quarta-feira, 27 de junho de 2007

MEU TIO ZÉ DO MATÃO

Tio Zé Magno morava no Matão com Tia Lica.
Matão que depois virou Ouro Verde, por causa do café.
Com suas ruas tortuosas, suas casas velhas
decoradas com pedras, imbés, árvores imensas.
Muitos coqueiros e pés de figo para os doces de
Dona Deocleciana, com aquele narigão e a cara
vermelha, debaixo da pituca bem comportada.
A casa de Tio Zé Magno também era bonita e grande.
Ele era carpinteiro, como o santo.
Acho que foi por causa do nome.
Pena que Tia Lica não servia para ser Nossa Senhora,
era feia, velha, dizia-se cega e gostava
de fazer umas ruindades. Pequenas, mas ruindades.
Ela também não tinha filhos.
Contava que deu à luz as gêmeas: Cordai e Magali,
mas que as duas morreram ao nascer.
Dizia que o parto foi feito às pressas, com garfo
e faca de mesa.
E eu que não sabia o que era parto, pensava
que o médico queria comer as crianças e
ficava matutando nisso antes de dormir.
No quintal, a oficina cheia de serragem e pedaços de madeira.
Os pés de beladona muito carregados com aquela flor imensa
que parecia as mulheres que a gente vê nos livros de história
com as saias longas e cheias de babados coloridos.
Eu ficava olhando aquilo e inventando coisas.
De noite, com frio, as mulheres colocavam seus xales
e todos iam conversar na sala.
Minha vó falava das receitas e da doença de D. Rita,
sua vizinha.
Meu Tio Zezinho – irmão caçula do meu pai
mostrava com orgulho os primeiros fios do bigode. Coitado...
Tia Lica aproveitava para exibir seu tesouro: uma coleção
com muitas toalhas de mesa de plástico, coloridas.
Tinha uma de crianças holandesas colhendo tulipas,
um verdadeiro espetáculo.
Uma de frutas, a coisa mais linda!
Outras de colunas gregas, patos, peixes, flores, passarinhos...
Uma infinidade...
Depois ela dobrava uma a uma com todo cuidado, toda orgulhosa.
Minha tia Luiza se propunha a ajudar, mas ela agradecia
e afastava a sua mão para que ninguém as tocasse.
Tio Zé Magno raspava a garganta e ia para a cozinha,

passava um café
daqueles torrados em casa e o cheiro rescendia
pela vizinhança.
Um cheiro de café de quem não tem pecado.
Tia Lica era meio manca e muito lenta.
Arrastava vagarosamente os pesados chinelos
pelo quintal e pela casa,
passando as mãos no cabelo e reclamando
das dificuldades da vida.
Mas para ela – que se fazia de cega
para não fazer nada – era até muito fácil.
Tio Zé Magno cheio de paciência
entregava nas suas mãos o pente, as meias,
o prato de comida que ele mesmo fazia
e a xícara grandona de café que ela
sorvia gole a gole, sentindo bem o gosto

com os olhos fechados.
E, de vez em quando, batia com força o fundo da
xícara pesada na mesa,
como se fosse uma governadora.
Ele cheirava rapé e dizia que era dos bons.
Fez-me um carrinho de madeira que era uma beleza,
com uns belesqüetes encima que rodavam, rodavam,
rodavam juntos e no mesmo ritmo.
E eu os pintei de várias cores com tinta de urucum,
de açafrão e corantes de papel de seda.
Ficou maravilhoso e eu brincava com aquilo o dia inteiro.
Era o que bastava para o meu coração ficar
derramando de felicidade.
Tio Zé Magno deve ter virado Santo.
Pois além de agüentar as cavalices de Tia Lica
ele me deu de presente a maior alegria do mundo

e dar alegria pra criança é o princípio básico
para a santificação...
...Eu gostei da toalha das crianças holandesas
e pedi à minha Tia para deixá-la na mesa.
Ela titubeou, mas me atendeu com um sorrisinho desconfiado.
Foi a única boa ação de Tia Lica que já se teve notícia.


(Antonio da Costa Neto)

Um comentário:

Anônimo disse...

Tonho, tua alma que viaja longe, grande, batendo asas e bicando as flores de cada gente, é motivo de alegria a todos que têm o privilégio de voar em tuas letras, que nem precisam ser emendadas umas nas outras para virar canção de ninar, de sorrir, de vibrar, de entontecer de emoção, e seguir o dia e embalar a noite sem solidão.
Tua e sempre. Gau