pura são extremos teóricos. O homem pensa e age o tempo todo, é que nos acostumamos a ativar o corpo e esquecer a mente.
Apenas o corpo é que conta. Se uma pessoa está com febre é considerada doente. Mas se está triste ou deprimida é tida como saudável. O tratamento psicanalítico ainda é considerado um luxo, mas o da pneumonia, por exemplo, é uma necessidade. Estamos numa fase de adestramento do corpo em muitas frentes, cuja desmaterialização começa com a invenção da escrita e se acelera pelo Séc. XX com o rádio, o cinema, a tv, dando um grande salto, quase um voo com a internet.
Hoje em dia, a luta da mente prevalece à do corpo. Só nos lembramos dele quando nos faz sofrer ou rejeitá-lo. É quando corremos para as dietas, a ginástica, os tratamentos físicos, etc.
Sempre consideramos o trabalho uma atividade física cansativa e que desejávamos que acabasse o quanto antes. Só estamos motivados quando desejamos que alguma coisa continue, se prolongue. Ninguém nunca diz antes de começar um trabalho físico: “que ótimo, posso começar a trabalhar”, enquanto o trabalho criativo suscita o desejo de iniciá-lo.
O trabalho físico, para sobreviver, é sempre realizado sob a vigilância do patrão, enquanto a criatividade só exige dedicação e amor. A pessoa deverá se sentir atraída para o trabalho e só então ele será realizado pelo puro prazer. Nossa tendência natural é a de eliminar o dever físico e ampliar o prazer criativo. O trabalho poderá ser um prazer se for predominantemente intelectual, inteligente e livre.
Deve provocar cansaço, e, ao mesmo tempo, euforia. Quando é só físico, o trabalho trás o cansaço, a prostração, a vontade de parar. Quando é intelectual e criativo, o cansaço pode até não ser percebido: quem compõe música, escreve poesia ou pinta um quadro, pode até cair de cataplexia. Um poeta escreve versos até adormecer. No trabalho intelectual a motivação é tudo, ele pode nos agradar a tal ponto, que não nos damos conta de que nos cansamos. Até mesmo o esgotamento psíquico não permite um desligamento instantâneo, como acontece com o físico, o que acelera enormemente a dimensão do problema.
Se estou em busca de uma ideia, minha mente pode trabalhar por noites a fio sem parar nunca. Mas a organização do trabalho intelectual ainda é pouco difundida, conhecida ou estudada, enquanto sobre o trabalho físico existem bibliotecas inteiras, estudos, laboratórios, pesquisas.
Um sujeito pode passar horas em uma rede e estar trabalhando só com a cabeça. A rede é a antítese da linha de montagem, mas o grande problema é que ela nos foi proibida por muitos anos, criando outros arquétipos mentais. Assim como os peixinhos vermelhos quando saem do aquário continuam, em pleno mar, nadando em círculos por vários dias. Os seres humanos trabalham fechados dentro das empresas há mais de duzentos anos e não saem de dentro dela mesmo que a parede de vidro caia e não exista mais.
As atividades criativas também possuem suas regras, o desafio é criá-las respeitando os limites e não, impondo-os. O artista ama os vínculos e o jogador ama as regras. No trabalho criativo as regras são um desafio e no trabalho executivo, um limite que nos obriga a fazer mais e mais coisas desagradáveis num mesmo espaço de tempo possível.
As pessoas gastam vinte ou mais anos para aprenderem o que, de fato, poderiam aprender em três meses. Explorar o trabalho intelectual é, muitas vezes, utilizar as pessoas aquém de suas potencialidades e este é um capítulo da novela da grande infelicidade que gera medo e raiva, coisas que existem sem motivo e que são inúteis à produtividade, sendo mantidas pela alienação, a força física e a chantagem psicológica. Conduzindo ao desespero pessoal, familiar e social. O trabalhador – sobretudo o masculino – se quiser fazer carreira tem que estar disponível a um sem número de transferências, imposições e dogmas, sem nenhum questionamento.
Na Atenas de Péricles era no ócio que se criavam as ideias filosóficas, artísticas e políticas, o que requeria o “não suar” mantendo corpos e mentes sãos. A competição poética era frequente, pois entendiam que a máquina psíquica era descontínua e necessitava de ser sempre treinada, enquanto a física era contínua, daí a preferência pelos exercícios mentais contínuos.
Algumas máquinas psíquicas produzem mais ideias ao amanhecer, outras ao entardecer ou à noite, algumas produzem continuamente, outras são intermitentes. Algumas são produtivas por um tempo, parando depois de grandes intervalos ou para sempre. Relembrando Oscar Wilde, só os medíocres dão o melhor de si o tempo todo e as organizações precisam interiorizar isto.
Às vezes as obras de juventude feitas na miséria são infinitamente melhores do que as da maturidade que são construídas com muito mais recursos e acontece também o oposto. Muitos estreiam com obras-primas de baixo custo e são medíocres para o resto da vida, ou o grande passo artístico, intelectual e criativo pode ser dado nas vésperas da morte. Não há como delimitar espaço ou tempo, a criatividade está muito mais agregada à possibilidade de acolher e de elaborar estímulos do que, propriamente, dos recursos disponíveis, regras, estatutos e normas.
É muito importante cultuar a fecundidade ideativa com agregação, liderança e incentivo à criatividade que tanto pode ser estimulada pela opulência ou pela miséria. O ser humano é diverso e complexo e haveremos de estudá-lo caso a caso. Apenas os gênios é que criam obras extraordinárias sob condições desastrosas, perseguidos por credores, encarcerados ou moribundos, como o Marquês de Sade, Marx ou Gramsci. A criatividade precisa de veículos, estímulos, desafios e não, de regras e barreiras burocráticas. O trabalho criativo requer uma relação cheia de caprichos com o tempo, o prazer, a vontade, a inspiração e a escolha.
Se o trabalho só físico tivesse escolha, as pessoas escolheriam não fazê-lo. Daí a coerção psicológica do tipo gozar o ócio é pecado; quem é ocioso é ladrão, viciado, criminoso e vai para o inferno.
As atividades intelectuais implicam no cansaço mental. Muito trabalho físico exige pouco repouso, mas para poucas idéias é preciso muito ócio. O ócio criativo não é parar o corpo e a mente. É aquela trabalheira mental que acontece quando dormimos à noite, por exemplo. Criar não significa não pensar. Significa não pensar regras obrigatórias, não ser assediado pelo cronômetro, não obedecer aos percursos da racionalidade e todas aquelas maluquices que Taylor e Fayol inventaram para bitolar o trabalhador e torná-lo eficiente. O ócio criativo é um instrumento da ideação, é uma matéria-prima, da qual o cérebro se serve para, mais uma vez, produzir ideias. O ócio é profundamente necessário para o desenvolvimento de ideias e estas, são fundamentais para o desenvolvimento da sociedade. Devemos, portanto, educar as pessoas também, eu diria, até principalmente, para o ócio e não só para o trabalho, como infelizmente acontece até os nossos dias.
Educá-las não para o ócio dissipador e alienante, que nos faz sentir vazios, inúteis e nos afundar no tédio, na depressão e nos subestimar. Mas no ócio criativo que torna a mente ativa, que nos faz sentir livres, fecundos e em crescimento. Não no ócio que nos depaupera, mas no que nos enriquece, alimentado por estímulos ideativos e interdisciplinaridades. Nele, as intuições surgem das hibridações de mundos diversos. Assim, ir ao cinema, ao teatro, à praia, tomar um chope, dançar, bater papo ou sair de férias, e até mesmo ficar sem fazer nada, não é tempo perdido, mas estímulo para intuir, para aprender coisas, compreender, executar e inventar outras.
Hoje, quanto mais tempo um executivo passa dentro de um escritório, menos produtivo é e menos ideias tem. Entretanto, com medo de mudarem seu esquema, as empresas pagam as pessoas para não produzirem nada. Os executivos vivem num quartel psíquico, são infelizes e limitados. Eles moram em casas belas e confortáveis em bairros agradabilíssimos, mas passam a maior parte do tempo trancafiados. Sonham para os filhos desempregados um emprego como o deles e os filhos esconjuram aquele emprego como se fosse uma peste.
Acho mesmo que os executivos de meia idade são pessoas doentes. E pior, sofrem de uma doença contagiosa. Transmitem aos mais jovens uma vida baseada no excesso de esforço, na subordinação, ao invés da dignidade. Eles deveriam ser isolados para não contaminarem. Mas, ao mesmo tempo, deveriam ser tratados com carinho. São uns alienados e infelizes e depois da aposentadoria vivem da solidão e do saudosismo.
O executivo fica, em geral, mais de dez horas por dia na empresa e assim ela condiciona também as suas noites. Uma executiva, por exemplo, quando faz amor à noite, não faz amor, o que faz amor é a máquina que está instalada dentro dela. A empresa é uma instituição totalitária como uma prisão ou um hospício. Ela suga a inteligência e condiciona as emoções e os afetos. O coletivo prevalece sobre o individual e a cultura da empresa tornou-se o motor de todas as demais organizações, elas discriminam o feminino, fazem prevalecer a aristocracia. Nelas consumam-se desperdícios incríveis, principalmente de tempo e inteligência, e, em nome da racionalidade realizam as escolhas mais inadequadas.
As empresas mais inflexíveis exigem que seus empregados sejam flexíveis, numa brutal incoerência. Nelas multiplicam-se os procedimentos burocráticos, frauda-se o fisco e pagam-se manobras. A sociedade é, em tese, democrática, mas as empresas continuam cada vez mais hierárquicas, piramidais e autoritárias. Seus chefes não são eleitos pela base, mas nomeados pelo topo e, muitas vezes, vêm de fora e são impostos a qualquer custo. Aos subordinados só resta aceitarem as novas imposições das quais tomam conhecimento por meios de comunicação externos e não, da própria empresa, como era de se esperar.
Assim, como sua cópia autêntica, as comunidades sociais funcionam pessimamente. Exatamente porque o indivíduo igualitário é gerido por grupos, ditatorialmente, o que, de acordo com Tocqueville, significa contrariar o homem, diminuí-lo e lembrá-lo a todo instante da sua condição ínfima de subalterno, secundarizado e dependente.
Os novos presidentes das organizações chegam de fora, são portadores da discórdia, e, muitas vezes, são escolhidos por minorias e sob condições escusas e secretas. As organizações têm de ser salvas de sua estupidez gratuita, liberadas das restrições absurdas do taylorismo e reavivadas com boas doses de motivação e descentralizadas por meio do teletrabalho.
A demarcação entre estudo, trabalho e tempo livre deve desaparecer por completo, passando para uma concorrência leal e solidária capaz de garantir a produção e a distribuição da riqueza. Tudo isto pode e deve ser feito, graças ao progresso e à difusão cultural é possível eliminar o carrasco e o estresse. Mas, para tanto, os novos executivos
deverão tomar consciência da exploração que praticam, identificar seus opositores e se agregarem a novas alianças.
A nossa identidade dependerá da capacidade de produzirmos ideias, de viver o tempo livre, do nosso estudo e da nossa sensibilidade estética.Os seres humanos viveram o ócio durante milênios, foi a sociedade industrial que estabeleceu a lei da eficiência baseada na relação entre o trabalho e o tempo necessário para a sua execução. A introdução desta medida foi uma coisa imposta, forçando a natureza humana. Vivemos aturando o tempo imposto e é chegada a hora de viver o tempo escolhido. O ritmo infernal da sociedade industrial não nos deixa sobrar um minuto para respirar e compreendemos a importância de ter tempo porque o tínhamos e não era suficiente.
Chegou o tempo em que a vida aumenta e o trabalho diminui. Temos mais tempo, mais cultura e mais consciência disto. Diante desta revolução é esperada uma angústia existencialista como retratam os filmes e romances como A náusea, de Sartre e O tédio, de Maravia que, em síntese, revelam o desejo obstinado de libertar os fracos dos domínios dos poderosos. Mas, dentre estes, frios e entediantes, eu sempre preferi Albert Camus que é mais caloroso e cheio de generosidade. Como esquecer O mito de Sísifo, A peste ou O estrangeiro?
O tédio aumenta porque estamos acostumados a associar tudo na vida a uma só coisa: o trabalho que passou a ser, há milênios, o nosso compromisso-chave e este compromisso tem que passar a ser minoritário do ponto de vista temporal. Somos como o prisioneiro do filme de Tim Robbins, muita liberdade de repente pode nos encher de alegria ou nos atirar num buraco feito de pânico, de medo ou de tédio.
O tédio, por sua vez, pode ser vivido como uma paralisação ou como medida dissipativo-criminosa. Para não sê-lo, é preciso transformá-lo em ócio criativo, preenchendo o tempo, agora livre, com atividades escolhidas por vontade própria, ao invés da coação dos escritórios ou da linha de montagem. É a situação do poeta, do artista, do amante do xadrez, ou de quem adora computador, pintura, voluntariado ou alpinismo.
