terça-feira, 30 de agosto de 2011

PARA SEMPRE, MERCEDES!...



En el día de la fecha, en la ciudad de Bs As, Argentina, tenemos que informarle que la señora Mercedes Sosa, la más grande Artista de la Música Popular Latinoamericana, nos ha dejado.
Haydé Mercedes Sosa, nació el día 9 de Julio de 1935 en la ciudad de San Miguel de Tucumán. Con 74 años de edad y una trayectoria de 60 años, Ella transitó diversos países del mundo, compartió escenarios con innumerables y prestigiosos artistas, y dejó además, un enorme legado de grabaciones discográficas.
Su voz llevó siempre un profundo mensaje de compromiso social a través de la música de raíz folklórica, sin prejuicios de sumar otras vertientes y expresiones de calidad musical.
Su talento indiscutible, su honestidad y sus profundas convicciones dejan una enorme herencia para las generaciones futuras. Admirada y respetada en todo el mundo, Mercedes se constituye como un símbolo de nuestro acervo cultural que nos representará por siempre y para siempre.
Quizás, las palabras de su entrañable amiga, Teresa Parodi, resuman el sentimiento de muchos:
“…Mercedes, salmo en los labios
amorosa madre amada
mujer de América herida
tu canción nos pone alas y hace que la patria toda
menudita y desolada no se muera todavía,
no se muera porque siempre cantarás en nuestras almas…”

Sus restos serán velados en el Salón de los Pasos Perdidos, en el Honorable Congreso de la Nación, Avda. Rivadavia 1864 a partir del mediodía de hoy.

Su Familia, allegados y amigos, agradecen profundamente el acompañamiento y el apoyo expresado en estos días.
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Mercedes Sosa honrou a vida. A morte não a encontrou solitária, sem ter feito o que queria. Não foi indiferente à dor, à injustiça, à guerra nem à mentira. Nascida na Argentina, tornou-se cidadã da América Latina e do mundo. Militante comunista, foi obrigada a deixar seu país na década de 70, por uma das tantas ditaduras militares que infestaram nosso continente. Como costumava dizer, trazia o povo em sua voz.
Mercedes Sosa honrou a vida e a luta pela verdade. E a vida, como ela cantou, não é permanecer nem perdurar. Merecer a vida não é calar nem consentir com tantas injustiças repetidas. Honrar a vida é uma virtude, é dignidade, é a atitude de identidade mais definida. Merecer a vida é colocar-se de pé, para além do mal e das quedas. É dar boas vindas, sempre à verdade e à liberdade. A voz de Mercedes Sosa denunciou as maneiras de não ser, as consciências adormecidas e as vidas não vividas.
Merdedes Sosa honrou a vida e cantou seu povo. Cantou a unidade latinoamericana. Trazia a pele da América em sua pele. Carregava em seu coração todas as vozes, todas as mãos, todos os irmãos. Generosa e altiva, saiu a caminhar pelo sul e sua voz acabou ganhando o mundo. “Eu não escolhi cantar para as pessoas. A vida me escolheu para cantar”, disse em uma recente entrevista para a TV argentina. Ela agradeceu a vida e honrou essa escolha. Foi seu compromisso de toda a vida. E neste momento em que ela se despede do solo em que pisou, sua voz se espalha pelo vento e envolve o povo que ela tanto amava. La Negra viveu o que cantou e cantou o que viveu. Aceitou alegremente a escolha feita pela vida e entregou sua voz a ela. Engrandeceu e alargou a humanidade.


(Marco Aurélio Weissheimer)
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No hay sueño que alcance,
ni voz que se haga fuerte,
ni esperanza que aguante,
no hay un solo proyecto que sirva,
ni un sitio en la tierra
donde ser feliz.
Ni sobrevive el sol
ni brilla mas una estrella,
ni me calma tu amor
ni la sorrisa de mis hijos.
Si aquí cerquita mío
hay niños con hambre
que acarician la muerte.
Sólo hay una manera possible:
pararse de frente a la justicia,
abrir las manos,
ponerse el corazón encima
y salir a la vida
con toda la vida adentro.
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Maria Teresa Difalco
- Baradero -
Provínicia de Buenos Aires
Argentina

O QUE VI DA VIDA

















domingo, 14 de agosto de 2011

A CRIANÇA QUE PRATICA ESPORTE RESPEITA AS REGRAS DO JOGO... CAPITALISTA - Walter Bract





“Educar nesta so
ciedade é tarefa de partido, porque não é possível a um educador permanecer neutro. Ou educa a favor da classe dominante ou contra ela. Ou a favor das classes dominadas ou contra elas. Aquele que se diz neutro, estará apenas a serviço do mais forte, ou seja, da classe dominante. No centro, portanto, da questão pedagógica, situa-se a questão do poder.”
(Moacir Gadotti)


