sexta-feira, 8 de junho de 2007

POEMA DO MENINO JESUS
















Num meio-dia de fim de primavera
Eu tive um sonho como uma fotografia
Eu vi Jesus Cristo voltar à terra
Veio pela encosta de um monte.
E era a eterna criança, o Deus que faltava.
Tornando-se outra vez menino,
A correr e a rolar pela relva
E a arrancar flores para deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir de
segunda pessoa da Trindade.
Um dia, que Deus estava dormindo
e que o Espírito Santo andava a voar
Ele foi até a caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro, ele fez com que ninguém
soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo, ele criou-se eternamente
humano e menino.
E com o terceiro ele criou um Cristo e o
deixou pregado numa cruz que serve de modelo às outras.
Depois ele fugiu para o sol
e desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje ele vive comigo na minha aldeia
e mora na minha casa em meio ao outeiro.
É uma criança bonita, de riso e natural.
Atira pedra aos burros.
Rouba a fruta dos pomares.
E foge a chorar e a gritar com os cães.
Nem sequer o deixaram ter pai e mãe
como as outras crianças.
Seu pai eram duas pessoas: um velho carpinteiro
e uma pomba estúpida, a única pomba feia do mundo.
E sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher, era uma mala em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que justamente ele pregasse o amor e a justiça.
Ele é apenas humano, limpa o nariz com o braço direito,
chapina as possas d'água; colhe as flores, gosta delas, esquece-as.
E porque sabe que elas não gostam e que toda a gente acha graça,
ele corre atrás das raparigas que carregam as bilhas na cabeça
e levanta-lhes as sáias.
A mim, ele me ensinou tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
E aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem nas mãos e olha devagar para elas.
Ensinou-me a gostar dos reis e dos que não são reis.
E tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente.
Sempre a escarrar no chão e a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meias.
E o Espírito Santo coça-se com o bico;
empoleira nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é tão estúpido como nas Igrejas.
Diz-me que Deus não percebe nada das coisas que criou,
do que duvido.
"Ele diz por exemplo que os seres
cantam sua glória."
Mas os seres não cantam nada, se cantassem, seriam cantores.
Eles apenas existem e por isso são seres.
Ele é o humano que é o natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E é por isso que eu sei com toda certeza
que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E depois, cansado de dizer mal de Deus
ele adormece nos meus braços
E eu o levo ao colo para casa.
Damo-nos tão bem um com o outro
na companhia de tudo
que nunca pensamos um no outro
Mas vivemos juntos os dois
com um acordo íntimo,
como a mã0 direita e a esquerda.
Ao anoitecer, nós brincamos nas
cinco pedrinhas no degrau das portas de casa.
Graves, como convêm a um deus e a um poeta.
E como se cada pedra fosse um universo
E fosse por isso um grande perigo
deixá-la cair no chão.
Depois ele adormece
E eu o deito na minha cama
despindo-o lentamente
seguindo um ritual muito limpo, humano e materno
até ele ficar nu.
Ele dorme dentro da minha alma.
Às vezes ele acorda de noite
E brinca com os meus sonhos
Vira uns de perna para o ar,
Põe uns encima dos outros
E bate palmas sozinho sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa
E deita-me na tua cama
E conta-me histórias, caso eu acorde,
para eu tornar a adormecer.
E dá-me os sonhos teus para eu brincar.
(Alberto Caeiro)

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