A criatividade se nutre do desperdício de milhares de horas de reflexão e exercícios que são uma perambulação do corpo e da mente que mais cedo ou mais tarde acaba desembocando em uma ação positiva; em uma obra de arte, um novo teorema, uma canção, versos, arranjos florais, jardins. Posso criar obras concretas esculpindo uma estátua ou fazendo um bolo. Enquanto estou sentado o cérebro passeia e eu escrevo. Somo as virtualidades do cinema às mais recentes evoluções da informática e da eletrônica. Faço artes gráficas no computador, transplanto fotografias, manipulo imagens.
De que serve viver se você não se sente viver? Saber viver hoje implica uma pedagogia baseada na solidariedade, nos princípios estéticos e criativos e o trabalho deve ser ensinado como um prazer criativo e estimulante. Deve-se ensinar também o não-trabalho: a viver prazerosamente e com sabedoria, apenas se deliciando, nada ,mais.
Outra palavra de ordem é criatividade. Os tecnocratas têm medo dela e da inovação, enquanto os criativos temem o imobilismo. Vencerão os criativos, pois a sociedade pós-industrial se alimenta de inovação, premia a iniciativa e joga fora o imobilismo. Hoje, o subalterno do engenheiro é outro engenheiro atualizado e ágil o que mina as bases da antiga concepção de chefia, cria uma organização por projetos e leva a uma rotação de lideranças. O trabalho nunca foi coisa para autodidata, tem que ser ensinado e aprendido durante pacientes anos de dedicação. Da mesma forma, o tempo livre prescinde de profundos aprendizados.
Os jovens de hoje, em 2 015 não poderão dar-se ao luxo de serem desonestos, pois lá os valores emergentes serão escolarização, emotividade, estética, subjetividade, confiança, estabilidade, feminilização, qualidade de vida, desestruturação do tempo e do espaço e a virtualidade. Será dada menos atenção ao dinheiro, posses e bens materiais e ao poder. Maior atenção ao saber, ao convívio social, ao jogo, ao amor, à introspecção. Os métodos pedagógicos deverão valorizar mais o diálogo, a escuta, a solidariedade, a criatividade.
A sociedade pós-industrial é menos ligada à agressividade, pois sua estrutura tem a forma de rede com um número potencialmente infinito de nós e malhas. As relações dela decorrentes são muito mais evolutivas, requerendo novas formações para a necessária mudança de paradigma. Deveremos então nos atualizar ininterruptamente, adquirindo formação filosófica, ética, estética, linguística, técnica, econômica, psicológica, política, ecológica, cultural e sociológica, que deverá dar-se ao mesmo tempo. Será cada vez mais difícil separar o treinamento da formação e o jogo do trabalho e do prazer.
Haveremos de partilhar a riqueza ao invés de só aumentá-la. Ensinaremos que é inútil e pouco inteligente gastar energia para se tentar angariar novos bens se ainda não usufruímos realmente do que já dispomos. É inútil comprar livros ou discos quando ainda não lemos e nem ouvimos os que temos. Em outros tempos os ricos descansavam e os pobres se esfalfavam. Hoje isto se inverteu: os ricos correm doidos para cuidarem de seus negócios enquanto os pobres são obrigados à inércia do desemprego. E quem trabalha é obrigado a ficar aquém de sua capacidade, o que é alienante e aviltante.
É preciso educar para a complexidade, quanto mais a pessoa souber administrar esta realidade, mais madura será. A sociedade industrial simplificava os problemas complexos, transformando-os em vários problemas simplificados. A pós-industrial, por sua vez, dispõe de instrumentos potentes para enfrentar problemas de igual dimensão, encontrando muito mais facilmente as soluções adequadas frente ao saber secularmente acumulado. Assim, problemas, soluções e técnicas tornam-se uma corrente mais rica e mais humana porque o ser humano é igualmente complexo e aspirar administrar a complexidade com um pensamento simples e linear significa observar apenas a continuidade dos fluxos e suas várias fases. Já o pensamento complexo significa, ao contrário, aceitar o seu caráter mesclado, incongruente, descontínuo, e, para isto, precisamos de uma educação permanente para a descontinuidade e para a mudança.
A abordagem linear e a exigência de continuidade completamente anacrônicas despertam o medo e a insegurança diante do novo. O medo quase apocalíptico de algumas pessoas diante do novo nasce da dificuldade de enfrentar a descontinuidade. Temos medo de ter uma vida muito melhor do que a de nossos avós. Quanto mais ricas as pessoas, mais cínicas elas são. Têm medo de perderem justamente o privilégio que não merecem. Foi este o medo que serviu de base para o fascismo. A pedagogia da era industrial ensinava a separar as coisas: trabalho é trabalho e lazer é lazer. Hoje, pelo contrário, temos que perder o medo de encarar estas coisas juntas, acopladas, inter-complementares e simultâneas.
Ajudei, em 65 a retirar da máquina uma senhora totalmente ensanguentada, que acabava de ter amputados os quatro dedos e ainda gritava: - “... minha Nossa Senhora, meu Jesus Cristo, não vou poder mais trabalhar...” é uma das passagens demonstradas por Toffler.
Temos que usar a criatividade no trabalho juntando fantasia à concretude, é preciso saber realizá-las, mas unir fantasia a uma concretude medíocre será uma criatividade pobre. Mas podemos unir fantasia e concretude em altos níveis e realizar assim uma criatividade valiosa.É preciso unir pessoas que são mais lógicas com pessoas preferencialmente sonhadoras, para que ambas se ajudem mutuamente, realizando assim grandes projetos ricos e criativos. É este o único caminho para as nossas organizações, a única saída para que a vida continue a existir.
Não basta só juntar pessoas, é preciso ter uma liderança carismática para uma nova definição das regras do jogo. É necessário educar para a criatividade, ajudando a pessoa a encontrar a sua vocação autêntica, parceiros adequados e criar um contexto mais próprio. Descobrir formas de explorar os vários aspectos do problema que a preocupa. Fazer com que a sua mente fique relaxada e como estimulá-la para que crie ideias justas. Principalmente, educá-la para não temer e não dificultar o fluir incessante das inovações. Pois como dizia Heráclito: “É na mudança que as coisas repousam.”
Vamos, portanto, operacionalizar a mudança do processo executivo para o ideativo, da substância, para a forma, do duradouro para o efêmero, da prática para a estética, da precisão para a aproximação, do científico para o pós-científico. O que significa a necessária substituição de uma cultura do sacrifício e da especialização cuja finalidade era o consumismo, para uma visão pós-moderna do bem-estar e da interdisciplinaridade, cujo fim é o crescimento do subjetivo, da afetividade e da melhoria da qualidade do trabalho e da qualidade da vida.
Os mitos greco-romanos que propunham qualquer inovação eram severamente castigados como Ícaro, Sísifo, Ptolomeu e Ulisses. Uma máquina é uma maquinação e um expediente é uma armadilha contra a natureza. Para que aconteça o verdadeiro salto para a qualidade é preciso que existam pessoas desligadas da prática, que se dispunham de um tempo livre do esforço físico e que tenham gosto em inovar, seja por meio de especulações mentais ou experimentos, por meio dos quais a natureza é observada, cutucada e provocada.
Devemos caminhar da exatidão para a aproximação, evoluindo para depois de Galileu, Newton e Descartes, buscando um mundo cujo centro não seja mais a rigidez, mas e flexibilidade e que esta substitua a simples execução. O homem é um ser pensante, mas suas grandes obras se realizam quando ele não calcula e nem pensa, mas sonha. Não é o ângulo reto e nem a linha reta dura e inflexível que me atraem, mas a curva livre e sensual. De curvas é feito todo o universo, disse Oscar Niemeyer.
Até os Estados Unidos se fundam na economia do ócio, isto, é claro, sem se dar conta; o que é comum em todos os países ditos avançados. Neles, a ética do trabalho é a ética da escravidão e o mundo pós-industrial não precisa mais de escravos. O trabalho já pode ser retirado do trono onde foi colocado pelos patrões, pelos filósofos e pela igreja católica no final do Séc. XVIII. Nos anos passados foi o trabalho que colonizou o tempo livre, nos anos futuros será o tempo livre que colonizará o trabalho. Afinal, aquele que só trabalha perde o tempo precioso, como diz um famoso provérbio espanhol.
Em muitas escolas, principalmente de administração, os horários são estressantes e a competitividade não conhece limites de modo a preparar o aluno exclusivamente para a vida profissional, com eficiência e sem escrúpulos. Sem qualquer interesse residual para o lazer, os afetos familiares, a liberdade de pensamento, conduzindo o futuro profissional para atividades tediosas, estúpidas e mal pagas. A missão que temos dentro de nós é a de educar a nós mesmos e aos outros a contaminar o estudo com o trabalho, o jogo e o prazer até fazer do ócio uma arte refinada, uma escolha de vida e uma fonte infindável de ideias. Até chegarmos ao ócio criativo, em que confluam e se misturem suavemente produção de sentido com produção de riqueza, alegria com aprendizado, pluralismo com identidade, fantasia e concretude, sensualidade e andragogia, racionalidade e afetividade. Criando um clima que sublima o cansaço em jogo, a música, as prescrições alegres, e, as poucas regras introjetadas, aceitas e construídas por todos e transcendentes de arte, sonhos, beleza e amor.
A organização aprende com a própria experiência, metaboliza as mais modernas técnicas construtivas, comunicativas e estéticas. Inclui e acolhe os sentimentos de estranheza entre quem participa e quem assiste. É uma festa doce, não-agressiva que cria a riqueza e amplia a economia do dom e não a do lucro.
Balançar-se numa rede parece-me ser o símbolo por excelência do trabalho criativo, perfeita antítese da linha de montagem, a qual foi símbolo do trabalho alienado. Em síntese, dar sentido às coisas de todos os dias, sempre lindas. Admirar quadros, assistir televisão, ler um livro, provocar discussão com o motorista do táxi, jogar conversa fora com os mendigos, admirar a sábia beleza de uma garrafa ou das carruagens que ainda passam pelas ruas.
A ideia de gozar o ócio sempre incomodou ao rico, pois com o advento da sociedade ociosa tudo muda. A escolha de um bom colchão é mais importante do que a de uma escrivaninha funcional. A escolha de um amigo com quem passear ou tirar férias é mais importante do que a escolha do colega de trabalho. É mais importante a escolha da faculdade que prepara para a vida do que a que prepara só para o exercício da profissão. O que conta não é o estresse da carreira, mas a serenidade da sabedoria.
Educar para o ócio significa ensinar a escolher um bom filme, uma peça de teatro, espetáculo de dança ou um livro. Ensinar como estar bem consigo mesmo, a habituar-se às atividades domésticas e com a produção de inúmeras coisas que antes comprávamos. Ensinar o ócio requer uma escolha atenta dos lugares justos para repousar, para amar e se divertir.
É preciso ensinar o jovem a se virar nos meandros do trabalho, nos meandros do prazer. Educar para a solidão e para a companhia, para a solidariedade, o voluntariado. Há tudo o que ensinar e tudo o que aprender. É necessário ter um sábio convívio com o ócio como produto também da educação.
Não existem mais motivos pelos quais a grande massa da população deva continuar sofrendo as privações do trabalho. Somente um ceticismo idiota para nos induzir a trabalhar tanto, quando não há mais necessidade disto. Educar para o ócio significa enriquecer as coisas de significado.
A criatividade e a inovação não podem brotar nas organizações que ainda são administradas com métodos, tempos e sistemas de comandos concebidos há mais de cem anos, onde o executar é tudo sendo proibido inovar e criar.
Temos que evitar métodos que sirvam apenas a um capitalismo disfarçado de social-democracia. O ócio criativo deve incluir a ginástica que harmoniza o corpo e a poesia que encanta a alma. Nele, a guerra deve ser em função da paz e as coisas úteis em função das belas. É muito mais agradável trabalhar com pessoas que descansam, se divertem e gozam a vida.
O trabalho é profissão e o ócio é arte e os escravos do trabalho são os que pararam de pensar, de sonhar, de amar. Os mestres da vida são os que amam apagar a sua distinção com a arte. Só atendo à plenitude da qualidade da vida quando consigo a serenidade natural da alegria, beneficiando a todos e sem prejudicar a ninguém. Viver o ócio criativo é ter a certeza de que o paraíso existe e é nesta terra. Mas o inferno também existe e consiste em não se dar conta de que vivemos num paraíso.

