
Matão que depois virou Ouro Verde, por causa do café.
Com suas ruas tortuosas, suas casas velhas
decoradas com pedras, imbés, árvores imensas.
Muitos coqueiros e pés de figo para os doces de
Dona Deocleciana, com aquele narigão e a cara
vermelha, debaixo da pituca bem comportada.
A casa de Tio Zé Magno também era bonita e grande.
Ele era carpinteiro, como o santo.
Acho que foi por causa do nome.
Pena que Tia Lica não servia para ser Nossa Senhora,
era feia, velha, dizia-se cega e gostava
de fazer umas ruindades. Pequenas, mas ruindades.
Ela também não tinha filhos.
Contava que deu à luz as gêmeas: Cordai e Magali,
mas que as duas morreram ao nascer.
Dizia que o parto foi feito às pressas, com garfo
e faca de mesa.
E eu que não sabia o que era parto, pensava
que o médico queria comer as crianças e
ficava matutando nisso antes de dormir.
No quintal, a oficina cheia de serragem e pedaços de madeira.
Os pés de beladona muito carregados com aquela flor imensa
que parecia as mulheres que a gente vê nos livros de história
com as saias longas e cheias de babados coloridos.
Eu ficava olhando aquilo e inventando coisas.
De noite, com frio, as mulheres colocavam seus xales
e todos iam conversar na sala.
Minha vó falava das receitas e da doença de D. Rita,
sua vizinha.
Meu Tio Zezinho – irmão caçula do meu pai
mostrava com orgulho os primeiros fios do bigode. Coitado...
Tia Lica aproveitava para exibir seu tesouro: uma coleção
com muitas toalhas de mesa de plástico, coloridas.
Tinha uma de crianças holandesas colhendo tulipas,
um verdadeiro espetáculo.
Uma de frutas, a coisa mais linda!
Outras de colunas gregas, patos, peixes, flores, passarinhos...
Uma infinidade...
Depois ela dobrava uma a uma com todo cuidado, toda orgulhosa.
Minha tia Luiza se propunha a ajudar, mas ela agradecia
e afastava a sua mão para que ninguém as tocasse.
Tio Zé Magno raspava a garganta e ia para a cozinha,
passava um café
daqueles torrados em casa e o cheiro rescendia
pela vizinhança.
Um cheiro de café de quem não tem pecado.
Tia Lica era meio manca e muito lenta.
Arrastava vagarosamente os pesados chinelos
pelo quintal e pela casa,
passando as mãos no cabelo e reclamando
das dificuldades da vida.
Mas para ela – que se fazia de cega
para não fazer nada – era até muito fácil.
Tio Zé Magno cheio de paciência
entregava nas suas mãos o pente, as meias,
o prato de comida que ele mesmo fazia
e a xícara grandona de café que ela
sorvia gole a gole, sentindo bem o gosto
com os olhos fechados.
E, de vez em quando, batia com força o fundo da
xícara pesada na mesa,
como se fosse uma governadora.
Ele cheirava rapé e dizia que era dos bons.
Fez-me um carrinho de madeira que era uma beleza,
com uns belesqüetes encima que rodavam, rodavam,
rodavam juntos e no mesmo ritmo.
E eu os pintei de várias cores com tinta de urucum,
de açafrão e corantes de papel de seda.
Ficou maravilhoso e eu brincava com aquilo o dia inteiro.
Era o que bastava para o meu coração ficar
derramando de felicidade.
Tio Zé Magno deve ter virado Santo.
Pois além de agüentar as cavalices de Tia Lica
ele me deu de presente a maior alegria do mundo
e dar alegria pra criança é o princípio básico
para a santificação...
...Eu gostei da toalha das crianças holandesas
e pedi à minha Tia para deixá-la na mesa.
Ela titubeou, mas me atendeu com um sorrisinho desconfiado.
Foi a única boa ação de Tia Lica que já se teve notícia.
(Antonio da Costa Neto)
Um comentário:
Tonho, tua alma que viaja longe, grande, batendo asas e bicando as flores de cada gente, é motivo de alegria a todos que têm o privilégio de voar em tuas letras, que nem precisam ser emendadas umas nas outras para virar canção de ninar, de sorrir, de vibrar, de entontecer de emoção, e seguir o dia e embalar a noite sem solidão.
Tua e sempre. Gau
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