Entre os profissionais da educação física do Brasil, existem diferentes entendimentos do papel da educação física escolar. Poderíamos dizer que um grande grupo pensa e age de acordo com uma visão “biológica”, a partir da qual o seu papel seria o de melhorar a aptidão física dos indivíduos, com o que já estaria, automaticamente, contribuindo para o desenvolvimento social. Uma vez que as pessoas já estariam mais aptas a atuar na sociedade, e, portanto, mais úteis a ela. Outro grupo de profissionais, que, juntamente com o anterior perfazem a maioria, supera de certo modo esta visão, agregando à melhoria da aptidão física, o essencial desenvolvimento psíquico da pessoa.
Esta segunda visão, que denominamos de “biopsicológica” reconhece como papel da educação física não só a melhoria da performance desportiva em si, mas, também o desenvolvimento intelectual e a manutenção do equilíbrio efetivo e emocional; utilizando, para tal, uma abordagem sistêmica.
Diria-se que a educação física atua para além dos domínios cognitivo, afetivo e psicomotor. Nestas duas visões, porém, a análise da relação da educação física com o contexto social é, simplesmente, funcionalista, na medida que a sua função é a de formar física e psiquicamente um cidadão que desempenhe o melhor possível (dentro da atual estrutura social) o papel a ele atribuído na prática social.
Desta forma, são visões a - históricas da dimensão social da educação física, como também circunscrevem-se no âmbito das teorias acríticas da educação, conforme Saviani (1984), por não reconhecerem os condicionantes sociais da educação, e, mais especificamente, da educação física e da sua atividade pedagógica propriamente dita. Entendemos, assim, que não podemos mais permanecer com estas visões parciais e falseadoras da nossa prática social, produzidas, por sua vez, por uma metodologia positivista e fragmentada, como fruto do ultrapassado pensar cartesiano sobre os fatos e fenômenos. E neste sentido, não podemos prescindir de uma análise crítica que possa identificar o papel social que a educação física concretamente cumpre neste especial momento histórico de nossa sociedade.
São muito recentes algumas tentativas neste sentido que foram levadas a efeito. Dentre elas citamos a de Castellani (1983), que analisando os documentos e a legislação relativos à educação física no Brasil desde a década de 30 chegou à conclusão de que esta tem cumprido o papel de reforçar a estereotipação do comportamento masculino e feminino. Tem, igualmente, colaborado para o adestramento físico necessário, tanto à defesa da pátria, quanto à preparação e manutenção da força de trabalho necessária aos interesses da classe dominante.
Cavalcanti (1984) demonstrou o caráter ideológico do discurso que fundamentou, por exemplo, a campanha “Esporte para Todos” no Brasil, na medida em que este menosprezou os fundamentos filosóficos, sociológicos e psicológicos da atividade físico-desportiva e valorizou sobremaneira os aspectos metodológicos, não questionando, desta forma, o significado integral do esporte para a vida em sociedade.
Ferreira (1984)], a partir de uma matriz dual, em que classifica as atitudes e procedimentos do professor de educação física num modelo de reprodução ou numa perspectiva de transformação social, procedeu a uma investigação empírica que demonstrou o caráter reprodutivo das atividades pedagógicas do trabalho com a educação física no ensino fundamental. E para fazer justiça, teríamos ainda que citar as reflexões pioneiras de Lopes (1980) e as análises críticas de Oliveira (1983) e de Medina (1985).
Buscando colaborar no processo de análise crítica pelo qual passa a educação física brasileira, hoje. E o que ocorre intensivamente com a educação de uma maneira geral é que nos propomos a investigar uma outra faceta da educação física escolar, que é a sua possível contribuição no processo de socialização real de crianças e adolescentes.
Muitos pedagogos da educação física/esporte têm realçado a contribuição da atividade física e desportiva na socialização das crianças, contribuição essa, que tem sido utilizada como justificativa da sua inclusão nos currículos escolares. Neste sentido, as colocações indicam que a criança, por meio do esporte, aprende que, entre ela e o mundo existem “os outros”. Que para a vivência social precisamos aprender a obedecer determinadas regras, ter determinado comportamento. Aprendem as crianças também a conviver com vitórias e derrotas, a vencer por meio do esforço pessoal, desenvolvem, pelo esporte, a independência e a confiança em si mesmos, o sentido de responsabilidade, de socialização, de reconhecimento, etc.
Todas estas informações têm, no entanto, em comum o fato de serem informações que identificam um papel positivo-funcionalista para o esporte no processo educativo. Privilegiam, portanto, a sua funcionalidade, sua prática fria, camuflando, desta forma, os aspectos direcionais em si, que neste prisma, seriam, logicamente, os mais importantes. Estas posições não partem de uma análise crítica da relação educação física/esporte e o contexto sócio-econômico-político-cultural em que se objetivam, e, sim, da análise da educação física/esporte enquanto instituições funcionais. Ou seja, como instituições que devem colaborar para o funcionamento e a harmonia da sociedade na qual os indivíduos que as integram se inserem. Quando tais abordagens identificam aspectos negativos, estes são simplesmente colocados como disfunções internas da própria educação física/esporte.
No entanto, ao lado destas informações que considero como positivo-funcionais no resultado do processo de socialização através do esporte, poderíamos encontrar outras que indicam, justamente, no sentido contrário, como por exemplo: pelas regras das competições o esporte imprime no comportamento as normas desejadas da competição e da concorrência. As condições do esporte organizado ou de rendimento são, simultaneamente, as mesmas condições de uma sociedade de estruturação autoritária. Assim, o ensino do esporte nas escolas, enfatiza o respeito incondicional e irrefletido às regras e dá a estas um caráter estático e inquestionável. O que, é lógico, não leva à reflexão ou ao questionamento, mas sim, ao acomodamento. “Forjando um conformista feliz e eficiente.” O aprender as regras significa reconhecer e aceitar passivamente regras pré-fixadas e impostas. Como podemos verificar, sob um enfoque distinto, temos também, valorizações diferentes do produto e do processo da socialização na educação física e no esporte infantis.
Estas diferentes valorizações decorrem de óticas variadas de sociedade ou teorias sociais. As valorizações positivas são respaldadas na teoria estrutural-funcionalista da sociedade a partir da qual os elementos isolados do sistema social, tais como a educação, o esporte, etc. podem ser descritos como funções do sistema. Eles são considerados desde que tenham importância funcional para o sistema macro. Mantendo, portanto, sua estabilidade como unidade de funcionamento. Uma afirmação que tem o respaldo desta teoria é a de que a nova geração é educada dentro de uma sociedade muito competitiva, na qual, o princípio do rendimento se impôs. O jovem desportista é confrontado muito cedo com princípios do rendimento e dele é esperado não só suportar diferenças de rendimento, como também respeita-las.
As análises que criticam a função socializadora que o esporte cumpre, partem de uma teoria da sociedade que poderíamos chamar de “abordagem ou ótica do conflito”. Esta concepção desenvolvida a partir de Marx e Engels acredita que é mais correto ver a sociedade a partir de suas contradições historicamente acumuladas. Portanto, a adoção deste referencial significa não entender as sociedades capitalistas, por exemplo, como sendo harmônicas e funcionais, e, sim, que estas encerram contradições fundamentais, surgidas, principalmente, na exacerbada competição entre as pessoas, o que, em última análise, o esporte vem reforçar. Ao mesmo tempo em que lança uma nuvem de fumaça para que as mesmas não sejam vistas. Enfim, o esporte competitivo e suas práticas alienam politicamente as pessoas, sendo, portanto, exercidos a serviço de perpetuar a exploração fácil entre os homens, a submissão dos dominados aos dominadores. Mas como tudo se veste de lúdico e de festa, faz-se parecer como normal e legítmo aos olhos incautos das classes populares. E, enquanto isto, se constrói a história das sociedades humanas ditas civilizadas.