III – COMENTÁRIOS E CONCLUSÃO

O ócio criativo de Domenico De Masi uma obra absolutamente indispensável aos que lidam com as necessidades de transformação do mundo, da sociedade e da melhoria concreta da qualidade de vida. Numa linguagem rica, calorosa e bem-humorada, o autor consegue tratar de temas cruciais e necessários a todos os que trabalham com gente, educam, sentem, sofrem, vivem. Provoca a revolução inadiável frente aos conflitos porque passa o mundo, na plenitude do caos humano, social, político, ético, cultural, econômico e ecológico que ora atravessamos.
Um texto que abre perspectivas marcantes para a condução de princípios perseguidos pela humanidade há milênios. Uma leitura obrigatória aos estudantes de todas as ciências sem exceção, pois visa a construção de um mundo melhor, apoiada num novo ciclo pós-científico, na sensibilidade aguçada, na cooperação, na feminilidade, na autêntica parceria entre todos os povos.
O tema central está fincado nas condições políticas, na distribuição do poder e da riqueza para que todos possam viver com dignidade. Na redução drástica do tempo de trabalho, melhorando a vida das pessoas dentro e fora da empresa, para que todos possam ter acesso ao trabalho e a uma vida com muito mais qualidade, mais prazer e para o que, precisam ser continuamente educados e reeducados. Junção de ideias estranhas e pessoas de diferentes modos de pensar e estilos de vida. Construção coletiva das poucas necessárias regras de conduta, num mundo gerido pela ética, a estética e a justiça social, são as saídas que o autor advoga para as organizações e a sustentabilidade da vida humana.
Retrata o amor, a sensibilidade, a beleza, a paz, o teletrabalho, a descentralização do poder de decidir e a drástica redução do tempo de serviço como instrumentos para se viver o tempo livre e transformá-lo em ócio criativo e em novas ideias rumo a uma vida mais com melhor qualidade para todos. Enfim, o texto trata de sabedorias políticas e filosóficas indispensáveis frente a gravidade da conduta humana e do risco iminente nos tempos em que vivemos. Apresenta propostas novas e originais que, uma vez colocadas em prática por todos: governantes, empresários, trabalhadores, homens e mulheres comuns, poderão significar esperanças de melhorias concretas e garantias de uma vida digna e decente para todos, sem distinção.
_______________
(*) Livro-entrevista em que o sociólogo italiano Domenico De Masi (nascido em 1 938) responde a perguntas elaboradas por Maria Serena Palieri sobre mundo atual, tempo livre e globalização. Publicado no Brasil pela Editora Sextante, do Rio de Janeiro, 2000 – 336 págs. Tradução de Lea Manzi - Resenhista: Antonio da Costa Neto.

(**) MsC em educação e administração, consultor e professor universitário. Autor de artigos e livros, dentre os quais, Paradigmas em educação no novo milênio (Ed. Kelps, 2 003) e Escolas & Hospícios – ensaio sobre a educação e a construção da loucura (Ed. Vozes, 2 005) e Poemas para os anjos da terra (Ed. Kelps, 2007).  "No prelo" - Ed. Kelps: Simplemente azul (poemas).
 E-mail: antoniocneto@terra.com.br


 

RESENHA BIBLIOGRÁFICA COMENTADA
DE:
(*)A FUNÇÃO DO ORGASMO:
problemas econômico-sexuais da energia biológica
DE:
WILHELM REICH

POR:

(**)ANTONIO DA COSTA NETO

“Nem tudo é inconscientemente anti-social e nem tudo é conscientemente social. Pelo contrário, há atributos e impulsos altamente louváveis e culturalmente valiosos que precisam ser reprimidos em função de considerações materiais; assim como também há atividades fraglantemente anti-sociais que são compensadas socialmente com fama e honra.”

“O que mais irrita em tudo isto é a ostentação da objetividade científica. Quanto mais o indivíduo se encontra preso na rede das conveniências, mais afirma que é um cientista objetivo. E esta ciência objetiva é uma enorme e pesada rocha presa ao pescoço de uma humanidade que está se afogando.”

I – O AUTOR E SUA OBRA

Nascido em 1897 numa cidade de fronteira do então Império Austro-Húngaro, Wilhelm Reich perdeu os pais ainda adolescente e teve que cuidar da fazenda da família na Bucovina, região hoje dividida entre a União Soviética e a Romênia. Ali também, observando insetos e plantas, desenvolveu a sua paixão pelas ciências naturais. Prestou serviço militar ativo durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18), combatendo na Itália e depois, foi estudar medicina na Universidade de Viena.
Na época, Sigmund Freud ainda provocava enormes escândalos com a sua teoria sobre a libido, segundo a qual a procriação não é a única meta da sexualidade. E esta, sem ser sinônimo da genitalidade, inclui experiências traumáticas que, recalcadas, produzem as neuroses.
Convencido de que a sexualidade era o centro gravitacional da vida, Reich passa a trabalhar como analista, e, apoiado por Freud, dirige seminários de técnica psicanalítica. No entanto, reconhecendo uma base política e econômica nas neuroses começa a distanciar-se de Freud. Na década de 20, não se preocupa mais em fazer o paciente reviver traumas da infância, mas eliminar a “couraça”, ou seja, suas resistências, organizadas numa “estrutura caracterológica”- soma de reações mentais e musculares que uma pessoa constrói para bloquear emoções e sensações, resultando na sua maneira típica de agir. Ou seja, a vida sexual da pessoa é a origem básica da sua personalidade.
Assim nasce seu mais célebre livro, A função do orgasmo(1927), onde explica como podem ser dissolvidos estes mecanismos de defesa causados por uma educação repressiva e por proibições morais, a fim de liberar a energia sexual sem, naturalmente, exercê-la de forma prazerosa e saudável.. Ao praticar a análise caracterológica junto a classes sociais mais modestas Reich pôde perceber a existência do que chamou de “miséria sexual”: nenhuma informação sólida nem propaganda dos meios de concepção; mulheres pobres temendo engravidar, muitas delas morrendo de abortos clandestinos; crianças nascendo indesejadas.
Quanto mais ele mede a amplitude desta miséria, mais se inclina para a ação política. A partir de 1927, já inscrito no Partido Comunista Austríaco, abre clínicas gratuitas de aconselhamento psicológico e sexual, com enorme afluência de operários e estudantes. Ao mesmo tempo vai elaborando sua crítica da ideologia capitalista e burguesa, e, em particular, da estrutura repressiva da família.
Essa mistura de psicanálise e marxismo desperta a fúria das instituições diretamente atingidas – a igreja, o governo, a sisuda Associação Psicanalítica de Viena – e também, causa inquietação no PC. Assim, em setembro de 1930 Reich muda-se para Berlim, onde dá continuidade ao seu trabalho de proselitismo. Publica em 1932 “A luta sexual dos jovens”, elogio apaixonado da Revolução Russa e de suas inovações quanto à legislação familiar e social que o stalinismo poria de lado. Em 1933, quando surge sua obra “Psicologia de massas do fascismo"uma notável análise dos motivos da ascensão de Hitler, a ruptura com a ditadura democrática soviética já é total.
Excluído do partido, ele emigra; vive na Suécia e depois na Noruega, dando conferências, mas por essa época já parece mentalmente abalado. O Wilhelm Reich que chega aos Estados Unidos em 1939, para nunca voltar à Europa. Não é mais o brilhante discípulo e depois dissidente de Freud, nem o pioneiro da educação sexual em massa, nem o pensador que encontrou uma origem social nas neuroses, mas um doente cuja razão vacila e que se sente perseguido por todos. Leciona para classes lotadas na New School for Social Research, de Nova York, até 1941.
Mais tarde, certo de ter podido isolar quimicamente a energia sexual (“o orgônio”), fabrica estranhas caixas (“os acumuladores de orgônio”), que, segundo ele, podiam detectá-la e transmiti-la curando doenças desde o câncer até a esquizofrenia.
Por causa da comercialização desses aparelhos foi condenado em 1957, a dois anos de prisão e teve todos os seus livros proibidos no território americano. Cumpriu oito meses da pena num presídio da Pensilvânia, onde morreu em 3 de novembro de 1957.
Como é transparente emA função do orgasmo – problemas econômico-sociais da estrutura biológica”, o discurso de Wilhelm Reich sobre a sexualidade se vincula sempre à condição sócio-econômica, e, portanto, à ordem e à moral política. Ele intuiu, genialmente, que as revoluções culturais de nossa época constituem, no fundo, uma luta pela liberação sexual, tal como se expressa, por exemplo, no lema “faça amor, não faça guerra”. Sua obra, absolutamente notável e fantástica é uma arremetida contra todas as formas  do medo e um apelo ao prazer intenso de viver.

