quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O FEMININO QUE HÁ EM NÓS


"A arte e o impulso de cuidar e acolher são algumas das manifestações da porção feminina da alma. Conhecer esse leque de qualidades é ganhar a chance de saber mais sobre si mesma. Então, vamos entrar um tantinho nesse rico universo. "
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O espírito mesmo não tem sexo, profetiza a maioria das tradições. Mas a alma, ao viver na Terra e receber um corpo, masculino ou feminino, é influenciada por essa condição. "Certas características são atribuídas ao universo feminino: o cuidar e a cura, o nutrir e o educar, a compaixão, o amor à natureza e ao belo", diz a educadora Neuza Russo. "Essas qualidades e ações são tradicionalmente ligadas aos aspectos femininos do ser", afirma. O feminino, segundo ela, também se caracteriza por um sentimento profundo de falta. Muitas vezes, na história da arte, ele é representado por um vaso ou um cálice, pelo que precisa ser preenchido. "É essa sensação de insatisfação perene que conduz ao movimento e à busca espiritual", acrescenta Neuza. E a alma, quando preenchida pelo sagrado, imediatamente amplia sua relação com o mundo. "Passamos a reconhecer a sacralidade do corpo, da natureza e do outro", afirma a educadora. É nesse momento de plenitude que se dá o exercício da espiritualidade em seu lado feminino. A mulher se torna xamã e curadora, mestra e servidora, cuidadora e artista. "Cada pessoa irá desenvolver um desses aspectos, mas certamente todos eles estarão interligados num nível mais profundo", diz ela. E como isso acontece?
INTEGRAÇÃO E NASCIMENTO
Pode-se dizer que tudo que esteja relacionado ao reino da criatividade e intuição, ao acolhimento e à afetividade, ou à natureza e a seus ciclos, se ligue a aspectos do feminino, tanto na mulher, onde eles se manifestam majoritariamente, como no homem, que também tem sua contraparte feminina. Já a lógica e a razão, o que estabelece leis e regras, o que é mais rígido e compartimentado, se associa aos aspectos masculinos, quer no homem (onde estão mais pre sentes) como na mulher. As sociedades matriarcais do passado incentivavam aspectos femininos no conjunto de seus valores e padrões de comportamento. "Isso não quer dizer que uma matriarca não soubesse ser cruel e dura, guerrear e estabelecer regras. Ou que o homem não pudesse se embelezar e pintar seu corpo para as festas cerimoniais em uma vivência de entrega aos mistérios de sua religião. Continuamente, lançamos mão de nossos aspectos masculinos e femininos, conforme a necessidade", diz o psicoterapeuta Luiz Geraldo Benetton, estudioso de psicologia da religião. Na sociedade patriarcal, que se mantém no poder há milhares de anos, os valores femininos foram abafados. O que era relacionado à mulher era considerado sem prestígio, mas essa situação, segundo Benetton, está mudando. E já aponta no horizonte uma nova estrutura social e cultural, com mais ética, consciência do outro - seja ele uma pessoa ou a própria natureza. A valorização da ecologia, por exemplo, faz parte dessa nova consciência. A natureza não é mais vista apenas em seu aspecto mágico, como nas sociedades matriarcais, nem mais como a natureza-objeto, que só serve para ser usada e explorada, destituída de alma, como nas sociedades patriarcais. "Assistimos ao nascimento de uma sociedade em que o ser humano se vê como integrante de seu entorno, consciente de que faz parte de um todo e de que suas ações têm influência sobre esse conjunto", declara o terapeuta. Em outras palavras, a união de compreensão e consciência ao lado do amor à natureza e o reconhecimento da sacralidade da vida. "Isso também deverá ocorrer em relação à espiritualidade, que poderá ser vivenciada de forma mais dinâmica e aberta e não somente debaixo de ritos, leis e dogmas e nem só servindo a uma visão mágica e temerosa das forças do Universo", completa Benetton. Você vai conhecer agora a história de seis mulheres que encarnam aspectos relacionados à espiritualidade feminina. Elas vão dizer como a cura, o contato com a natureza, o cuidado, o servir, a maestria e a arte influenciam seu coração e sua vida.