A partir da ótica do conflito – visão histórico-crítica – o esporte:

1 – Precisa ser entendido no contexto mais amplo das condições objetivas das sociedades capitalistas, ou seja, extremamente competitivas e centradas no produto, no resultado que, de preferência, deverá ser benéfico a qualquer custo, exacerbando, desta forma todo o processo de competição.
2 – Está intimamente relacionado com as diferenças de classes em termos da distribuição do poder, da riqueza, dos direitos individuais e sociais.
3 – Todo esporte competitivo reflete a ideologia burguesa, transcendendo-a para o lúdico, facilitando, principalmente, em termos psicológicos a sua reprodução no cotidiano das pessoas.

Por outro lado, a partir da abordagem estrutural-funcionalista – ou pela ótica do consenso – o esporte é assim encarado:

1 – O esporte competitivo reflete uma série de valores da maior importância para a sociedade, pois se ela é competitiva, pelo esporte, o indivíduo aprende a competir, lutar e ganhar. Desta forma, o recrutamento para o esporte em si, já cumpre a função de integração social.
2 – O esporte funciona nas sociedades industriais, especialmente as do ocidente (capitalistas) como um mecanismo de mobilidade social, pois, em última instância, reflete as suas tradições, carências e necessidades.
3 – É no esporte que se apresentam as melhores condições e oportunidades para a aprendizagem dos papéis sociais que permitem, por sua vez, a dinâmica da própria sociedade.