II – SINOPSE DA OBRA

Devemos entender as funções bioenergéticas da convulsão orgástica e o que fazemos quando ela é contrariada ou negada. O tema sexualidade tem atravessado todos os campos da pesquisa, descobrindo termos, como por exemplo, economia sexual, concebido com grande dificuldade, como um conceito que pretende abarcar um novo campo científico: a investigação biopsíquica, levando à compreensão e a dominação do processo sexual livre das repressões sociais e da chaga humana que dá origem a todos os tipos de ditaduras.
A saúde psíquica depende da potência orgástica – ou a excitação sexual natural e da capacidade humana para o amor. As enfermidades neuropsicóticas são o resultado de uma perturbação advinda da incapacidade de amar, tornando-se fonte de ações irracionais como consequência do caos sexual da absoluta maioria das pessoas. Criando, assim, uma sociedade mecanizada, autoritária,  dependente, neurótica e exageradamente competitiva. Este sim, o maior de todos os problemas, se considerado sob a ótica social.
As energias vitais estão ligadas a uma compulsiva moralidade, criando indivíduos com uma atitude negativa diante da vida e do sexo e que contraem sua ânsia de prazer apoiada em espasmos musculares crônicos produtores de ditadores. É a essência do medo de uma existência independente e orientada para a liberdade, alienando o homem da vida e tornando-o hostil a ela, o que encontra o seu auge com o desenvolvimento do patriarcado.
No trabalho, o prazer vem sendo substituído pelo dever compulsivo e a catástrofe que estamos vivendo é a consequência última desta alienação da vida, com a formação de massas no sentido de serem cegamente obedientes às autoridades, o que não se deve ao amor fraternal, mas, sobretudo, à autoridade da família. Assim, a supressão da sexualidade nas crianças e nos adolescentes é a principal maneira de se obter esta obediência doentia.
A democracia verdadeira e a liberdade baseada na consciência e na responsabilidade estão condenadas a permanecerem como ilusão enquanto não for liberada a satisfação sexual biológica e natural, mantendo uma sujeição sem remédios; as condições sociais caóticas continuarão a caracterizar a existência humana. Permanecerá a destruição da vida por uma educação coercitiva, pela guerra, os rigores da perturbação social e todas as turbulências. .
Sexualidade e angústia são funções do organismo vivo que operam em direções opostas: expansão agradável e contração angustiante. A fórmula do orgasmo está na base desta relação: “tensão mecânica/carga bioelétrica/descarga bioelétrica/relaxação mecânica”, cuja supressão abriu novos caminhos para o problema do câncer, da depressão de um sem número de perturbações e doenças comprovadamente oriundas da vida vegetativa. A causa imediata de muitos males pode ser determinada pelo fato de que o homem é a única espécie viva que não satisfaz a lei natural da sexualidade: o processo sexual expansivo do prazer biológico, e, por si, o processo vital produtivo.
A vitória das ditaduras deve ser atribuída à enfermidade psíquica das massas que não são capazes de controlar quaisquer das formas de democracia nem econômica, nem social, nem psicológica. A distorção da sexualidade natural – de conformidade com os instintos individuais, quaisquer que sejam – e a sua supressão inicial nas crianças e nos adolescentes são condições humanas universais na dita sociedade civilizada, transcendendo todas as fronteiras. A elucidação da função do orgasmo, particularmente, nunca foi bem recebida pelos grupos científico-profissionais e político-culturais de todos os tipos, pois a dominação da humanidade está intimamente ligada a tal processo. Para Freud, a libido é o impulso emocional em busca da satisfação, o que não foi compreendido nem pelos simpatizantes, nem pelos inimigos da psicanálise. A libido é como a eletricidade, não sabemos o que ela é e nem de onde vem. Os eunucos desenvolvem um sadismo singular que não era encarado como problema. Após a puberdade a sexualidade está totalmente desenvolvida, o que leva a sociedade a se apressar em desenvolver inúmeras técnicas de “castração” do indivíduo, evitando que ele a obtenha, facilitando, assim, a sua dominação completa ao longo dos tempos. A ditadura totalitária que está igualmente nas igrejas, nas instituições acadêmicas, entre os comunistas e os governos, é uma tendência humana universal causada pela supressão do direito ao prazer, do direito à vida. A educação autoritária, no real e no simbólico (imposições, disciplinas, horários, uniformes, etc.) constitui as bases psicológicas das massas populares de todas as Nações, para a aceitação e o estabelecimento da ditadura moderna, pois o povo ensinado a ser cegamente fiel, se privará dos seus próprios direitos, matará o que lhe dá liberdade e fugirá com os ditadores. A lei deve ser íntima e não, exterior. É mais fácil exigir disciplina e impô-la do que ensinar a ter prazer no que se faz. É mais fácil insistir na satisfação legal do respeito e do amor do que conquistar a amizade por meio do comportamento bondoso.
Outro aspecto importante é o relacionado a uma sociedade machista instituindo que a célula seminal masculina é mais forte e mais ágil e os animais machos seriam maiores, mais fortes e belos do que as fêmeas. E também, frequentemente, mais coloridos e atraentes ou providos de chifres para serem mais capazes nas lutas. Argumenta-se que as formigas operárias eram assexuadas para poderem realizar melhor o seu trabalho e a natureza se organizava para atender este e aquele propósitos. Assim, tensão e relaxação sexual eram atribuídas a diferentes instintos especiais: de propagação da fome, de exibição do poder, de afirmação pessoal, de preservação do instinto maternal, evolutivo, cultural, de grupo, social, egoísta, altruísta, em direção à dor, masoquismo, sadismo, de fantasia e o pior de todos, sem dúvida: o instinto moral.
A verdadeira e secular luta pela democratização da vida baseia-se na autodeterminação, no trabalho agradável, na construção coletiva de normas e regras e na alegria terrena do amor. Há esforços em toda a parte no sentido de transformar a democracia formal em uma mais autêntica, com a participação efetiva e não, simbolicamente representativa de todos os seres humanos que labutam por uma autonomia adaptada à organização natural do trabalho. No campo da higiene mental a primeira e principal tarefa consiste em substituir o caos sexual, a prostituição, a literatura pornográfica e o tráfico sexual pela felicidade natural no amor protegido pela sociedade, o que não implica em destruir a família e nem minar a sua moralidade. A família e a moralidade já estão minadas pela sua própria moral compulsiva . Estamos enfrentando a dura tarefa de dominar as doenças psíquicas causadas pelo caos social e familiar. A nossa terra jamais encontrará a paz duradoura e procurará em vão satisfazer a prática da organização social enquanto políticos e ditadores de qualquer partido, ignorantes e ingênuos continuarem a corromper e a liderar nossas massas populares sexualmente doentes. A organização social do homem tem a função natural de proteger o trabalho e a satisfação natural do amor que têm sido subordinadas às pesquisas científicas e ao pensamento lógico. Conhecimento, trabalho, prazer e amor são as fontes de nossas vidas e deveriam também governá-las e a responsabilidade total deveria ser assumida pelos homens e mulheres que trabalham.
A higiene mental em escala exige o poder do conhecimento contra a ignorância; o poder do trabalho virtualmente necessário contra qualquer forma de parasitismo, quer seja de interesse econômico, intelectual ou filosófico. A visão científica racional da vida exclui a ditadura e exige a democracia racional do trabalho, o poder social exercido pelo povo, produzido pelo amor natural à vida e pelo respeito ao trabalho executado, o que requer massas trabalhadoras psiquicamente independentes e o que impede isto é a neurose psíquica da multidão que se materializa em todas as formas de ditadura e tumulto político.
Esta estrutura social requer a verdadeira democracia que não é uma condição de liberdade que passa a ser oferecida por um governo eleito e totalitário. A verdadeira democracia é um processo longo e difícil e não, uma manifestação acabada; nela o desenvolvimento será contínuo e impossível de ser interrompido; o senil dará lugar ao jovem e novo, em vez de reprimi-lo apelando para a autoridade convencional.
A tradição é importante para se conhecer as boas e más experiências e capacitar para aprender, senão, ela será a ruína da democracia, negando às gerações mais novas a possibilidade de escolhas e ditando o que deve ser encarado como bom e como mal. Os tradicionalistas se esquecem que, há muito, perderam a capacidade de decidir.
O caráter político irracional deve ser substituído pelo domínio racional do processo; o que exige uma progressiva, auto-educação do povo em direção à liberdade responsável, em vez da suposição infantil de que a liberdade deve ser recebida como presente. Neste processo, a psicanálise foi um soco na cara do pensamento convencional. Ela considera a ação consciente apenas uma gota comparada ao mar do inconsciente do qual você nada pode saber – e tem medo de saber. Você é um brinquedo na mão do seu próprio inconsciente.
O homem tem que insistir material e psiquicamente em uma sociedade que não segue qualquer modelo prescrito e tem de defender-se: a vida diária o exige. Por ora, aquele que se afasta do caminho comum e se torna um visionário é considerado um doente mental. Quem se livra das fileiras cerradas da turba humana não é compreendido, as pessoas riem dele quando está fraco; tentam destitui-lo quando está forte e é condenado a desencadear a sua própria ruína. Este é o destino de quem tenta se libertar das fileiras cerradas de uma ciência autorizada e do pensamento linear, elitista e pré-estabelecido como dogma. A teoria científica convencional é um ponto de apoio, uma alavanca no caos dos fenômenos vivos. Para quem voa, é uma altitude de milímetros, quão miseravelmente parece que os carros se arrastam lá embaixo. A busca do recomeço é para muitos considerada a loucura, que para Freud é a tentativa de construção do ego perdido.
Todos somos de certa forma uma máquina elétrica organizada e relacionada com a energia do cosmos, numa eterna consonância entre o mundo e o eu, como tal relação é, no geral, altamente negativa e a profundidade do doente mental é humanamente muito mais valiosa. A miséria do sujeito não-convencional e fora da sintonia com a vida cotidiana: um sonhador, um ocioso, os demais são diligentemente encaminhados para a escola e o trabalho e riem do sonhador. Para ele, a vida de todo o dia é estreita e exige um método rígido. Temendo o infinito o homem prático se tranca em um pedacinho da terra e procura segurança para a sua vida, ele cumpre o seu dever e acredita ter a sua paz.
Pensar é muito cansativo e perigoso e o homem prático torna-se cada vez mais impotente e tem uma autoconfiança fascista; é um escravo, um ninguém, mas sua raça é pura e nórdica, sabe que o espírito governa o corpo e que os generais defendem a “honra”. Os ideais são só para os tolos.
Todo e qualquer sintoma deve desaparecer quando seu significado inconsciente tornar-se consciente. Freud explicou que o sintoma pode, mas não tem que desaparecer se seu significado tornar consciente e analisou a tensão sexual como algo agradável e as demais tensões são desagradáveis. Tensão/relaxação causaria prazer, sendo o instinto o aspecto motor deste mesmo prazer, assim, prazer orgástico e sensações táteis levam ao prazer como um componente ativo-motor. Reich complementa este raciocínio com a teoria do inconsciente dos processos somáticos, segundo a qual se alguém contraísse um câncer era a fim de que inconscientemente o desejava como processo de compensação de algum outro aspecto vital o que Freud analisou como a etiologia das neuroses e psicoses e os psiquiatras se recusavam a tomar conhecimento disto e se excediam em ridicularizá-lo.
A hipocrisia sexual do ambiente do psicótico é um delírio de sujeiras e anti-sociabilidade e por esta ótica, para poderem existir, as pessoas têm de renunciar aos seus próprios interesses vitais e adotar formas artificiais de vida. Os psicóticos se consideram certos e não, os outros.
Se alguém conhece realmente a terrível angústia das crianças pequenas que são proibidas de masturbarem-se, então entenderá o semelhante comportamento do paciente neurótico. Ele desiste do mundo e passa a criar um outro mundo irracionalmente governado. Graças ao conhecimento da teoria da sexualidade infantil e da repressão dos instintos pode-se ter uma melhor compreensão interna dos pacientes psicóticos. Toda enfermidade ou manifestação psíquica tem uma causa física – materialismo mecanicista. O psíquico e o somático são dois processos paralelos que exercem efeitos recíprocos de um sobre o outro.
Mesmo na psicanálise o conceito de caráter não estava livre das avaliações morais. Havia o estigma do caráter anal e do caráter oral e Freud havia mostrado uma infinidade de modalidades desenvolvidas na infância. Dizia-se que o tratamento psicanalítico requeria certo nível de organização psíquica do paciente e que para muitos não valeria a pena, limitando o tratamento a sintomas neuróticos circunscritos a pessoas inteligentes, capazes de livres associações e possuidoras de caráter “corretamente desenvolvido”, era o conceito feudalista da psicoterapia.
