segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

FOI-SE MAIS UM ANO...















Foi-se mais um ano...
E com ele, uma quantidade incalculável de amores.
Cores, idades, alguns amigos,
não sei quantos neurônios.

Memórias, remorsos, desvarios, cabelos, ilusões, alegrias, tristezas.
Várias certezas
(se não me engano, treze).
Algumas verdades indiscutíveis.
Umas calças que não fecham mais.
E aquele vestido que eu gostava tanto.
Foi-se o meu gosto por espiar vitrines e achar graça.
Foi-se quase todo meu vidro de perfume.
Foi-se meu costume de imaginar asneiras à noite e junto

com ele a vontade que eu tinha de fazer sexo.
Foi-se meu forte instinto de acreditar no que me dizem
e de pensar que são realmente verdades
o que as pessoas que pondero, boas, me ensinam.
Ledo engano...
Foi-se meu açucareiro de porcelana. Que pena.
Foi-se o tempo em que uma simples farra não significava,
necessariamente, uma condenação
sumária a três dias em perfeito estado de coma.
Foi-se a poupança. O troquinho da gaveta.
Foi-se aquele antigo projeto
e com ele os sonhos de ser, de alguma forma, útil.
Foram-se exatamente, nove vírgula seis por cento
de todas as minhas esperanças, e, bem mais que isto,
dosmeus desejos de fazer coisas,
de gargalhar, de fazer felicidades.
Será que você não se cansa tempo?
Não pensa em tirar férias, dar uma pausa,
respirar um pouco?
Não lhe agrada a ideia de mudar
o andamento, diminuir o ritmo?
Em vez de tic-tac, inventar uma palavra mais comprida
para compasso, mantra, ícone, diagrama?
Já vi passar bem mais da metade
da minha vida que, me parece,
começou ontem. Por isso, olho pra
trás e não vejo quase nada.
Me diz sinceramente: para que tanta pressa?
Anda difícil acompanhar seus passos ultimamente.
Ainda mais agora que meus gestos são lentos,
minhas mãos mais pesadas, minha vista, turva e,
quase sempre, sinto dores
depois de qualquer caminhada.
Mas já é dezembro.
Foi-se mais um ano.
E com ele, quem sabe, mais uma doce fatia da vida.
Quem sabe, a última?...


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(Texto de Adriana Falcão, in O doido da garrafa)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

UMA CERTA ZULMIRA BATISTA

Doce como ambrosia molinha e açucarada,
com aquela fartura deliciosa de queijo e ovos.
Pra comer de olhos fechados, escondido na dispensa,
lambendo os dedos e esboçando um sorrisinho bem safado
para agradecer aquela coisa tão gostosa
que nem tem explicação.
Ardida como pimenta, vermelha, quente, brava mesmo.
Fazendo a sua voz delicada e meiga ecoar como um trovão.
Tudo na sua hora.
Se era pra rezar, mãos no peito, suavidade, pureza,
postura de santa, imagem de fé.
Mas também, para ralhar com menino arteiro - que era
como a gente era chamado quando saia dos trilhos - ela
virava uma onça.
Pintada. Selvagem.
E ai de quem, nessas horas atravessasse em sua frente.
Na vida optou pela extrema simplicidade, pelo que é leve e bom.
A luta do dia a dia, suas galinhas, pés de chuchu,
bananeiras, varais de roseiras brancas, estas coisas...
Do fogão de lenha para o ferro a brasa
e dali para a máquina de costura de pedal duro
que nunca parava pelas madrugadas frias e longas,
até ouvir o coaxar dos sapos, o canto dos galos.
Vendo o dia clarear pelas frestas do telhado rude,
feito a anos pelo seu falecido pai, que saudade!
Noites geladas de trabalho árduo aquecidas pelo borralho
que ela, de quando em quando, dava vida com o seu sopro vindo da alma.
Depois, ela olhava as camas, menino por menino.
Pegava a lamparina acesa para pegar as roupas no arame do quintal.
Pois vinha chuva aí e daquelas bravas, de dar medo
ou pelo menos, vontade de suspirar fundo.
As costuras, as encomendas, o corte de alfaiate: perfeito.
Depois, ela fazia a janta e ia cuidar dos seus afazeres noturnos...
Safra de jabuticabas, vinte e sete pés carregadinhos que só.
- "Este anos vai dar uns bons cobres, vou pagar
a minha conta com seu Zé Dornel..."
E se benzendo, ela cruza para a cozinha.
Descasca e curte a laranja da terra para o doce que ainda
tem que mandar para Goiânia, pois faz dias que Jandira fez
a encomenda...
- "Ih! Já estou atrasada para a reza!..."
E desce a rua prendendo o cabelo, revirando a gola, e,
aborrecida, chega atrasada para as funções.
Volta cansada, bate na cama e dorme como uma pedra...
E passam os anos, muitos.
Zulmira nunca tem tempo para si, para mais nada.
Segue sua vida simples e doce, construindo sua história.
Ela só usou brinco e colar de pérolas
no retrato dos seus cem anos,
pintado pelo pintor famoso de Brasília.
E ainda foi só na pintura bonita e colorida.
E assim, D.Zulmira usou, de mentirinha,
sua primeira e única joia de verdade.
E ela ficou linda!

(Poema do livro Simplesmente azul. Publicado pela Editora Kelps, 2015)