sábado, 15 de maio de 2021

Passagem das Horas (Álvaro de Campos)



 Passagem das Horas (Álvaro de Campos)


Não sei sentir, não sei ser humano,
não sei conviver de dentro da alma triste,
com os Homens, meus irmãos na Terra.
Não sei ser útil, mesmo sentindo ser prático, cotidiano, nítido.
Vi todas as coisas e maravilhei-me de tudo,
mas tudo ou sobrou ou foi pouco, não sei qual, e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos.
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda gente.
Mas para toda gente isso foi normal e instintivo.
Para mim sempre foi a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.
Não sei se sinto demais ou de menos,
porque a vida, de tão interessante que é a todos os momentos,
a vida chega a doer,
a enjoar,
a cortar,
a roçar,
a ranger,
a dar vontade de dar pulos, de ficar no chão,
de sair para fora de todas as casas,
de todas as lógicas,
de todas as sacadas
e ir ser selvagem
entre árvores e esquecimentos.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

O LADRÃO DE BISCOITOS - Original de Valerie Cox - Tradução livre de Antonio da Costa Neto

 




O LADRÃO DE BISCOITOS

Original de Valerie Cox

Tradução livre e adaptação:  Antonio da Costa Neto

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Ela havia chegado, pelo seu tempo, já meio atrasada naquele aeroporto imenso, movimentado cheio das pessoas mais diferentes. Eram barulhos estranhos, música alta e o cheiro misturado das comidas que eram servidas nos bares, lanchonetes e restaurantes que rodeavam aquele ambiente em que estava naquele momento. Corria louca para o angar, procurando o portão do seu vôo, carregando malas, sacolas e demais apetrechos, já com o coração saindo pela boca. É quando vem do auto-falante a notícia de que o seu avião estaria atrasado, talvez por hora, talvez por mais.

Era uma notícia boa e ruim ao mesmo tempo. E como não restava nada a fazer, respirou fundo, examinou seu relógio de pulso, dourado, encantador e que herdara de sua avó materna. E teve até, num lampejo lembranças dela, brotando em seus lábios um leve sorriso de saudade. Olhou em sua  volta e deparou com convidativos bancos de madeira onde poderia, finalmente, sentar-se, aguardar a sua hora, ler o jornal, ligar para as pessoas, pensar na vida, enfim. Aproximou-se então de um deles e ali depositou com cuidado suas bolsas, valises, pacotes, encomendas, aliviando seu corpo do peso e da pressa que eram, afinal, parceiros de toda uma vida,  em que, conforme dizia, desancava carregando pedras.

Foi aí que se lembrou que estava com um pouco de fome e que seria bom se divertir com o gostoso troc-troc e a crocância nos dentes daquele biscoitinho de polvilho que tanto gostava e que, aliás, traria mais lembranças de sua saudosa avó que há tempos, havia partido. Seria maravilhoso repensar tudo, visitar o passado e degustando aquele biscoito que fazia, sim, parte da sua infância, dos bons momentos da sua história. Assim, foi até ao quiosque mais próximo, comprou um belo e transparente pacote dos seus preferidos, com gostinho de sal e aquela pimenta suave que encantava com o sabor e o revestir das lembranças. Relembrando seu passado. Matando saudades.

Estava ali sentada, perdida em seus pensamentos, quando chega um simpático e bem vestido senhor. Os dois se olham, trocam cumprimentos e meia dúzia de palavras sobre vôos, horários, partidas. Ele pede licença e senta-se ao seu lado e os dois começam a devagar, por  instantes, cada um em suas reminiscências.  Quando ele, inesperadamente, de forma lenta  e educada, enfia a mão no pacote de biscoitos que estava no banco entre os dois e saboreia com um ar de alegria o biscoito estalante. Ela, vendo e ouvindo aquilo, achou estranho, mas não disse nada. Pegou também um biscoito, comeu, ainda pensativa no ato, que embora simples, não esperava daquela pessoa. Mas, tudo bem...

Eis que o homem, mostrando gostar da iguaria, pegou educadamente mais um biscoito e começou a comer. Aí sim, ela achou mais estranho, franziu a testa e se apressou em apanhar o terceiro biscoito, sempre surpresa com atitude impensada e até meio desrespeitosa daquele senhor com aparência doce, educada, e,  a princípio, muito especial. Continuaram, como que, naturalmente aquela façanha gastronômica. Na medida em que o homem pegava um biscoito, ela pegava outro. E até dava um sorrisinho desconfiado para o homem, no que era correspondida e cada vez entendia menos. Assim, foi-se o tempo e perdida nos seus pensamentos, nem percebeu que agora já era chamada para o seu vôo que sairia quase que de imediato.

Ao recolher seus pertences, viu que sobrava no pacote um último biscoito e tratou de comê-lo rapidamente, pois, ao menos, teria aquele direito. Retirou o biscoito, amassou o saco de plástico transparente, jogou-o no lixo e saiu apressada para pegar o seu acento no avião sob pena de perder aquele vôo já tão esperado. Fez questão de nem se despedir do seu sócio indesejado de sua iguaria - ao menos isso. Enquanto buscava a aeronave pensava no quanto as pessoas são estranhas e folgadas. Faltava, de fato, educação e costumes, ainda mais para alguém tão sóbrio e que demonstrava aquela sensatez toda.

Ao abrir o  porta-malas superior do avião que já se movimentava no pátio pronto para alçar  vôo e que ela ia colocar a sua sacola no alto, eis o susto: - Viu o seu pacote de biscoitos ali inteirinho, intacto, intocado. Percebeu, então que não era o homem, mas ela o ser sem educação, invasivo, sem respeito ou cultura que invadira, sem a permissão ou consentimento o território, a privacidade alheia, ainda, comendo o  último biscoito e jogando, atrevidamente, o pacote que não era dela no lixo, saindo dali, duramente, sem se despedir. Se arrependia profundamente de tudo e daria tudo para poder voltar onde estava o homem para desfazer, dentro do possível o pior de todos os enganos de sua vida.

Repensou tudo naquele momento e um gelo inexplicável subiu-lhe pela coluna. E ela cheia de vergonha e do desejo, agora impossível, de abraçar aquele homem, oferecer-lhe o pacote inteiro e pedir-lhe milhões de desculpas. Mas era tarde. O avião já estava no ar e ela não tinha e não teria nunca mais aquela pessoa ao alcance dos olhos. E tudo  era desesperador, tendo que se acostumar com a realidade do caminho sem volta e, de repente, nada mais poder fazer como em muitos desafios da vida.

Ficou com tudo isso a lição para o não julgamento de nada, nem de ninguém. Que, por mais que nos surpreenda, conscientemente, ou não, o errado poderemos ser nós, com ações, palavras, pensamentos e às vezes já tarde demais ou impossível, o se desculpar, ou o refazer o mal, o erro ou a grande injustiça que podemos estar cometendo.