Com a criação de clínicas psiquiátricas públicas e para pessoas pobres, começou-se a difundir a ideia de que a neurose é uma doença da massa, uma epidemia, e não, um capricho de mulheres mimadas. Porque o analista conseguia curar um paciente e não outro, também era uma questão de primeira grandeza. Se soubéssemos o porque, poderíamos “selecionar” melhor os pacientes.
Pacientes perturbados mentalmente se encontravam, em absoluto, fora da cidade. Ações compulsivas, comas histéricos e impulsos homicidas, no caso de pessoas abastadas, socialmente inofensivas, assumiam, no caso dos pobres, um caráter absurdo e perigoso, considerados como criminosos e perversos, quando se tratava de operários e empregados.
Os marxistas diziam que a etiologia sexual da enfermidade psíquica era um capricho burguês, apenas a “necessidade material” que produzia a neurose e viam a neurose como um capricho de senhoritas burguesas.
As neuroses da população operária carecem muito simplesmente do refinamento cultural. São cruas e ásperas revoltas contra o massacre psíquico a que todo mundo é submetido. O cidadão próspero suporta sua neurose com dignidade, ou manifesta-a materialmente, de uma ou outra forma. Entre as grandes massas da população que trabalha a neurose se manifesta com toda a sua deformidade trágica.
Categorias de neuroses ou enfermidades psicóticas – estágio transitório entre a neurose e a psicose que a pessoa quer livrar-se pelo exagero de ações impulsivas, como produto de uma atitude contraditória e brutal. Os neuróticos compulsivos e os pacientes histéricos foram educados desde tenra idade de forma absolutamente anti-sexual. Na primeira infância não tiveram orientação sexual e se tornaram prematuramente ativos e foram punidos com brutalidade. Assim, a punição se torna um eterno sentimento de culpa sexual: o ego defende-se contra a consciência exagerada, reprimindo, da mesma forma, os desejos sexuais.
Nestes tratamentos, a satisfação sexual inibe os instintos psicológicos e os impulsos anti-sexuais perversos, o que requer um trabalho de análise do caráter do paciente. Era nova a concepção de que os impulsos perversos fossem ampliados pela perda da função sexualmente normal. Dizia-se que a sexualidade anal dos pacientes neurótico-compulsivos era causada por uma forte pré-disposição erógena da zona anal que determinava a tendência de estados depressivos. Presumia-se um erotismo particularmente forte da pele que se encontrava na fantasia masoquista de apanhar. O exibicionismo era distribuído por uma erogenicidade especialmente forte dos olhos; um erotismo muscular exagerado que passava a ser responsável pelo sadismo.
A ação anti-social depende da perturbação genital, levando-a aos instintos parciais isolados. Toda zona erógena (boca, ânus, genitália, pele, etc.) tem um instinto parcial correspondente, como por exemplo, o prazer de olhar, o prazer de apanhar, o prazer de bater. Segundo Freud, as meninas têm apenas uma sexualidade, a clitoriana e não experimentam o erotismo genital na primeira infância. Enquanto que para Reich os impulsos sexuais pré-genitais aumentam com a impotência e diminuem com a potência, o que se vincula com a relação com pai e mãe. É possível que aos cinco anos o garoto possa desejar oralmente a mãe e a menina pode desejar o pai de forma oral ou anal. As relações das crianças com os adultos podem acontecer de formas variadíssimas. Portanto, a fórmula de Freud: “amo meu pai ou minha mãe ou odeio meu pai ou minha mãe”, era apenas o começo, a ponta de um iceberg de tamanho e proporções descomunais.
Um menino que tivesse uma relação genital plenamente desenvolvida com a mãe, teria muito maior facilidade de estabelecer uma relação genital com uma mulher do que o menino que tivesse amado a mãe apenas de uma forma genital e perversa. No primeiro, bastaria afrouxar a fixação, já o segundo teria assumido características passivas ou femininas. A mesma razão se segue com as meninas que tivessem uma atração vaginal ou anal pelo pai ou tivesse desenvolvido uma posição sádica masculina. O prazer pré-genital e o prazer genital constitutivos da teoria de Reich só são avaliados a partir de tais pressupostos.
O garoto que assiste ao parto da mãe e vê aquele espaço vazio e sangrento entre suas pernas, ficará psicologicamente castrado, sendo induzido a não ter nenhuma ereção, tendo um sentimento de vazio dos órgãos genitais, retração da energia biológica, frieza emocional e morte dos genitais. Freud afirmava que neurose e angústia eram resultados da abstinência sexual ou do “coitus interruptus” – trazendo dores nas costas, dores na cabeça, irritabilidade, perturbações de memória e da concentração, chegando, muitas vezes à histeria e à neurose compulsiva.
A emoção tem origem nos instintos, portanto, no campo somático, então qual é a relação entre o físico, o não-físico e a excitação? Conclui-se que a neurose estática é uma perturbação física provocada pela excitação pessoal inadequadamente resolvida; insatisfeita, o que Freud descreveu como repressão neurótica aos mecanismos infantis. Os que estão psiquicamente doentes precisam de uma só coisa: uma satisfação genital plena.
Na nossa sociedade psicótica um homem é considerado “potente” quando é capaz de realizar o ato sexual pelas vias convencionais. É “muito potente” quando consegue realiza-lo muitas vezes numa só noite. Há até quem considere como “potente” um homem capaz de satisfazer uma mulher ao ponto de causar-lhe inflamações na vagina – o que, sem dúvida, é um conceito muito mais que enganoso. Uma mulher é considerada genitalmente sã quando é capaz de experimentar um orgasmo clitoriano. Em suma, ninguém tinha ideia da função natural do orgasmo, sendo a perturbação genital a fonte da energia dos sintomas neuróticos.
As pessoas ainda confundem o ato sexual puramente animal com a posse afetiva e amorosa. A enfermidade genital que leva à perturbação neurótica é muito mais comum nos homens que são os mais psicóticos, principalmente os que gostam de exibir a sua masculinidade. São potentes, mas não experimentam o prazer – ou apenas um prazer pequeno no momento da ejaculação – experimentam isto sim, mais o desgosto e o desprazer – têm atitudes sádicas e vaidosas muito mais que as mulheres.
Para o homem ostensivamente potente, relação sexual significa penetrar, dominar e conquistar a mulher e quer apenas provar sua potência e ser admirado. Quem não tiver uma compreensão plena do papel e da importância da impotência sexual e suas implicações, jamais perceberá a diferença entre saúde e doença, a ânsia humana de prazer ou a natureza dos conflitos entre pais e filhos e a miséria do casamento. Jamais compreenderá o êxtase religioso e o irracionalismo fascista. Não será capaz de resolver nenhum problema pedagógico e não compreenderá a relação entre os processos sexual e vital.
O homem é a única espécie que destruiu a função natural da sexualidade e está doente por causa disso. Porque desconhece na prática cotidiana que potência orgástica é a capacidade de abandonar-se livre de quaisquer inibições, ao fluxo da energia biológica; a capacidade de descarregar completamente a excitação sexual reprimida por meio de involuntárias e agradáveis convulsões do corpo.
Nenhum neurótico é orgasticamente potente e a estrutura do caráter da maioria dos homens e mulheres é absolutamente neurótica. Quanto mais é abrupta a queda da excitação mais intenso será o prazer; maior e melhor será o seu impacto na construção da saúde sexual, moral e psicológica da pessoa. E indivíduos sadios e equilibrados construirão naturalmente relações melhores e mais inteiras, o que culminará com a realidade social plena de paz, liberdade e amor.
A passividade sexual das mulheres, embora comum, é patológica. A impotência e a frieza são a chave para o entendimento da economia das neuroses. O pré-requisito fundamental para este processo terapêutico consiste em tornar o paciente consciente da sua sexualidade reprimida, o que pode garantir a cura quando também elimina a fonte de energia da neurose. A excitação sexual é um processo somático e os conflitos da neurose são de natureza psíquica. A maior parte dos crimes é a consequência de um desejo inconsciente de punição que compele a pessoa a cometer o ato criminoso. Os instintos sexuais individuais não funcionam independentemente uns dos outros, mas constituem uma unidade, como líquido em vasos comunicantes.
Um homem que considere inconscientemente seu pênis como uma faca, ou que o use para provar a sua potência é incapaz de uma entrega total ao ato sexual. Tem medo de ser surrado, punido, escandalizado ou castrado, é algo diferente – e muito maior – da angústia que se sente na iminência do perigo real – o medo e a apreensão passa a ser uma experiência mórbida da angústia. É necessário distinguir a angústia que resultava de uma êxtase de excitação e a angústia que era a causa de uma repressão sexual, a primeira determinava neuroses estáticas e a segunda, psiconeuroses.
O ódio é mais intenso quando o desejo de amar e ser amado é bloqueado: um exemplo seria o assassinato sexual, seu requisito é o completo bloqueio da capacidade de sentir prazer genital de forma natural. Os animais selvagens são inofensivos quando bem alimentados e sexualmente satisfeitos. Os touros só são selvagens e perigosos quando são levados para junto da vaca, não, porém; quando são afastados. Cães acorrentados são muito perigosos quando sua atividade motora e sua satisfação sexual são impedidas.
Acabei por entender os traços brutais de caráter que se manifestam em condições de insatisfação sexual crônica. Pode observar este fenômeno em solteironas e moralistas ascéticos. Há mulheres que na menopausa não apresentam traços de maldade ou ódio irracional, há outras que desenvolvem plenamente estas características, o que está intimamente ligado à experiência genital anterior. O segundo tipo é o de mulheres que nunca tiveram uma relação amorosa satisfatória e agora lamentam esta falha. Cheias de ódio e de inveja, tornam-se mais violentas e oponentes a qualquer forma de progresso.
A angústia sexual é causada por uma frustração externa o que leva ao medo do orgasmo e isso se deve ao desconhecimento da experiência do prazer: o prazer de viver e o prazer do orgasmo são idênticos e a angústia do orgasmo é a base do medo de viver.
As mulheres temem cair sob o poder dos homens e assim, na fantasia, a vagina se transforma em algo que morde e a intenção disso é remover a ameaça do pênis. A angústia do orgasmo é frequentemente experimentada como o medo da morte, ou o medo de morrer. Os homens histéricos, ou são incapazes de experimentar uma ereção durante o ato sexual ou sofrem de ejaculações precoces. As mulheres são frias e igualmente incapazes de excitarem-se, enquanto os homens compulsivamente neuróticos são potentes quanto à ereção, mas nunca, quanto ao orgasmo. Os homens fálico-narcisistas, sempre presentes entre os oficiais, tipo prussianos e que precisam mostrar constantemente a si que são potentes, têm sérias perturbações orgásticas. Eles não amam a mulher, apenas servem-se dela. E entre as mulheres existe a aversão ao ato sexual. A partir daí Freud sempre afirmava que “não devemos confiar no mundo. Aplausos não significam nada. A psicanálise está sendo aceita apenas para ser mais facilmente destruída”.
As palavras podem mentir, mas a expressão nunca mente, pois é a manifestação imediata do caráter. Pessoas que cometem suicídio tiveram sua energia sexual excitada mas não conseguiram uma descarga satisfatória., neste caso, optam por três saídas patológicas: a)impulsividade auto-destrutiva desenfreada (vício, crime, drogas); b)neuroses de caráter por inibição de instintos (neurose compulsiva, histeria, angústia, depressão); c)psicoses funcionais(esquizofrenia, paranoia, melancolia). Isto sem falar dos mecanismos neuróticos operantes na política, nas empresas, na guerra, no casamento, na educação das crianças; todos eles, falta da plena satisfação genital de muitos milhões de pessoas.
Para inúmeros indivíduos com a quebra da castidade pré-matrimonial a atitude em relação ao trabalho mudou. Se até então haviam trabalhado mecanicamente, sem demonstrar nenhum interesse real, considerando o trabalho um mal necessário que uma pessoa assume sem pensar muito, agora se tornavam judiciosas. Se as perturbações neuróticas as impediam antes de trabalhar, agora eram impelidas por necessidade a se entregarem a um trabalho prático, pelo qual pudessem ter um interesse pessoal. Se o trabalho realizado era capaz de absorver seus interesses, florescia. Se, porém, era de natureza mecânica, como o do empregado de escritório, o do homem de negócios ou do funcionário medíocre, então se tornava um peso quase intolerável, levando necessariamente para duas tendências: ou a crescente concentração de uma atividade social à qual o sujeito se entregava inteiramente; ou o veemente protesto do organismo psíquico contra o trabalho mecânico e não edificante, exercido às custas da renúncia aos desejos íntimos. Em outros casos houve o completo abandono do trabalho quando o paciente, uma vez restabelecido se tornou capaz de obter a satisfação genital completa.
Esposas que haviam enfrentado pacientemente a vida com maridos que não amavam e que haviam se submetido ao ato sexual por exclusiva obrigação, não puderam continuar a fazê-lo. Simplesmente se recusaram. Estavam fartas. Não se pode concordar com o princípio de um sistema convencional de que a mulher deve incondicionalmente satisfazer as exigências sexuais do marido enquanto durar o casamento, quer queira, quer não; quer o ame, quer não, quer esteja sexualmente excitada ou não. O oceano de mentiras é abismal neste mundo das relações humanas. Faz-se necessário questionar – e muito – as normas socialmente impecáveis: ser fiel apenas por obrigações conjugais – a ideia de amar o companheiro contra a sua vontade é inaceitável, mesmo do ângulo estritamente moral, criando uma astuta contradição entre o “não quero” e o “não devo” e a consideração vegetativa do “eu gostaria muito”.