Curadora Miriam Leiner aprendeu a "dançar" a cura. "Vida é movimento, fluxo, ciclo, ritmo, som. Por isso, dançar é tão profundamente terapêutico, curador. A consciência do movimento e do corpo resgata o sentimento de unidade que temos com a vida", diz a terapeuta. Além disso, a flexibilidade da dança, segundo Miriam, dissolve padrões, inclusive os que podem nos levar ao desequilíbrio. "A doença é uma exteriorização da falta de harmonia com o princípio vital, com a natureza, com o semelhante. E a cura nada mais é do que a volta dessa sintonia, dessa sensação de pulsar junto com o Universo", diz. Nesse sentido, ela nos fala que as mulheres são privilegiadas. "As mulheres têm uma profunda ligação com a natureza: sabemos a importância dos ciclos e ritmos por que menstruamos e somos regidas pelas fases da Lua; da criatividade porque geramos a vida em nosso ser; e da flexibilidade, em todos os sentidos, porque cuidamos da família e administramos conflitos." Para Miriam, a dança inclui todos estes aspectos: criatividade, flexibilidade, integração, unicidade e, principalmente, alegria. "Quem põe o pé na avenida no desfile de uma escola de samba sabe do que estou falando: aquele mar de gente vibrando junto, celebrando o estar vivo", lembra. Até organizar seus grupos de consciência do corpo por meio do movimento e fazer atendimentos individuais de terapia corporal, ela percorreu um longo caminho, que inclui a psicologia de Carl Rogers, que sustentava que a cura é autocura, os ensinamentos da bionergética, os estudos sobre o movimento do ucraniano Moshe Feldenkrais, a biodanza do antropólogo chileno Fernando Toro e as lições do coreógrafo brasileiro Klaus Vianna. Além disso, compreen deu a interação energética que se faz entre o homem e o Cosmo com a terapia japonesa do jin-shin-jyu-tsu e a medicina chinesa. "Hoje, o movimento corporal consciente na dança é, para mim, a mais profunda forma de oração e espiritualidade. E um dos caminhos mais completos para o despertar da autocura."
A Servidora, uma das frases mais repetidas pela terapeuta Mara Maldaun diante de alguém com dificuldades é: "E como é mesmo que eu posso te ajudar?" Essa frase, que para muitas pessoas é tão difícil de ser pronunciada, para ela se tornou quase um mantra. Compartilhar e servir são ações que Mara vive nas mais diversas condições. Ela já trabalhou em favelas, tratou de dependentes químicos e participou da implantação de uma escola antroposófica em uma comunidade carente, entre tantas outras ações voluntárias. "A compaixão é uma condição natural da alma. Pode estar presente no coração de homens e mulheres, mas está mais relacionada ao aspecto feminino do ser. A mulher já vem preparada para se doar", diz ela. Esse seu jeito atento às necessidades do outro foi cultivado na família. Pai, mãe, irmãos eram praticantes do espiritismo kardecista, que dá particular importância à caridade. "Desde pequena, percebi que servir conscientemente ao próximo traz muita alegria", recorda Mara. "Na verdade, acontece uma troca. Você doa, mas ganha em felicidade", assegura. É algo tão natural que seu próximo projeto é se mudar para o interior de São Paulo e, como primeira providência, plantar uma horta comunitária no quintal com as crianças pobres do bairro. Seu mestre, o guru indiano Sai Baba, assim como o trabalho de madre Teresa de Calcutá, são inspirações para Mara Maldaun se envolver cada vez mais nesse servir. "As obras desses dois seres cheios de compaixão são conhecidas em todo o mundo. Mas em cada lugar do planeta, independentemente de mestres e exemplos, o mínimo que se espera é que cada um faça sua parte."
A MestraA trajetória espiritual da educadora Neuza Russo começou há 16 anos de forma inesperada. Em 1991, aos 50 anos de idade e durante uma viagem ao Peru, Neuza conta que se viu diante de uma das aparições da Mãe Divina, no Templo da Lua, em Cuzco. "Não era uma entidade inca nem uma antiga sacerdotisa local. Era uma mulher de pele e vestes muito brancas e longos cabelos escuros. Algum tempo depois, reconheci essa mesma representação numa imagem de Nossa Senhora numa igreja no Chile", conta Neuza. Diante dessa forma feminina, Neuza se ajoelhou e, de acordo com ela, recebeu uma iniciação que deveria ser repassada posteriormente a todos homens e mulheres que desejassem recebê-la. "A Mãe Divina chamou esse ritual espiritual de Toque da Lua. Ele é muito simples e nos conecta às qualidades lunares que as tradições espirituais reverenciam, como suavidade, amorosidade, abundância", diz Neuza. Para a educadora, que tem uma sólida formação intelectual, foi difícil aceitar a realidade dessa manifestação. "Levei seis anos para compreender o que tinha se passado", reconhece. Hoje, o ritual se dá nas Luas cheias de cada mês numa região nobre nos arredores de São Paulo. "A Lua é um eterno símbolo do feminino. Ela influência a natureza como um todo, mas principalmente as águas, o nascimento e a morte. O Toque da Lua nos faz lembrar, e honrar, sua importância em nossa vida."