Cumpre aqui assinalar que a visão estrutural-funcionalista é mais típica dos chamados países do primeiro mundo – desenvolvidos e capitalistas – pois, tal postura, logicamente, colabora e muito com o dominador. Em função do que este está muito pouco interessado – ou nada interessado - em mudar porque isto pode acarretar a perde de privilégios. Nesta perspectiva, trata-se de não mudar o sistema, mas sim, conseguir mudanças, reformulações, aperfeiçoamentos dentro do sistema capitalista, buscando, assim, formas de fazê-lo funcionar melhor.
Assim sendo, o processo de socialização não é neutro. Pois ele acontece dentro de valores específicos. E, inclusive e, especialmente, pelo esporte, os valores que são inculcados são os valores dominantes, facilitando, enormemente, a exploração do homem pelo homem. O que nos lembram Marx e Engels (1984) em “A ideologia alemã”, que são sempre os valores que interessam às classes dominantes. Desta forma, o que a socialização desportiva reproduz, são, em especial e principalmente, as desigualdades sociais, isto é, a própria dominação se processando, aparentemente de forma lúdica e natural, por meio da prática do esporte.
Desta forma, podemos dizer que a socialização por meio do esporte escolar deve ser considerada uma estratégia de controle social, pela adaptação do praticante (e da torcida, principalmente, pois ela o faz de forma eminentemente passiva) aos valores e normas dominantes que propiciam o funcionamento do próprio esporte, o que é alegado como condição essencial para a funcionalidade e o desenvolvimento da própria sociedade. Um dos papéis que cumpre o esporte – e em especial o escolar – em nosso país é o de reproduzir e reforçar a ideologia capitalista, que, por sua vez, visa a fazer com que os valores, princípios e normas nela inseridos se apresentem como normais e desejáveis. Ou seja, a exploração e a dominação devem ser assumidas e consentidas por todos, exploradores e explorados e tida como forma absolutamente harmônica e natural.
É ainda dentro da “ótica” estrutural-funcionalista que ouvimos com freqüência a afirmação de que o esporte educa. Se indagarmos por que e o que tem de educativo no esporte, obteremos, quase que invariavelmente, a seguinte resposta: “Ora, o esporte educa porque ajuda a criança a conviver com a vitória e a derrota. Ensina a respeitar as regras do jogo (já que somos todos iguais perante a lei, devemos respeita-la, sem discuti-la). Ensina a vencer (no jogo e na vida) através do seu esforço pessoal (às vezes temos que, momentaneamente, nos aliarmos ao outro ou aos outros para atingir nossos objetivos – processo que os pedagogos desportivos chamam, ingenuamente, de cooperação ou companheirismo). Ensina a competir (já que a sociedade é competitiva ao extremo, então isto prepara para a vida). Desenvolve o respeito pela a autoridade, que é o árbitro ou o professor (chama-se isto de disciplina). Precisamos entender que as atitudes, normas e valores que o indivíduo assume através do processo de socialização no esporte, estão relacionados com os sistemas de significados e valores mais amplos, que se estendem para além da situação imediata do esporte.
Nessa medida, não é difícil numa rápida análise da resposta anteriormente mencionada, identificar elementos e valores da ideologia burguesa. No esporte, desenvolvem-se idéias ou valores que levam ao conformismo. Como é, por exemplo, o respeito incondicional às regras. Porque o comportamento não-conformado no esporte não leva a modificações no esporte, mas sim, à exclusão dele. No esporte coloca-se em destaque a idéia de que todos têm a oportunidade de vencer (vencer no esporte, e, igualmente, vencer na vida) através do esforço pessoal e individual, bastando, para isso, que se esforce e tenha talento. O que, em última análise justifica e explica as diferenças sociais, negando toda e qualquer determinação política, econômica e social. Esta crença de que no esporte desaparecem as desigualdades, colabora, também, para um aparente abrandamento das contradições e dos conflitos sociais.
Assim, como vimos, realmente o esporte educa. Mas educação aqui significa levar o indivíduo a internalizar valores e normas de comportamento, que lhe possibilitarão a se adaptar à sociedade capitalista. Em suma, é uma educação que leva ao acomodamento e, não, ao questionamento. Uma educação que ofusca, ou lança uma cortina de fumaça sobre as contradições da sociedade capitalista. Uma educação a serviço da classe dominante. Uma educação que não leva à formação do indivíduo consciente, crítico, sensível à realidade que o envolve.
Se analisarmos as aulas de educação física onde o esporte escolar é iniciado e desenvolvido, veremos que a idéia da aprendizagem das técnicas predomina. Isto porque para a competição, na verdade, é isto que conta. Permeia, portanto, a busca do desenvolvimento atlético, que é condição para a possibilidade de vitória nas competições. Com a exacerbação do espírito competitivo do esporte escolar, as técnicas esportivas e o próprio esporte foram elevados à condição de finalidade, ou seja, o esporte enquanto fim em si mesmo. Neste momento em que a idéia de competição (concorrência) toma conta do esporte escolar, o que é fomentado pela busca da vitória, às vezes a qualquer custo (lucro), e do que representa na nossa sociedade (vencer na vida). Já não existe mais espaço para a discussão sobre as normas do esporte, para a criação no esporte (adaptar o esporte à realidade social e cultural do grupo que faz esporte). Já não existe espaço para a preocupação com o desenvolvimento de valores relacionados com o coletivismo ou como ações que visem propriamente o bem-comum, priorizando, logicamente, o coletivo ao individual.
Já não existe espaço para a discussão de estratégias que permitam a participação de todos os alunos com as mesmas oportunidades nas aulas, porque o professor tem que preocupar-se unicamente com a melhoria e o aperfeiçoamento da técnica – elevando-a à categoria de fim. Preocupa-se com a imposição das regras internacionais que permitirão as condições objetivas de comparação de performances. Preocupa-se em desenvolver nos alunos e suas equipes o espírito de competição, como exigência fundamental para obter vitórias, em síntese, vencer na vida.
Como mencionamos anteriormente, as características que o esporte escolar apresenta não são geradas no seio do próprio esporte, e, sim, são os reflexos mediatizados da estrutura social em que ele se realiza, ou seja, da sociedade capitalista. Neste momento, cabe ou surge a grande indagação: em que medida e em até que ponto poderemos chegar a um quadro diferente? Enfim, a educação física/esporte escolar pode cumprir um papel diferente do de inculcar a ideologia burguesa?
Se assumíssemos aqui e agora a postura das teorias crítico-reprodutivas, afirmaríamos que o esporte nesta sociedade, invariavelmente contribuirá para a reprodução da estrutura social que temos. Embora reconhecendo as ferrenhas determinações sociais que sobre a educação física/esporte escolar recaem, acreditamos que, no seu interior, a contradição não foi suprimida, ela persiste. Ainda que os espaços a serem ocupados no sentido de uma ação transformadora sejam restritos, admitimos a sua existência. Neste sentido, ou seja, o de identificação destes espaços, cumpre inicialmente incluir a educação física/esporte escolar no contexto mais amplo da educação em si e enquanto prática social devidamente sistematizada. E, enquanto parte desta, analisar as possibilidades de contribuição para o processo de mudança social, condição básica para se concretizar uma sociedade melhor, justa e livre.
Na busca do esclarecimento do que a educação pode contribuir para transformar a sociedade, depara-se com duas posições antagônicas. De um lado a postura teórica que identifica a educação como redentora da sociedade (teorias crítico-reprodutivas). O que cabe, no entender de Saviani (1 984) não, a polarização entre as duas posturas, mas sim, a tentativa da superação por meio de uma teoria crítica da educação que possa identificar em que e como pode contribuir especificamente a educação no processo contínuo de transformações sociais.
Esta possível contribuição prende-se ao fato de que a escola não é um instrumento homogêneo da classe dominante, pois nela refletem-se as contradições existentes na sociedade. Reflete-se, portanto, o antagonismos entre os interesses burgueses e os proletários. Neste sentido, na escola existe um espaço, embora pequeno, o que Gadotti
(1 981) chama de guerrilha ideológica travada na escola. Cumpre, então, para desenvolver uma pedagogia desportiva com alguma força transformadora, tomar como ponto de partida um compromisso político com a classe oprimida e dominada que é a classe trabalhadora. Portanto, uma pedagogia que não se comprometa com os interesses burgueses, mas com os atributos e interesses revolucionários das classes populares.
Neste sentido, a tarefa que nos impõe parece ser a de desenvolver uma pedagogia desportiva que possibilite aos indivíduos pertencentes à classe dominada, aos oprimidos, o acesso a uma cultura desportiva desmistificada. Permitir ou possibilitar por meio desta pedagogia que estes indivíduos possam analisar criticamente o fenômeno esportivo, situá-lo e relacioná-lo com todo o contexto sócio-econômico-político e cultural.