A pessoa neurótica e genitalmente mal resolvida caminha sempre de mãos dadas com uma potência fraca e é constantemente forçada a procurar compensações, a desenvolver uma autoconfiança artificial e afetada. A felicidade dos outros lhe desperta o mau humor, porque se sente excitado por ela e não é capaz de gozá-la. Empenha-se na relação sexual, mas apenas para prover a sua potência. Para a pessoa que tem uma estrutura genital e nada mais, o trabalho é uma atividade agradável e uma realização. Para o indivíduo moralista estruturado, o trabalho é um dever cansativo, ou apenas, uma necessidade material e continua a ser o mesmo no leito conjugal, o que podemos chamar de “caráter neurótico”, enquanto o outro, chamamos de “caráter genital” e a atividade terapêutica consiste em transformar o primeiro no segundo.
A cultura de nossos dias baseia-se de fato na repressão sexual e na supressão dos impulsos naturais. A atividade genital é filha do aviltamento e não pode haver correspondência entre sexualidade e felicidade, o que prejudicaria economicamente a ideologia econômico-sexual, explicando assim a vileza da sexualidade e seus perigos. Mas esta “sexualidade” é uma distorção doentia do amor natural e sua felicidade genuína. As pessoas perderam seu sentimento da vida sexual natural, mas avaliam-na com base numa distorção que elas, com razão, condenam.
Por isso lutar pela ou lutar contra a sexualidade é fútil e inútil. Por causa destas distorções o moralista sempre sairá vencedor. A distorção não pode ser tolerada. Isso é o que causa um impasse nas discussões e torna difícil a luta por uma vida sã. Falamos de sexo, não nos referindo ao ato animal, mas à posse inspirada no amor genuíno: não urinar na mulher, mas, fundamentalmente, fazê-la feliz. Homens e mulheres com sentimentos sãos a respeito da vida têm de suportar calados o sinal de depravação com que são estigmatizados por outros que se deixam dominar não só pelo medo e pela culpa, mas também, por fantasias perversas. Não há em nossa sociedade uma única organização que defenda os sentimentos naturais da vida.
O povo se torna neurótico em larga escala e para se resolver esta questão é preciso descobrir a relação entre a educação da família autoritária e a repressão sexual. Os pais reprimem a sexualidade das crianças pequenas e dos adolescentes sem saber o que fazem, obedecendo às injunções de uma sociedade mecanizada e autoritária, o que leva as crianças a desenvolver pelos pais uma fixação perigosa marcada pelo desamparo e pelo sentimento de culpa, o que lhes impede de libertarem de uma situação de infância com todas as inibições e angústias sexuais concomitantes. As crianças são educadas para se tornarem adultos com neurose de caráter e depois, transmitem isso para os seus filhos e assim, de geração em geração. Dessa forma se perpetua a tradição conservadora que teme a vida. Como, apesar disso podem as pessoas tornarem-se e permanecerem sãs?
Apesar da situação neurótica da família é possível que algumas pessoas se tornem e permaneçam sãs. A pessoa doente e a pessoa sã sofrem com o conflito familiar e a repressão sexual. O flagelo maciço da neurose se dá em três etapas distintas da vida humana: a primeira infância a través do lar neurótico, na puberdade, e, finalmente, no casamento compulsivo e de concepção moralista.
Quanto mais cedo um adolescente chega a um ato sexual satisfatório, mais é incapaz de adaptar-se à estreita exigência de “um companheiro só para a vida inteira”. A exigência do ascetismo dos adolescentes é justamente para torná-los dóceis e casáveis. As gerações mais velhas sentem-se aviltadas quando a juventude transcende o que ela não pode alcançar, por isso ela é educada convencionalmente de forma a ser incapaz para o prazer.
As necessidades sexuais podem ser satisfeitas com um único companheiro, apenas por algum tempo; sendo, portanto, necessário rever a questão do casamento que já é minado pela própria abstinência pré-matrimonial e a satisfação sexual está em discordância com os regimes do casamento e a monogamia vitalícia. A intimidade sexual e a amizade humana são substituídas nas relações conjugais por uma fixação materna ou paterna e por muita dependência escravizante: em suma, por um incesto disfarçado. As pessoas sofrem caladas: tapeiam-se e se tornam hipócritas.
Quão profundo é o abismo que separa o pensamento científico-natural do funcional. Toda descoberta científica inclui uma pressuposição ideológica e uma consequência social prática. A lógica abstrata tem a função de admitir os fatos científicos sem permitir uma só conclusão prática, é tudo o que a ideologia conservadora quer defender: a perpetuação do conservadorismo com arrogância e ignorância, mantendo o poder para quem tem poder e bens para quem tem bens.
Por que nos recusamos a questionar a atitude de tolerância do trabalhador, sua renúncia patológica ao conhecimento e aos frutos culturais deste mundo da ciência? E sua ânsia de autoridade que devemos contemplar como simples espectadores, enquanto o mundo se precipita no abismo sob a forma de chaga fascista? O cientista, por sua vez se recusa a lutar contra a chaga psíquica numa renúncia heroica à felicidade, que culmina com o teor religioso que leva o homem pacífico a enxergar uma única saída por meio de um pai imenso e excelso.
A repressão torna o organismo rígido e incapaz para o prazer quando não há perspectiva de satisfação e a experiência de felicidade é ameaçada com a punição. A maior experiência de prazer, o orgasmo sexual, tem a particularidade de pressupor uma repressão de energia não só biológica – o medo de engravidar – como também todas as formas de pressão da família conservadora, da sociedade machista, das normas convencionais da igreja, sob a pressão do pecado. O homem que tem vários orgasmos com muitas parceiras é forte, viril, talentoso, atraente. A moça que faz amor com o namorado é uma despudorada, fútil e fonte de vergonha para a família e o meio social como um todo.
Produzir ciência cuidadosa e honesta é “quase um crime” numa sociedade que não mede esforços para reprimir sexualmente a criança e o adolescente, o que encerra sérios problemas na formação do caráter. A repressão da sexualidade natural torna as pessoas doentes e anti-sociais. Nunca será possível vencer a hipocrisia moralista que mutila nossas crianças e adolescentes se continuarmos a perpetuar a enfermidade psíquica como produto lógico da repressão dos instintos sociais diversos, fazendo dos seres humanos criaturas altamente doentes, anti-sociais, inseguras e maliciosas.
As pessoas são frequentemente corruptas, fúteis, desleais, cheias de vazios chavões ou simplesmente secas, no que são transformadas pelas condições da vida, enquanto poderiam ter se tornado decentes, honestas, capazes de amar, sociáveis, naturalmente responsáveis; flexíveis e sem compulsão. Estamos lidando com contradições de caráter que refletem na sociedade como um mecanismo neurótico.
Uma criança brinca de maneira natural. Se coibida por seu ambiente, a princípio, defende-se contra a coibição. Vencida, preserva apenas a defesa contra a limitação do prazer, sob forma de reações irracionais de desrespeito, destituídas de objetivos e patologias. Da mesma forma é o comportamento humano. O anseio do homem pela vida e pelo prazer não pode ser aniquilado enquanto o caos social da sexualidade não for totalmente eliminado de nossa cultura e práticas cotidianas.
Segundo Freud, a irrestrita satisfação também significa antepor o prazer à prudência, associando a felicidade a impulsos anti-sociais produzidos por uma educação compulsiva. E ainda assim o uso de narcóticos para conseguir a felicidade e dominar a miséria é encarado como uma bênção. O homem sexualmente satisfeito é também um homem mais produtivo em todos os sentidos. A supressão da sexualidade das crianças e dos adolescentes tinha a função de tornar mais fácil para os pais insistir na obediência cega dos filhos. Nos primórdios do patriarcado econômico a sexualidade das crianças e dos menores de idade era combatida por meio da castração direta ou da mutilação genital. E mais tarde, a castração psíquica por meio da inculcação da angústia sexual e do sentimento de culpa que tornou-se o mais habitual dos meios. A supressão sexual torna o homem dócil. A castração dos garanhões e dos touros tem a função de produzir satisfeitos animais de carga. Ninguém pensou nas consequências da castração psíquica. Freud confirmou mais tarde a relação entre repressão sexual e atitude de submissão.
A formação de uma estrutura de caráter sexual negativa era o objetivo real e inconsciente da educação. A pedagogia não pode se separar da estrutura do caráter o que se liga ao objetivo social da educação que sempre serve ao sistema existente. Se este sistema está em desacordo com os interesses da criança, então a escola deve ignorar os interesses dela, sendo infiel a si mesma e render-se aberta e hipocritamente estabelecendo o seu objetivo como se fosse o bem-estar da criança.
Essa educação não se distingue da família compulsiva que oprime a criança e despreza as grandes revoluções sociais que tiveram lugar na vida sexual do homem e na vida da família. Claudicava e claudica atrás de mudanças concretas e embaraçou-se em seus próprios motivos irracionais, dos quais não tem consciência.
A propagação da neurose é a propagação do flagelo. É mais difícil combater a neurose social; pois, medidas higiênicas oneram demais as massas. As somas do dinheiro gastas na guerra em duas semanas seriam suficientes para satisfazer as necessidades afins de milhões de pessoas, enquanto isto, a estrutura psíquica neurótica vai se tornando uma estrutura psíquica somática, uma segunda natureza, que por si, vai delineando o caos irreversível da humanidade inteira.
Os assassinatos de origem sexual, os abortos criminosos, a agonia sexual dos adolescentes, a destruição de todos os impulsos vitais na criança, a perversão em massa, a pornografia e a polícia de costumes; acompanha tudo isto a exploração do profundo anseio humano de amor – a politicagem neurótica dos pretensos salvadores da humanidade.
Historicamente, as funções biológicas e psicológicas dos homens sempre estiveram nas mãos de mulheres sexualmente frustradas. Não havia nada contra a sociedade de velhas damas frustradas sexualmente e contra outras culturas mumificadas. O conflito sexual entre as crianças e os pais mostra a supressão sexual com origem sociológica e cultural e não, biológica. A homossexualidade e a masturbação eram encaradas como meio incompleto e inatural de satisfação sexual e mais ainda, como forma de perturbação crônica. Há, até hoje, grupos de crianças reservadas para um casamento pré-arranjado e política ou economicamente vantajoso.
Crianças saudáveis são sexualmente ativas de maneira natural e espontânea. Crianças doentes são sexualmente ativas de maneira imatura e perversa; o que divide o adulto com sexualidade natural e sã e sexualidade perversa ou neurótica. A supressão sexual é de origem econômico-sexual e não, biológica. A humanidade tem sido por milhares de anos, forçada a negar sua lei biológica e que, em consequência, desenvolveu uma anti natureza autoritária, patriarcal e com proibições morais absolutamente compulsivas; máscara e estrato do inconsciente freudiano: sadismo, avareza, inveja e perversões de toda a sorte.
A culta burguesia europeia do Séc. XIX e início do Séc. XX adotou formas de comportamento moralistas, compulsivas e transformaram o feudalismo no ideal de conduta humana. No iluminismo, os homens começaram a procurar a verdade e a clamar pela liberdade enquanto as organizações moralistas e compulsivas os governavam (e ainda governam): leis coercitivas, ciência compulsiva, vigorando a paz enganosa com irrupções ocasionais gerando neuroses sintomáticas, ações criminosas neuróticas e perversões; é quando a revolução começa a despertar o povo europeu para o desejo de liberdade, independência, igualdade e autodeterminação com a urgência interior de libertar o próprio organismo vivo.
Após a Primeira Guerra Mundial se destruíram muitas instituições frias, brutas, mesquinhas autoritárias e compulsivas, as democracias queriam conduzir o povo para a liberdade e se empenhavam diuturnamente nisto, cometendo um enorme erro de cálculo, não conseguindo ver os milhares de anos de repressão das energias vitais dos homens e nem o defeito enorme da neurose de caráter, a chaga psíquica, a estrutura irracional do ser humano, a vitória das ditaduras que o verniz superficial da “boa” educação e um autocontrole fantasioso haviam refreado durante tanto tempo.
Os campos de concentração, a perseguição dos judeus, a sádica e divertida destruição de cidades inteiras, a monstruosa traição às massas por governos autoritários que alegam representar o interesse do povo; na submersão de dezenas de milhares de jovens que ingênua e desamparadamente acreditavam estar servindo a uma ideia; na destruição de bilhões de dólares, frutos do trabalho humano, o que era suficiente para eliminar a pobreza do mundo inteiro, tudo feito por uma neurose que se intitula “alta política” e que floresce sobre o desamparo dos cidadãos do mundo.