A Artista


Antes de pintar uma tela, Nancy Andrade Pinto, conhecida pelo pseudônimo de Fletea, se conecta e busca inspiração nos planos divinos, colocando-se a serviço deles. Das formas leves e abstratas de suas pinceladas, nascem anjos, divindades de várias tradições e seres celestiais. "É mais do que um quadro. É uma ancoragem de energia que chega de outras dimensões. A tela, então, se torna um pólo irradiador dessa força para o benefício de todos os seres", acredita Fletea. Pintar é uma forma de externar sua espiritualidade. Ela também ensina os fundamentos do que chama de "ancorela", composições de anjos baseados na geometria sagrada (triângulo, quadrado, círculo e espiral). "É importante que essa energia não fique restrita a meu trabalho. Ela precisa se espalhar, pois o planeta tem urgência em recebê-la", garante a artista plástica. Para se inspirar, ela usa a respiração e a música erudita. "A arte é terapêutica e lúdica e toca a essência das coisas", afirma Nancy.

A Xamã


Na franja de seu poncho, a campineira Izabel Camargo Donalisio ainda vê as marcas dos dias em que ficou sozinha numa montanha no México, praticando o trabalho espiritual xamânico da Busca da Visão. Foram nove dias em jejum, dormindo em chão de terra sem barraca e enfrentando o medo do escuro. Nesse período, ela procurou entender o simbolismo dos animais, das aves e dos insetos que vinham visitá-la para descobrir a si mesma: ultrapassou limites e desenvolveu capacidades e dons. No Peru, onde morou por sete anos, participou de várias saunas sagradas, rituais de fogo para purificação, cerimônias para entrar em contato com guias espirituais. No Brasil, dessa vez numa linda (e chuvosa) montanha de Santa Catarina, passou mais um período solitário de 13 dias, contando o tempo nas franjas do poncho, para completar o ciclo de Busca da Visão, um dos passos iniciais do caminho xamânico para a ampliação da consciência. Pertencente à seita xamânica Fogo Sagrado de Itzchatilatlán, Izabel encontrou a forma de expressar sua espiritualidade junto à natureza. "Descobri a sacralidade da vida, as dimensões que nos perpassam, a imensidão do mundo espiritual", diz ela, que hoje comanda rituais do fogo em São Paulo. A intensa ligação com a tradição espiritual das Américas, porém, não a impede de ter compromissos bem rotineiros: ir ao banco, fazer compras, viajar a trabalho. Ou procurar conciliar a atividade do mundo xamânico com a calma do mundo contemplativo, pois Izabel também é praticante de meditação zen. E essa integração espiritual, tão típica do feminino, é vivida com leveza e graça - talvez a mesma dos seus brincos em forma de colibri.

A Cuidadora

Ao ver Diana, a netinha recém-nascida, no berçário da maternidade, Blanca Suarez se perguntou: quem é esse ser? O que ele veio apren der aqui? Como ajudá-lo a desa brochar? "Dispensei os adjetivos 'que gracinha!' e tal. Não teve nada disso. Só fiquei ali, tentando descobrir o melhor de mim para dar a ela", diz Blanca. E essa é uma prática de todos os dias. "Cuidar é estar per to e dedicar atenção. A comida que faço tem atenção, tanto como o DVD ou os livros que escolho para ela. Diana, agora Didi, sente que é amada e responde com amor." Blanca tenta transmitir valores espirituais para a neta sem discursos e teorias. "Esse aprendizado nasce do cotidiano, da minha interação com ela. E nossos diálogos são inesquecíveis", conta. Um deles aconteceu quando Blanca contou sobre a morte da bisavó. "Foi muito difícil colocá-la diante do mistério que é a morte. Mas, à noitinha, a convidei para ver um lindo céu estrelado e disse que a bisa tinha morrido e virado uma estrelinha", diz. A reação da neta foi imediata. "Nossa, será que ela não vai ficar triste se ficar lá tão longe e sozinha?", ela perguntou, aflita. "Não", disse a avó. "Ela também vai viver aqui, dentro de meu coração." Didi ficou pensativa e depois retrucou: "Quer dizer, vó, que um dia eu também vou morrer?" Mais uma pausa. "E que você vai morrer também?!?" Sem esperar a resposta, emendou: "Não fica triste, não. Você também vai viver para sempre em meu coração quando virar estrelinha..."


Texto de Liane Alves
(Enviado de presente por Magda Mateuci)

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