Embora não seja o objetivo deste ensaio desenvolver uma proposta pedagógica numa perspectiva de classe, e, que tenha como fundamento o referido compromisso político com a classe dominada. Ousadamente, coloco algumas reflexões que apontam neste sentido:
Os professores de educação física, na ação, devem, efetivamente incorporar novas posturas frente às questões básicas aqui levantadas, tendo, como princípio, a análise crítica e o comprometimento ideológico do que fazem, do como fazem e dos valores que, consciente ou inconscientemente inculcam nos seus alunos dentro das normas e dos princípios técnicos do esporte que fazem os alunos aprender.
Precisam superar a visão positivista de que o movimento é, predominantemente, um comportamento motor. Entender que o movimento é humano e o homem é, fundamentalmente, um ser social. A motricidade não é mais biológica, e, sim, histórica e socialmente contextualizada. Desta forma, o movimento tem repercussão sobre todas as dimensões do ser humano. A conseqüência disso para a ação pedagógica é que nas aulas de educação física devemos objetivar muito mais do que a aptidão, a performance, a destreza, a capacidade motora, etc. Mas entender que o movimento que a pessoa realiza num jogo, tem repercussões diretas sobre todas as demais dimensões do seu comportamento. E mais ainda, que esta atividade veicula e faz a pessoa introjetar determinados valores e normas de comportamento, que irão, gradualmente, causar e responder por condicionantes e aspectos gerais ulteriores na sua vida.
Deverão entender que aquela idéia de que atuando sobre o físico já estamos automática e magicamente atuando sobre as demais dimensões precisa ser superada com a máxima urgência para que as questões aqui tratadas possam ser levadas efetivamente em consideração na ação pedagógica, por meio de esclarecimento de estratégias que objetivem conscientemente o desenvolvimento num determinado sentido, destes outros aspectos e dimensões dos educandos. O que atualmente acontece é que, embora os objetivos da educação física incorporem a dimensão psicossocial, as estratégias e atividades são totalmente norteadas pelos objetivos relacionados a resultados, à aptidão física, destrezas desportivas, aprendizagens motoras, esperando-se que estas, tenham repercussão sobre todas as outras demais dimensões que envolvem o aspecto educativo em seu teor mais amplo.
Precisam superar a visão de infância que enfatiza o processo de desenvolvimento da criança em si, e não, de uma criança situada social e historicamente. Fala-se da natureza da criança, e, isto é comprometido ideologicamente, na medida em que não se considera as diferenças produzidas pelas condições sociais, culturais, e, principalmente, econômicas destas crianças. Na sociedade capitalista, definida pelas relações que se estabelecem entre classes sociais antagônicas, a origem e o completo histórico familiar da criança estabelecem as condições gerais da sua infância, o que interfere diretamente nos seus processos de aprender, de viver e de estabelecer relações com o mundo no qual se insere.
Os professores de educação física devem entender que o que determinará o uso que indivíduo fará do movimento (na forma de esporte, de jogo, de trabalho manual ou artístico, de lazer, de defesa, de produção, de ataque aos outros e à sociedade), não é determinado, em última análise, pela condição física, habilidade desportiva, flexibilidade, etc. e, sim, pelos valores e normas de comportamento introjetados pela condição econômica e pela posição na estrutura de classes da sociedade.
Suplantar, urgentemente a falsa polarização entre diretividade e não-diretividade. Embora as pedagogias não-diretivas tenham contribuído para a denúncia do excessivo autoritarismo com que a educação bancária conduzia o processo educativo. Enquanto o oposto, ou seja, o não-diretivismo pode, quando realizado de forma irresponsável, nos levar a um espontaneísmo estéril que acaba tornando-se igualmente, comprometido com os valores burgueses que sustentam a sociedade capitalista. Ferreira (1 984), que citamos no início deste ensaio, de certa forma, cai nesta “armadilha”, quando coloca que as fontes de informações, normas e sanções, numa perspectiva de transformação devem provir dos interesses, necessidades e motivações do educando. Para tanto, segundo a autora, o educador deve ser o facilitador da conscientização, a partir de “motivações intrínsecas” dos indivíduos. Ora, as crianças não chegam vazias às aulas de educação física, elas já estão incorporadas ao processo de socialização burguesa e se nós quisermos a introjeção de normas e valores que se contrapõem aos burgueses, temos que dar uma direção real ao processo, pois os interesses e necessidades, etc. da criança já estão, de certa maneira “contaminados” pela vivência burguesa, consumista, capitalista, que elas trazem de suas vidas e do meio social em que se inserem. Assim, permitir ou facilitar, simplesmente que elas “desabrochem”, implica na reprodução, e não, na transformação. A postura de que o educador deve apenas facilitar o desenvolvimento das potencialidades da criança, tem como fundamento a idéia – igualmente burguesa – de que a criança possui uma “natureza” que é, fundamentalmente, boa, contextualizada política e economicamente para as suas necessidades reais e que bastaria permitir que isto se manifestasse, o que é muito mais do que ingênuo e determina na parte e no todo o fracasso de qualquer educação que se diz transformadora. Se assumirmos uma posição de classe social para a educação, os interesses e necessidades que devem ser levados em consideração, não só os dos indivíduos, e sim, os valores, objetivos e metas da classe social pela qual se trabalha, o que, de uma maneira geral, os professores de educação física têm feito em favor da burguesia, e, nem sempre, conseguem saber disto.
Um outro equívoco que precisa ser superado, é o que devemos, simplesmente, ignorar a cultura dominante, que, neste entendimento, não serve à classe dominada. Não podemos negar a cultura dominante, e sim, permitir que a classe dominada, em “dominando a cultura dominante” possa, então, construí-la a partir de suas necessidades e interesses. Em termos de educação física significa que não devemos negar o desporto como meio de se educar. Porque, segundo alguns pensadores da área, ele é essencialmente burguês, e existe, portanto, a necessidade de que a classe popular “domine” a cultura esportiva burguesa, mas que lhe seja simultaneamente permitido desmistificar criticamente esta mesma cultura desportiva.
O esporte é burguês, não porque esta é a sua essência, e, sim, por suas múltiplas determinações que lhe fornecem as características para tal. De maneira que, para termos um esporte não-burguês, precisamos, logicamente, atuar sobre suas determinações. E o educador representa o momento de ruptura em relação ao que é determinado socialmente, ao mesmo tempo que define uma conduta para levar o educador uma solidariedade consciente, vale dizer, ao sentido coletivo de sua formação. Procurando desenvolver um esporte em que o princípio do rendimento e da competição discriminatória (dos melhores e dos piores) , do esforço pessoal e individual (às vezes associado) para vencer o adversário, não seja o norteamento deste, desenvolvendo um esporte em que se busque insistentemente o desenvolvimento do coletivismo (ou seja, a priorização do coletivo ao individual, incluindo o “adversário/companheiro”), estaremos, na verdade, descaracterizando o esporte burguês, lançando e criando as bases de um novo esporte, que, por sua vez, somente se consolidará com a criação, também, de uma nova ordem social sem a qual não terá condições de sobreviver. Porque será, fatalmente, submetida à ordem burguesa.
Para que este novo esporte, que leve a uma socialização, é necessário que, os professores de educação física devam superar também a idéia, muito difundida, que nas aulas de educação física, não se deve falar, ou seja, não se deve sentar e discutir com os alunos o que se está fazendo, sob o argumento de que a aula de educação física deve ser “prática” – entenda-se, “adestrante”.
Estas são algumas reflexões sobre o processo da educação física escolar que, espero, contribuam para que possamos desenvolver uma proposta pedagógica que aponte e possa realmente colaborar com a transformação social. Que permita a concretização de uma nova ordem social, esta sim, mais justa, fraterna e livre.
Porém, de acordo como pensamos, acreditamos que a ação transformadora do professor de educação física não deve restringir-se a esta esfera, ou seja, aos muros da escola. A atuação prática deste profissional deve estender-se à sua entidade respectiva, seu sindicato. Não movido, é óbvio, por uma visão corporativista, e, sim, a partir de uma identificação social com a classe trabalhadora. O engajamento com a categoria de profissionais ligados à educação. Neste momento histórico, deve, ao nosso ver, visar a uma ação que permita e que se estabeleça uma política educacional, de que se concretize uma escola em nosso país, de acordo com as necessidades e interesses da classe trabalhadora. A atuação política do professor de educação física deve também alcançar a política partidária, para que, enquanto cidadão comum, assuma o papel de sujeito político da sociedade.
Finalizando, gostaríamos de lembrar as palavras do Professor Flrestan Fernandes, ditas no III Congresso Estadual de Educação, em São Paulo, segundo as quais: “O EDUCADOR QUE SE NEGA NO PLANO IDEOLÓGICO E POLÍTICO, SE NEGA TAMBÉM COMO EDUCADOR”.
­­­­_______________