No fascismo torna-se patente a doença psíquica das massas. Os oponentes do fascismo procuravam solução na personalidade de Hitler e nos erros formais dos vários partidos ‘democráticos’ da Alemanha, o que significava transbordar o flagelo da miopia individual ou a brutalidade de um só homem. O fascismo não operava com o pensamento do homem – Hitler – mas com as reações emocionais infantis. Aqueles que não entenderam isso não entenderam o fascismo que é um fenômeno internacional. O povo, não conseguindo conhecimentos, atirava-se às mãos de um guia autoritário e a ilusória proteção que se lhe prometia. Hitler liquidou a liberdade individual em nome da liberdade nacional levando milhares de pessoas a optarem por esta liberdade ilusória que as livrava da responsabilidade individual. Suspiravam por uma liberdade de gritar, de fugir da verdade, a liberdade de serem sádicos, de atrair mulheres com os seus uniformes, de sacrificarem-se por alvos imperialistas ao invés de lutarem cegamente por uma vida com melhor qualidade. A liberdade de reconhecer a autoridade política tradicional em vez da autoridade baseada no conhecimento dos fatos.
O fascismo é meramente a extrema consequência reacionária de todas as anteriores formas não-democráticas de liderança dentro da estrutura do mecanismo social, usando o desejo de liberdade das multidões. Assim, Hitler prometeu a supremacia do homem, e, especialmente, do homem que trabalha. As mulheres seriam relegadas aos planos da casa e da cozinha, sendo-lhes negada a independência econômica e excluídas do processo de formação da vida social, esmagando-lhes a liberdade. As mulheres foram as primeiras a aclamá-lo porque ele prometeu a destruição das organizações autocráticas e burguesas.
A igreja se associa a ele pregando a felicidade no outro mundo, valendo-se do conceito de pecado, implantando profundamente na estrutura da mente humana uma desesperada dependência de uma figura sobrenatural e onipotente. Hitler declarou-se este ser onipotente e onisciente, enviado por Deus e que poderia afastar a miséria do mundo.
No lugar da atividade espontânea, Hitler prometeu o princípio da disciplina compulsiva, do trabalho escravo e obrigatório, mesmo assim, vários milhões de trabalhadores empregados alemães votaram nele, educados para não entender nada a respeito do processo de trabalho, e por isso, impedidos de fazê-lo, acostumados a serem excluídos do controle da produção e receberem apenas seu mísero salário; se identificando com o Estado e a Nação que eram “grandes e fortes”.
Hitler declarou abertamente que as massas populares eram infantis, femininas e fracas e que apenas repetiam o que era incutido nelas. Milhões de pessoas o aclamaram, “pois ali estava um homem que queria protegê-las”. Ele exigiu que toda ciência fosse subordinada ao conceito de raça – a metafísica da hereditariedade. A teoria das substâncias herdadas e predisposições na compulsão do comportamento humano, considerando câncer, neuroses, psicoses e angústias como hereditários. A teoria fascista da raça é apenas uma extensão das convenientes e burguesas teorias da hereditariedade e de preservação da família a partir do abstrato chavão de que, quem criticasse a família e o amor entre os pais e filhos era um inimigo da pátria, um destruidor da sagrada instituição familiar, um anarquista.
A família alemã, autoritária típica, principalmente no campo e nas pequenas cidades inculcava a mentalidade fascista aos milhões e moldavam a criança de acordo com o modelo compulsivo da renúncia e da obediência cega e absoluta à autoridade que Hitler sabia explorar tão brilhantemente, o que era transmitido para a família maior: a Nação: “Mãe Alemanha e Deus Pai Hitler” tornaram-se símbolos das emoções infantis profundamente arraigados. E assim houve na Alemanha, por exemplo, muito mais suicídios e miséria higiênico-social. O fascista, quando diz judeu, significa: o ganhador de dinheiro, o usuário, capitalista, sujo, bestialmente sexual, castrador e assassino, o que vem completar a ideologia horrendamente dominadora imposta por este modelo de sociedade.
Caminhando finalmente para a questão específica do orgasmo, do prazer e da saúde sexual neste contingente árido da convulsão, dos poderes e da tirania do ser humano e como um dos caminhos para a busca de solução, entendemos que a pessoa sexualmente sã é aquela que tem de 3 a 4 mil relações sexuais de boa qualidade durante a vida, mas em média, 2 ou 3 filhos. Métodos anticoncepcionais são absolutamente necessários à saúde sexual. Por causa da educação defeituosa sexualmente, muitos homens e mulheres mantêm-se insatisfeitos durante as relações sexuais, daí ser imprescindível uma educação sexual profundamente afirmativa e libertária, principalmente da criança e do adolescente. A abstinência sexual prolongada é absolutamente nociva. “Lute por este direito”. A negação compulsiva da atividade sexual prazerosa e saudável torna possível aos psicopatas agir como ditadores e modernos propagandistas sexuais que envenenam a vida de todos nós. Em suma, o que é necessário é efetivar a liberação e a proteção da sexualidade natural de todos, e, muito especialmente, das massas populares.
A sexualidade sempre foi e continuará sendo o cerne biológico da estrutura do caráter. Na concepção do fascismo, apenas os impulsos perversos vieram à tona. O mundo pós-fascista efetuará a revolução biológica que o fascismo não realizou, pelo contrário, fez tudo para dificultar e com isto, tornou-a profundamente necessária e inadiável.
O que fazer com a energia sexual liberada? O mundo dizia não a tudo que a higiene e a saúde sexual exigiam. Os instintos naturais são fatos biológicos que não podem ser modificados e como todos os organismos vivos o ser humano necessita primeiramente de matar a sua fome e de satisfazer seus instintos sexuais e a sociedade moderna dificulta a primeira e frustra a última.
Para a psicanálise, o prazer de sofrer a dor era o resultado de uma necessidade biológica. A dor e o desprazer são os desejos instintivos do masoquista. Há indústrias inteiras que florescem às custas da falsa ideia de masoquismo que ajudaram a criar. Por que o masoquista sente-se compelido a ser atormentado? A perversidade crônica se encontra na base desta fantasia. O masoquista deseja romper-se, pois só assim consegue a relaxação. Sofrer e suportar o sofrimento são resultados da perda da capacidade orgástica para o prazer. Assim, sem que pretendesse foi descoberta a dinâmica de todas as religiões e filosofias do sofrimento e através dos contatos com o cristianismo pode-se perceber a conexão entre o mecanismo biológico e a religião , o êxtase religioso configura-se com o mecanismo masoquista.
As massas trabalhadoras sofrem graves privações de toda a espécie. São exploradas e dominadas por uns poucos que detêm o poder. Em forma de ideologia e prática de várias religiões patriarcais, o masoquismo prolifera como erva má e sufoca todos os direitos naturais à vida. Mantém as pessoas no estado abissal de submissão. Impede suas tentativas de chegar a uma ação racional comum e os satura do medo de assumir a responsabilidade de sua existência. É a causa do fracasso dos melhores impulsos de democratização da sociedade.
As pessoas são, de fato, submissas à liderança totalitária do Estado da mesma forma que o indivíduo é obediente ao pai-todo-poderoso. A revolta contra a autoridade ditatorial é considerada neurótica, enquanto a resignação às suas instituições e exigências é tida como absolutamente normal e, quando não, digna de méritos e prêmios.
A fricção sexual é um processo biológico fundamental para a operacionalização da forma do orgasmo composta de tensão/carga/descarga/relaxação e ocorre em todo o reino animal, iniciando-se com a excitação biológica junto com a congestão, expansão e ereção; governando o corpo por processos elétricos que buscam o permanente equilíbrio, segundo uma conhecida lei da física, o orgasmo é uma carga elétrica, e, dependendo do seu movimento de um pólo negativo para um positivo e/ou vice-e-versa e tudo isso tem muito haver com o problema da sexualidade que é o elo catalisador central de todas as funções e atividades humanas.
As convulsões que levam ao clímax, ou orgasmo surgem de uma tensão sentida em todo o corpo, mais fortemente nas regiões do coração e do abdômen e se concentrando nos órgãos sexuais que se tornam congestionados com o sangue, excitando assim outros pontos, o que aumenta com o processo de fricção, levando ao clímax que é uma condição caracterizada por convulsões involuntárias da musculatura dos genitais e do corpo inteiro que é acompanhada da descarga de energia elétrica; armazenada nos dois corpos e depois descarregada no orgasmo por meio, principalmente, das contrações espontâneas.
Imaginemos uma bexiga que pode expandir-se até um grau extraordinário e então, com poucas contrações relaxar-se. Pode estar flácida, tensa, relaxada ou excitada. Pode conservar certas partes em estado de tensão contínua e outras num estado constante de movimento. Se apertássemos de um lado, uma tensão e uma carga aumentada apareceriam do outro. Se esforçássemos realmente para manter uma pressão constante sobre a superfície toda, impedindo-a de expandir-se por meio da contínua produção de energia, ficaria em perpétuo estado de angústia; sentiria-se constrangida e limitada. Se pudesse falar, pediria que a livrássemos desta situação torturante e alguém teria de fazê-lo, girando-a no espaço (ginástica); amassando-a (massagem); furando-a se necessário (sensação de estar sendo aberta por furos); machucando-a (fantasia masoquista de apanhar); e, se nada ajudasse, dissolvendo-a , destruindo-a, desintegrando-a (nirvana da morte sacrifical).
Uma sociedade formada de semelhantes bexigas criaria as filosofias mais idealistas a respeito do “estado de ausência do sofrimento”, associando o prazer ao medo, à dor. Criaria teorias sobre a maldade, a propensão ao pecado e a ação destrutiva do prazer, teria medo da tão ardente e necessária sensação de relaxação, e então odiaria semelhante ideia e finalmente perseguiria e mataria qualquer um que falasse disso. Juntar-se-ia a outros seres igualmente constituídos, peculiarmente inflexíveis e traçariam normas rígidas de vida para garantir a tranquilidade, a resignação e a continuidade das relações habituais.
Em qualquer hipótese a bexiga seria sempre atormentada pela angústia e tudo mais decorre inevitavelmente desta angústia. Nessa descrição surge o pensamento teológico absoluto no campo da biologia, e, contrariamente a ele, nós não temos relações sexuais com “o fim de gerar filhos”, mas porque uma congestão de fluidos carrega bioeletricamente os órgãos genitais e os pressiona em direção à descarga. Isso, por sua vez, é acompanhado pela descarga de substâncias sexuais. Assim, a sexualidade não está a serviço da procriação; mais propriamente a procriação é um resultado ocasional do processo de tensão-carga-descarga nos genitais. Isso pode ser deprimente para os campeões da filosofia moral eugênica, mas é a mais pura verdade. A procriação é uma função da sexualidade, e não, o contrário.
Precisamos de instrumentos teóricos e práticos para entender as culturas humanas nas quais o patriarcado é estrito à mais severa supressão sexual das crianças pequenas e dos adolescentes, e a ideologia da reserva de autocontrole são parte essencial de todos os círculos culturais. Isto é especialmente verdadeiro quanto às culturas da Índia, da China e do Japão, o que resulta em angústias e cóleras agudas, ambas prejudiciais à cultura da família patriarcal e dependentes da ideologia do autocontrole e do poder de não mover um só músculo, por maior que seja a dor; na verdade, precisam ao mesmo tempo de superar a emotividade: o prazer assim como o sofrimento, o que é a síntese da ideologia budista do nirvana e dos exercícios respiratórios dos iogues que é o oposto exato da respiração que usamos para reativar as excitações emocionais.
Outro fenômeno que desempenha um papel destruidor na vida de nossos dias é a atitude militar, especialmente a levada pelos fascistas, a rígida atitude militar é o exato oposto da atitude natural, solta, ágil. O pescoço tem de estar rígido, a cabeça, esticada, os olhos devem olhar fixamente para o mesmo ponto, o queixo e a boca, numa expressão “varonil”, o tórax, puxado para fora, os braços, mantidos rente ao corpo, as mãos esticadas e o estômago para dentro. As pernas duras e rígidas, os ombros levantados, o pescoço tenso, o abdômen, chupado e a pélvis retraída. As pessoas educadas desta forma e forçadas a manterem esta atitude física são capazes de impulsos vegetativos naturais. Tornam-se máquinas, executando cegamente exercícios manuais e mecanizados, respondendo pronta e obedientemente: “sim, senhor; sim, senhora”, atirando mecanicamente contra seus próprios irmãos, pais e mães.
Ensinar o povo a assumir uma atitude rígida e não, natural, é um dos meios mais essenciais usados em um sistema ditatorial para produzir, com a perda da vontade, organismos que funcionem autoritariamente, sendo esta a estrutura da educação que forma o caráter do homem moderno, o que afeta grandes círculos sociais e destrói a alegria de ser feliz de muitos milhões de homens e mulheres.
Certas expressões habituais na educação na boca de pais e mestres retratam o encouraçamento e o aprendizado do autocontrole: - “Quem quer ser homem deve dominar-se.” – “Não se deve deixar levar.” – “Não se deve demonstrar o medo ou os sentimentos.” – “Cólera é falta de educação”. – “Uma criança decente senta-se quieta.” – Se der vontade de falar, cerre os dentes.”
Essas frases, características da educação, inicialmente são repelidas pelas crianças, depois aceitas com relutância, laboradas, e, por fim, executadas. Entortam-lhes a espinha da alma, quebram-lhes a vontade, destroem-lhes a vida interior, fazem delas bonecos bem educados e incapazes para a felicidade.