Walter Bracht, autor deste texto é Doutor pela Universitat Oldenburg (1990). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Espírito Santo, onde coordena o Laboratório de Estudos da Ciência da Motricidade Humana. Foi presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (1991/93 e 1993/95). Tem experiência na área de Educação Física, atuando principalmente nos seguintes temas: educação fisica escolar, formação continuada de professores, educação e epistemologia.

Leituras Complementares Recomendadas:

CAVALCANTI, K. B. Esporte para todos: um discurso ideológico. São Paulo: Ibrasa, 1 984.
COSTA NETO, Antonio da. Paradigmas em educação no novo milênio. Goiânia: Editora Kelps, 2 003.
____________. Escolas & Hospícios – ensaio sobre a educação e a construção da loucura. Goiânia: Ed. Kelps, 2 009.
DEMO, Pedro. Sociologia: uma introdução crítica. São Paulo: Atlas, 1 983.
FERREIRA, Vera Lúcia M. Costa. Prática da educação física no 1° grau: modelo de reprodução ou perspectiva de transformação? São Paulo: Ibrasa, 1 984.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1 983.
____________. Escola, direita...volver!.... Boletim/Suplemento especial da Folha de São Paulo, n° 187, 17/08/80, p. 15.
GADOTTI, Moacir. Educação e poder: introdução à pedagogia do conflito. São Paulo: Cortez,
1 981.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial e seus referenciais políticos e ducativos. Rio de Janeiro: Zahar, 1 967.
MEDINA, João Paulo Subirá. A educação física cuida do corpo e...mente. Campinas: Editora Papirus, 1 983.
SANTIN, Silvino. Educação física: outros caminhos. Porto Alegre: EST, 1 990.
SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Ed. Cortez, 1 987...

IDEIAS DE CANÁRIO - Machado de Assis

Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração:
No princípio do mês passado, - disse ele, - indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador.
Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas. A loja era escura, atualhada das coisas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas. Tudo naquela meia desordem própia do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante.
Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson. Um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas.
Lá para dentro, havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão. Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada na porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol.
Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro e murmurei baixinho palavras de azedume.
- Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela? E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:
- Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...
- Como? Interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?
- Não sei o que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.
- Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.
- Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.
Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado. A rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito...
- Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?
- Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que coisa é o mundo?
- O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira. Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.
- As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.
- Quero só o canário. Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.
Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.
Não tendo mais família que dois criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.
Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, - ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.
- O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las.
Nos últimos dias, não saía de casa, não respondiaa cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.
Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto...
- Mas não o procuraram?
- Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.
Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:
- Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu? Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doi-do; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular...
- Que jardim? Que repuxo?
- O mundo, meu querido.
- Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor.
O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior...
- De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas.
- Mas há mesmo lojas de belchior?

sábado, 13 de agosto de 2011

O HOMEM DA CABEÇA DE PAPELÃO - João do Rio






No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral.

Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira.

Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria.

Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo.

Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

— Mas não quero ser nada disso.

— Então quer ser vagabundo?

— Quero trabalhar.

— Vem dar na mesma coisa.

Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

— Eu não acho.

— É pior. É um tipo sem bom senso.

É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar.

Atendendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes.

Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

— Só caso se o senhor tomar juízo.

— Mas que chama você juízo?—

Ser como os mais.
Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada?— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar.— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante.

Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era.

Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava.

Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão?

— Assim...

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la.Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a?

— Não.

— Então, desarranjo grande?O homem recuou.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— V. Ex. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

— Qual! V.Ex. terá a primeira cabeça. Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.


__________
João do Rio foi o pseudônimo mais constante de João Paulo Emílio Coelho Barreto, escritor e jornalista carioca, que também usou como disfarce os nomes de Godofredo de Alencar, José Antônio José, Joe, Claude, etc., nada ou quase nada escrevendo e publicando sob o seu próprio nome. Foi redator de jornais importantes, como "O País" e "Gazeta de Notícias", fundando depois um diário que dirigiu até o dia de sua morte, "A Pátria". Contista romancista, autor teatral (condição em que exerceu a presidência da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, tradutor de Oscar Wilde, foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito na vaga de Guimarães Passos). Embora vivesse numa época de duro preconceito, era homossexual assumidíssimo, um anarquista político de verdadeira extensão e sentido. Um homem extremamente inteligente, justo, bem-humorado, um personagem da vida real que deixou contribuições maravilhosas para a vida, a educação, a arte, a literatura. Um grande líder. Um ícone invejável da cultura brasileira. Entre outros livros deixou "Dentro da Noite", "A Mulher e os Espelhos", "Crônicas e Frases de Godofredo de Alencar", "A Alma Encantadora das Ruas", "Vida Vertiginosa", "Os Dias Passam", "As religiões no Rio" e "Rosário da Ilusão", que contém como primeiro conto a admirável sátira "O homem da cabeça de papelão". Nascido no Rio de Janeiro a 05 de agosto de 1881, faleceu repentinamente na mesma cidade a 23 de junho de 1921.


(O texto acima foi extraído do livro "Antologia de Humorismo e Sátira", organizada por R. Magalhães Júnior, Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 196).


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A M O R A L I S T A - Dinah Silveira de Queiróz



Se me falam em virtude, em moralidade ou imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se relacione com o bem e o mal, eu vejo Mamãe em minha idéia. Mamãe — não. O pescoço de Mamãe, a sua garganta branca e tremente, quando gozava a sua risadinha como quem bebe café no pires. Essas risadas ela dava principalmente à noite, quando — só nós três em casa — vinha jantar como se fosse a um baile, com seus vestidos alegres, frouxos, decotados, tão perfumada que os objetos a seu redor criavam uma pequena atmosfera própria, eram mais leves e delicados.