III – CRÍTICAS E CONCLUSÕES

Vejo que devemos analisar este fantástico livro em dois aspectos distintos: do ponto de vista científico e acadêmico temos a felicidade de ter uma obra absolutamente atual, moderna, contemporânea e muito importante como referencial para revermos os problemas da vida de hoje. Trata-se de um trabalho belíssimo, imortal e fruto de um amor sem limites de um apaixonado pela humanidade e que teve uma vida inteira como também a sua trágica morte como legados do sofrimento em função de ideias e dos valores que defendia – e ainda defende – por meio de seus estudos, investigações, publicações e pesquisas que fundamentam uma dedicação heroica, dignificante e exemplar, merecedora de profundos aplausos da humanidade inteira em todos e quaisquer momentos da história humana.
Pelo aspecto social, particularmente, denoto com tristeza a realidade dura de que a humanidade evolui, se é que evolui, muito lentamente, por vezes até denotando involuções graves e sucessivas em relação às questões humanas e sociais, sobretudo, no que diz respeito à qualidade de vida das classes populares, das mulheres e crianças pobres, enfim, decorrência de uma profunda ingenuidade ideológica que tragicamente se acirra ao longo dos tempos. Nossos problemas são os mesmos, apenas mais densos e complexos frente à gravidade abusiva com que se apresentam hoje, associados à explosão demográfica, ao desrespeito à natureza e a astuta carência dos meios e recursos renováveis ou não.
Em síntese, a situação atual, e, infelizmente, suas perspectivas futuras a curto e médio prazos são bastante piores e muito mais delicadas do que em 1927, quando este livro foi escrito – há exatos 80 anos – caracterizando longos ciclos históricos absolutamente perdidos do ponto de vista de evolução da família, da educação, da religiosidade, das relações humanas; da conquista do prazer, da alegria e da felicidade, ideais confessos de toda a ciência, filosofia e práticas sociais distintas.
Fica claro na sua leitura o vigor, a vontade e o quase desespero de Reich em poder contribuir de alguma forma para que as pessoas sejam mais felizes e que conquistem melhores dias, engrandecimento interior, e a longínqua felicidade, a paz tão sonhada por todos, e, a cada dia que se passa, mais difícil, eu diria, até impossível de serem encontradas. Para o autor, com o que concordo plenamente, toda a problemática da vida humana está vinculada ao teor da falta de afetividade, de amor, de relações sensitivas mais amenas e contínuas, o que gera a maligna compulsão pelo poder, a competitividade, a violência, os crimes contra a vida, as pessoas e a natureza, e, segundo ele, tudo advém do centro básico de todo o processo que é a sexualidade, a falta de uma orientação saudável para o processo natural da tensão/relaxação/carga/descarga que é um fenômeno simplesmente mecânico e que o organismo requer uma harmonia e um conhecimento profundos de sua prática desde a primeira infância, sendo que a sua repressão pela família, a sociedade e a religião compulsivas, gera neuroses psíquicas que se materializam em crimes diferenciados de acordo com a educação, as condições sócio-econômicas, a realidade específica do meio e da situação familiar, que, no conjunto, são responsáveis pela formação da personalidade da pessoa e que, por sua vez, define a tipologia da ação individual e em grupos, resultando a forma de vida em sociedade.
O autor, por sua vez, apresenta como sugestão de um caminho bem fácil como início da busca de soluções para os problemas humanos e sociais do mundo, que são bem menos complexos que se possa imaginar, que seria a plena liberação das necessidades, compulsividades e desejos sexuais desde a infância, e, segundo ele, seria mais que suficiente para a resolução das grandes dificuldades, das crises e das misérias do mundo que estão ligadas à conjuntura da espécie humana, suas relações, os processos de poder que inventa para garantir a sua competitividade e avareza, mantendo acesa a fogueira das vaidades extremas, o que na verdade, sintetiza as insatisfações crônicas, o extremo sofrimento do ser humano e a precariedade da vida. Enfim, o caos quase que intransponível que estamos juntos atravessando neste especial momento planetário.
Reich nos afirma categoricamente que se todos os seres humanos tivessem resolvidas e satisfeitas as suas necessidades e fantasias sexuais e genitais de forma biológica e psicologicamente equilibrada, saudável, e, acima de tudo, muito amorosa, ou seja, distante da posse animal, da convulsão angustiante dos desejos não- realizados, mas centradas no profundo respeito, no contato, no amor e no afeto; o mundo seria totalmente outro, com os rigores do poder e da competitividade doentias diluídos, mantendo as pessoas, as relações mais saudáveis e amistosas ao longo de todo o processo vivencial que vem sendo perdido enquanto uma humanidade sexualmente doente se destrói em meio a subterfúgios e enganos, competição, ódio, culpa, guerra, morte, fome, miséria, corrupção, degradação da natureza, roubos espetaculares, doenças incuráveis e toda a sorte de sofrimentos insuportáveis para os habitantes deste dito“mundo civilizado”.
O autor parte assim da análise sistêmica dos fatos e fenômenos que circunscreve a partir da dinâmica da vida sexual das pessoas, enquanto se embasa, inicialmente, nos conceitos psicanalíticos de Freud, no que diz respeito ao contexto da polarização dos segmentos vivenciais relativos à primeira infância e a relação da pessoa com pai e mãe, o tri-pé da constituição da família e depois, complementando com a visão da similaridade dos fenômenos, ou seja, a verossimilhança entre os fatos gerais que compõem o cotidiano dos seres humanos no mundo. Desta forma, o processo de tensão/carga/relaxação/descarga é fundamental para tudo o que é vivo, no cômputo da vida animal, e, incluindo aí, é claro, os seres humanos, sendo na sexualidade que está o centro deste conjunto de atividades e ações, o que ele chama de “sistema sexual complexo”.
O orgasmo, como forma máxima do prazer orgânico, natural e gratuito, pois vem de dentro para fora e depende de uma ação múltipla e negociada entre dois corpos que multiplamente se atraem, precisa então, na sociedade compulsiva e arbitrária, ser reprimido, punido e cobrado, pois agindo assim, é claro, teremos indivíduos proibidos de ter prazer, impulsionados negativamente pela culpa, o medo ou o conceito ultra milenar do pecado, sendo, é claro, mais facilmente dominados, explorados e consumidos no jogo da imposição dogmática do poder, da ordem, da disciplina e da hierarquia rígida, sexista e imposta – especialmente no sistema capitalista – o que está intimamente ligado à ordem política e econômico-social, originando desta forma a dinâmica da cultura que determina as relações dos seres humanos no mundo.
Quem é livre para ter prazer – orgasmo – lógico, é também livre para reivindicar, coibir, questionar, negar, criticar, enfim, para exigir uma qualidade de vida cada vez melhor com acesso aos meios de produção, à riqueza, ao bem-estar, ao poder de decidir. O que Reich quer chamar a atenção é que neste segmento, seria eminentemente perigosa uma sociedade com “orgasmos livres”, com direito ao prazer e à satisfação de suas necessidades interiores mais íntimas; daí uma educação repressiva, numa escola fria, rígida e dura; uma família com compulsão para o medo, o poder, o rigor da disciplina e da norma imposta a qualquer custo, os estatutos empresariais que exprimem dogmas que oprimem e controlam o horário, as vontades, os ritmos e estilos de cada pessoa, arregimentando massas dóceis e manipuláveis. O Estado opressor, castrador e punitivo age da mesma forma por meio de suas leis e decretos e assim por diante, criando e mantendo uma ditadura moderna, simbólica, mas, ao mesmo tempo, altamente recessiva, primitiva e criminosa, que se solidifica, justamente na aparência dos contrários, nos estigmas da evolução e da mentira.
A repressão sexual feita nas crianças pequenas e nos adolescentes por meio da imposição, regras e controles simbólicos e concretos (por que as escolas têm banheiros masculinos e femininos, por exemplo?), já é suficiente para se arregimentar massas altamente condicionadas a aceitarem e a agradecerem ao “Senhor todo Poderoso, Onipotente e seu Salvador”, com o que conta com o poder compulsivo da igreja, notadamente dentro dos modelos judaico-cristãos que por si já afunilam um referencial machista – de um Deus e um Cristo representados por figuras masculinas – centralizador, opressor e castrador que é sutilmente imposto pela simbologia da importância da virgindade, o conceito de pecado, a imagem visual dos santos – principalmente das santas: cobertas dos pés à cabeça, em posição de uma humildade e resignada – olhos baixos, mãos postas à altura do peito e atitude final de reverência e submissão.
Enfim, se as relações do ser humano com a sua sexualidade, seus desejos íntimos e seus anseios pelo prazer, a felicidade e a alegria fossem resolvidos efetivamente desde a primeira infância, numa dinâmica saudável e com responsabilidade plena em todos os aspectos da vida humana e o seu estar com o outro; nós teríamos então resolvidos os sérios problemas que afligem a humanidade, destroem o planeta e definem o caos do mundo. A sexualidade, o prazer, os fluxos naturais do organismo vivo precisam ser devidamente satisfeitos e voltados para a harmonia, o desbloqueio, o relaxamento integral do ser, longe da pornografia, dos conflitos morais e do uso abusivo da sexualidade e da sensualidade das pessoas, e, se tivéssemos pessoas mais felizes, inteiras e realizadas, que se sentissem amadas e protegidas, com direito de serem escutadas e participarem dos processos de decisão dos elementos e fatores que interferem em suas próprias vidas, as relações vivenciais de governar, organizar, criar, gerir e conservar, amar e ser amado, ensinar e aprender seriam mais amáveis, fundadas na compaixão, na beleza, no respeito, no sentimento bom e puro, nas responsabilidades ecológica, humana e social.
A submissão da mulher, dos despossuídos, dos trabalhadores, das crianças, dos presidiários e dos doentes que se configura com as relações de poder inicialmente centrada na figura do macho, que manda, impõe e oprime (e as mulheres em posição de mando, geralmente adotam esta postura extremamente masculinizada, tornando-se os “machos de saias” de que nos fala Rose Marie Muraro) quase sempre educado por mulheres submissas e alienadas do processo pela própria força intencional do sistema, que já em si mantém este estado de coisas com muito mais facilidade. As escolas repletas de “professorinhas mal pagas”, as mães de família que não são recompensadas e muitas vezes nem reconhecidas pelo seu trabalho, já fazem parte de uma estratégia econômico-política para a manutenção de processo absoluto, totalitário e explorador da vida humana na sociedade moderna, na qual geralmente a mulher sem voz e sem vez, muitas delas vitimas do câncer, da depressão e outras enfermidades com fenômenos psicossociais claros e definidos, refinando assim, sem que sejam percebidos, os processos de coerção e domínio social das pessoas.
Sabemos que Reich morreu doente mental crônico e na prisão e se agora temos o trabalho de ler e repassar as suas ideias, na época ele teve seus livros confiscados e proibidos, pelo menos em todo o território americano. Ainda hoje, creio que a possibilidade de ouvir, ler, entender, aceitar e muito menos, implementar as suas ideias na realidade social deve, certamente, encontrar uma dificuldade muito maior do que podemos esperar. É que a humanidade morre de medo de ser feliz, a sua evolução é, como já o dissemos, demasiado lenta e ela resiste bravamente a ter uma vida livre, amorosa, cheia da paz, da harmonia e do prazer que ela, paradoxalmente, tanto procura. Vejo que a evolução e a melhora conceitual e no campo das ideias, exceto no que diz respeito à alta tecnologia, foram, na prática, nulas nos dois últimos milênios, tratando-se de um tempo histórico definitivamente perdido.
Os sentimentos da culpa e da autodefesa foram muito bem implantados pelo nazi-fascismo, a condução dos projetos da hegemonia de Hitler, a imposição da moral burguesa como ideal de vida em sociedade, os rigores machistas do cristianismo, e, hoje, pela facilidade da informação, o uso do computador e da internet, os meios de comunicação social como a imprensa, o rádio, a tv devidamente comprometidos com esta ideologia e as elites econômico-produtivas ainda trarão enormes resistências em se tentar repensar e entender tais processos, o que, por certo, constituirá alguns milênios de atraso neste lento e desesperador processo de evolução.
A humanidade continua perdida e muito ingênua, incauta, com alto sentimento de culpa, dependente e medrosa, e hoje, muito mais que em tempos históricos quando os problemas eram bem menos complexos e o planeta passava por diferentes ciclos históricos e milenares de transição. Sinto que hoje a situação é muito mais grave. A educação é seus processos são horrendamente manipuladores, a minimização da oferta de trabalho leva as pessoas a um medo nunca visto de perderem seus empregos, o que por sua vez, faz delas autênticos serviçais mudos e cegos aos rigores da exploração, da crise, da miséria, da destruição gradativa do ecossistema, do rigor, da exploração, do crime e da extrema maldade de grande parte de seus patrões. Religiões e igrejas estão aí aos montes para impingirem com toda facilidade o modelo milenar que garante a riqueza e o poder de poucos por meio da espoliação funcional, doméstica, trabalhista e sexual de muitos milhões, sendo o que a humanidade, de um modo geral continua achando que é certo, definitivo e pronto.
Enquanto o medo, a opressão, a violência, o desamor continuam, Wilhelm Reich – desgraçada e infelizmente - continua morto e imóvel sob os escombros da terra que miseravelmente sofre de todas as agruras e pendências contra as quais ele sempre lutou, enlouqueceu e morreu.
Considero A função do orgasmo – problemas econômico-sexuais da energia biológica, uma obra mais que fundamental, uma leitura indispensável. Deve ser o livro de cabeceira de todos os que vivem neste planeta, que gerenciam, educam, amam, odeiam, comem, ajudam a transformar cotidianamente o mundo, a realidade e suas relações. Com esta leitura, reflexão e prática, certamente tudo: a vida, as pessoas, as esperanças, o mundo caminharão para o melhor. E o que é mais do que urgente e necessário; o melhor para todos.
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(*) Livro escrito em 1927 pelo médico austro-húngaro Wilhelm Reich, com o título original de: “Die function des Orgasmus”. Publicado no Brasil por força da licença editorial para o Círculo do Livro, pela cortesia da Editora Brasiliense S.A. – São Paulo – SP, 1 989, tradução de Maria da Glória Novak, com 343 páginas.
(**) MsC em educação, administrador de empresas, especialista em gestão de pessoas e psicologia transpessoal. Professor universitário, pesquisador, conferencista e consultor em educação e qualidade de vida no trabalho. Autor de livros, artigos e resenhas sobre o tema.

Obs.: Meu avô Antonio da Costa que era negro, lindo, malandro e boêmio ( não foi por acaso que ele foi pai de mais de 30 filhos em dois casamentos) repassou-me uma grande sabedoria neste sentido. Ele sempre dizia: ..."Se todo o mundo metesse e gozasse à vontade - inclusive os padres e as freiras - referência que ele fazia pois seus filhos eram educados em colégios religiosos, pois eram os que tinham - o mundo seria uma maravilha." Sabiamente, ele reduziu em duas linhas a filosofia para a qual Reich gastou dezenas de milhares. Meu avô era um gênio. E eu, que herdei o nome dele, sendo o Antonio da Costa Neto ...