Ela não se pintava nunca, mas não sei como fazia para ficar com aquela lisura de louça lavada. Nela, até a transpiração era como vidraça molhada: escorregadia, mas não suja. Diante daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada topografia, onde eu explorava furiosamente, e, em gozo físico, pequenos subterrâneos nos poros escuros e profundos, ou vulcõezinhos que estalavam entre as unhas, para meu prazer. A risada de Mamãe era um "muito obrigada" a meu Pai, que a adulava como se dela dependesse. Porém, ele mascarava essa adulação brincando e a tratando eternamente de menina. Havia muito tempo uma espírita dissera a Mamãe algo que decerto provocou sua primeira e especial risadinha:

— Procure impressionar o próximo. A senhora tem um poder extraordinário sobre os outros, mas não sabe. Deve aconselhar... Porque... se impõe, logo à primeira vista. Aconselhe. Seus conselhos não falharão nunca. Eles vêm da sua própria mediunidade...

Mamãe repetiu aquilo umas quatro ou cinco vezes, entre amigas,e a coisa pegou em Laterra. Se alguém ia fazer um negócio, lá aparecia em casa para tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que era loura e pequenina, parecia que ficava maior, toda dura, de cabecinha levantada e dedo gordinho, em riste. Consultavam Mamãe a respeito de política, dos casamentos. Como tudo que dizia era sensato, dava certo, começaram a mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma vez, certa senhora rica lhe trouxe o filho, que era um beberrão incorrigível. Lembro-me de que Mamãe disse coisas belíssimas, a respeito da realidade do Demônio, do lado da Besta, e do lado do Anjo. E não apenas ela explicou a miséria em que o moço afundava, mas o castigo também com palavras tremendas. Seu dedinho gordo se levantava, ameaçador, e toda ela tremia de justa cólera, porém sua voz não subia do tom natural. O moço e a senhora choravam juntos.

Papai ficou encantado com o prestígio de que, como marido, desfrutava. Brigas entre patrão e empregado, entre marido e mulher, entre pais e filhos vinham dar em nossa casa. Mamãe ouvia as partes, aconselhava, moralizava. E Papai, no pequeno negócio, sentia afluir a confiança que se espraiava até seus domínios. Foi nessa ocasião que Laterra ficou sem padre, porque o vigário morrera e o bispo não mandara substituto. Os habitantes iam casar e batizar os filhos em Santo Antônio. Mas, para suas novenas e seus terços, contavam sempre com minha Mãe. De repente, todos ficaram mais religiosos. Ela ia para a reza da noite de véu de renda, tão cheirosa e lisinha de pele, tão pura de rosto, que todos diziam que parecia e era, mesmo, uma verdadeira santa. Mentira: uma santa não daria aquelas risadinhas, uma santa não se divertia, assim.

O divertimento é uma espécie de injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe só ria e se divertia quando estávamos sós.Nessa época, até um caipira perguntou na feira de Laterra:

— Diz que aqui tem uma padra. Onde é que ela mora? Contaram a Mamãe. Ela não riu:

— Eu não gosto disso.

— E ajuntou: Nunca fui uma fanática, uma louca. Sou, justamente, a pessoa equilibrada, que quer ajudar ao próximo. Se continuarem com essas histórias, eu nunca mais puxo o terço. Mas, nessa noite, eu vi sua garganta tremer, deliciada:— Já estão me chamando de "padra"... Imagine!

Ela havia achado sua vocação. E continuou a aconselhar, a falar bonito, a consolar os que perdiam pessoas queridas. Uma vez, no aniversário de um compadre, Mamãe disse palavras tão belas a respeito da velhice, do tempo que vai fugindo, do bem que se deve fazer antes que caia a noite, que o compadre pediu:

— Por que a senhora não faz, aos domingos, uma prosa desse jeito? Estamos sem vigário, e essa mocidade precisa de bons conselhos...

Todos acharam ótima a idéia. Fundou-se uma sociedade: "Círculo dos Pais de Laterra", que tinha suas reuniões na sala da Prefeitura. Vinha gente de longe, para ouvir Mamãe falar. Diziam todos que ela fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas palavras confortava quem estivesse sofrendo. Várias pessoas foram por ela convertidas. Penso que meu Pai acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu não podia pensar que minha Mãe fosse um ser predestinado, vindo ao mundo só para fazer o bem. Via tão claramente o seu modo de representar, que até sentia vergonha. E ao mesmo tempo me perguntava:

— Que significam estes escrúpulos? Ela não une casais que se separam, ela não consola as viúvas, ela não corrige até os aparentemente incorrigíveis? Um dia, Mamãe disse ao meu Pai, na hora do almoço:

— Hoje me trouxeram um caso difícil... Um rapaz viciado. Você vai empregá-lo. Seja tudo pelo amor de Deus. Ele me veio pedir auxílio... e eu tenho que ajudar. O pobre chorou tanto, implorou... contando a sua miséria. É um desgraçado! Um sonho de glória a embalou:

— Sabe que os médicos de Santo Antônio não deram nenhum jeito? Quero que você me ajude. Acho que ele deve trabalhar... aqui. Não é sacrifício para você, porque ele diz que quer trabalhar para nós, já que dinheiro eu não aceito mesmo, porque só faço caridade! O novo empregado parecia uma moça bonita. Era corado, tinha uns olhos pretos, pestanudos, andava sem fazer barulho. Sabia versos de cor, e às vezes os recitava baixinho, limpando o balcão.

Quando o souberam empregado de meu Pai — foram avisá-lo:— Isso não é gente para trabalhar em casa de respeito!— Ela quis — respondeu meu Pai. — Ela sempre sabe o que faz!

O novo empregado começou o serviço com convicção, mas tinha crises de angústia. Em certas noites não vinha jantar conosco, como ficara combinado. E aparecia mais tarde, os olhos vermelhos. Muitas vezes, Mamãe se trancava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era de repreensão. Ela o censurava, também, na frente de meu Pai, e de mim mesma, porém sorrindo de bondade:

— Tire a mão da cintura. Você já parece uma moça, e assim, então...

Mas sabia dizer a palavra que ele desejaria, decerto, ouvir:

— Não há ninguém melhor do que você, nesta terra! Por que é que tem medo dos outros? Erga a cabeça... Vamos! Animado, meu Pai garantia:— Em minha casa ninguém tem coragem de desfeitear você. Quero ver só isso! Não tinha mesmo. Até os moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios e fugiam, mal meu Pai surgisse à porta.E o moço passou muito tempo sem falhar nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe.

Pintou-lhe um leque e fez um vaso em forma de cisne, com papéis velhos molhados, e uma mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia de modas, como ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos. À hora da reza, ele, que era tão humilhado, de olhar batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na mão. Se chegavam visitas, quando estava conosco, ele não se retirava depressa como fazia antes. E ficava num canto, olhando tranqüilo, com simpatia. Pouco a pouco eu assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele ficara menos afeminado. Seus gestos já eram confiantes, suas atitudes menos ridículas.

Mamãe, que policiava muito seu modo de conversar, já se esquecia de que ele era um estranho. E ria muito à vontade, suas gostosas e trêmulas risadinhas. Parece que não o doutrinava, não era preciso mais. E ele deu de segui-la fielmente, nas horas em que não estava no balcão. Ajudava-a em casa, acompanhava-a nas compras. Em Laterra, soube depois, certas moças que por namoradeiras tinham raiva da Mamãe, já diziam, escondidas atrás da janela, vendo-a passar:

— Você não acha que ela consertou... demais? Laterra tinha orgulho de Mamãe, a pessoa mais importante da cidade. Muitos sentiam quase sofrimento, por aquela afeição que pendia para o lado cômico. Viam-na passar depressa, o andar firme, um tanto duro, e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao lado levando sua sombrinha, aberta com unção, como se fora um pálio. Um franco mal-estar dominava a cidade. Até que num domingo, quando Mamãe falou sobre a felicidade conjugal, sobre os deveres do casamento, algumas cabeças se voltaram quase imperceptivelmente para o rapaz, mas ainda assim eu notei a malícia. E qualquer absurdo sentimento arrasou meu coração em expectativa.

Mamãe foi a última a notar a paixão que despertara:

— Vejam, eu só procurei levantar seu moral... A própria mãe o considerava um perdido — chegou a querer que morresse! Eu falo — porque todos sabem — mas ele hoje é um moço de bem!

Papai foi ficando triste. Um dia, desabafou:

— Acho melhor que ele vá embora. Parece que o que você queria, que ele mostrasse que poderia ser decente e trabalhador, como qualquer um, afinal conseguiu! Vamos agradecer a Deus e mandá-lo para casa. Você é extraordinária!

— Mas — disse Mamãe admirada. — Você não vê que é preciso mais tempo... para que se esqueçam dele? Mandar esse rapaz de volta, agora, até é um pecado! Um pecado que eu não quero em minha consciência. Houve uma noite em que o moço contou ao jantar a história de um caipira, e Mamãe ria como nunca, levantando a cabeça pequenina, mostrando a sua nudez mais perturbadora —seu pescoço — naquele gorjeio trêmulo.

Vi-o ao empregado, ficar vermelho e de olhos brilhantes, para aquele esplendor branco. Papai não riu. Eu me sentia feliz e assustada. Três dias depois o moço adoeceu de gripe. Numa visita que Mamãe lhe fez, ele disse qualquer coisa que eu jamais saberei. Ouvimos pela primeira vez a voz de Mamãe vibrar alto, furiosa, desencantada. Uma semana depois ele estava restabelecido, voltava ao trabalho. Ela disse a meu Pai:

— Você tem razão. É melhor que ele volte para casa.

À hora do jantar, Mamãe ordenou à criada:

— Só nós três jantamos em casa! Ponha três pratos...

No dia seguinte, à hora da reza, o moço chegou assustado, mas foi abrindo caminho, tomou seu costumeiro lugar junto de Mamãe:

— Saia!... — disse ela baixo, antes de começar a reza. Ele ouviu — e saiu, sem nem ao menos suplicar com os olhos. Todas as cabeças o seguiram lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar discreto de mocinha de colégio, desembocar pela noite.

— Padre Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome...Desta vez as vozes que a acompanhavam eram mais firmes do que nos últimos dias. Ele não voltou para a sua cidade, onde era a caçoada geral. Naquela mesma noite, quando saía de Laterra, um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore. Homem de coragem, pensou que fosse algum assaltante. Descobriu o moço. Fomos chamados. Eu também o vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o mais ridículo do que trágico, frágil e pendente como um judas de cara de pano roxo. Logo uma multidão enorme cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me convenci de que Laterra toda respirava aliviada. Era a prova! Sua senhora não transigira, sua moralista não falhara. Uma onda de desafogo espraiou-se pela cidade.

Em casa não falamos no assunto, por muito tempo. Porém Mamãe, perfeita e perfumada como sempre, durante meses deixou de dar suas risadinhas, embora continuasse agora, sem grande convicção — eu o sabia — a dar os seus conselhos. Todavia punha, mesmo no jantar, vestidos escuros, cerrados no pescoço.
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Dinah Silveira de Queiroz nasceu em 09/11/1910 na capital paulista. Publicou seu primeiro conto em 1937, e dois anos depois lançou seu primeiro livro, "Floradas na Serra", obtendo grande sucesso e sendo premiada pela Academia Paulista de Letras. Em 1954 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Desempenhou as funções de adido cultural do Brasil junto à nossa Embaixada em Madrid. É a autora de "A Sereia Verde", "Margarida La Roque", "Aventuras do Homem Vegetal", "A Muralha", "O Oitavo Dia", "As Noites do Morro do Encanto", dentre outros. Como cronista, assinou no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, a seção "Café da Manhã", e no Jornal do Commércio, da mesma cidade, a seção "Jornalzinho Pobre". Colaborou em programas na Rádio Ministério da Educação e na Rádio Nacional.

(Texto publicado no livro "Histórias do Amor Maldito", Editora Record — Rio de Janeiro, 1967, seleção de Gasparino Damata. Foi considerado e consta do livro "Cem melhores contos brasileiros do século", seleção de Ítalo Moriconi, em edição da Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 180).

EROS E PSIQUE - de Fernando Pessoa - na voz de Maria Bethânia



Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.