quinta-feira, 7 de junho de 2007

MINHA MAGESTADE, CANÔ...

Dentre uma das minhas muitas visitas a Salvador, tive um estalo repentino: queria visitar D. Canô Veloso, em Santo Amaro da Purificação, no recôncavo, há alguns quilômetros da capital baiana. Levantei-me cedo e fui ressabiado para a Rodoviária, pensando no grande papel de bobo que poderia estar fazendo.
Menos de uma hora depois, estava eu em Santo Amaro, dando voltas pela cidade, sem a coragem de bater na porta do imenso casarão branco, imponente e posudo com detalhes em madeira azul, telhado colonial, na Av. Viana Sena, nº 328, no centro da pacata e encantadora Santo Amaro da Purificação - Bahia.
Andei pela cidade, fiz algumas fotos e, ainda inseguro, perguntei por uns meninos que jogavam bola alí perto da casa, se eles conheciam D. Canô. Foram prontos e rápidos ao entrarem casa a dentro pelos longos corredores, gritando: - "Dona Canô! Dona Canô! Tem um moço aqui querendo falar com a senhora..."
Mantive-me na porta, impávido e gelado. Estava prestes a me encontrar com uma celebridade-santa. Eis que ela surge na porta de onde começa o coredor. Esta fechava em sua cintura e eu só via o seu busto encantador com aquele sorriso de luz. Os cabelos brancos e longos, presos discretamente no alto da cabeça com presilhas brancas e brilhantes, fazendo um tom-sobre-tom que realçava aquela beleza profunda e mais que angelical.
Um sorriso doce emoldurado por grandes olhos castanhos claros, lúcidos, brilhantes e inquietos. Belas e profundas rugas marcavam aquela imagem sagrada. A blusa branca com rendas da mesma cor, sobrepostas, dando sobriedade, elegância e altivez de rainha. Com braços e mãos abertos num gesto caloroso de alegria... Foi quando senti o cheiro forte de leite de rosas. Nada tão emocionante, naquele cenário amplo, simples, limpíssimo, brilhante como as almas e as alegrias oriundas de um santuário verdadeirio, movimentado e dinâmico pela cachorra: Bonita(não poderia haver outro nome melhor).
Simpática e calorosa ela disse que eu não poderia sair dali sem almoçar. Tratou de preparar uma salada, um prato mais que especial, o que muito me honrou. Comemos à mesa aquelas delícias baianas regadas a carne de sol bem temperada, saladas, muito feijão, pimenta, farofa e um suco de maracujá, cujo gosto jamais poderei esquecer.
Depois ela se senta elegantemente, com uma classe siingular. Me conta histórias de sua vida, a luta para a criação dos muitos filhos, o começo da vida artística de Caetano e Bethânia, misturando risos, coisas bucólicas. Mostra-me retratos antigos de todos, som, discos. Vamos para o quintal nos sentar entre roupas no varal, brisa, flores e mangueiras. Ela pergunta de minha vida, da minha história, a qual, muito respeiosamente compara com a dos seus filhos. Me fala de Mabel, Rodigo, Roberto, Caetano, Bethânia, Clara, Irene e Nicinha que, aliás, era a única que estava em casa com a sua exótica e graciosa timidez.
Caminhamos pelas ruas de mãos dadas e visitamos alguns de seus amigos mais íntimos. Todos me olhavam com muita inveja e eu me sentia a mais feliz das criaturas. Aprendi com ela que não devemos ter orgulho de nada, mas alegria pelas coisas que a vida e Deus nos proporcionam.
Fiquei feliz porque conheci a imgem da pureza na figura daquela mulher tão frágil, mas com alma de leoa. Aquele riso doce e mãos milagreiras de uma santa que formata o amor, a harmonia. A verdadeira estrela que ilumina a arte e a múscia. A madona das harmonias e dos rítmos. O grande mito de mãe, de mulher, de devota, carregada de orações e bondades. Dona Canô não tem pecados. Foi batizada no Subaé pelo espírito de João Batista, tornando-se um anjo de encantamento. Um dos poucos exemplares humanos que ainda justificam a existência e a continuidade da vida.
A matriarca dos Veloso teve uma boa formação. Apesar da origem humilde, freqüentou o Colégio das Sacramentinas, escola paga e destinada exclusivamente a moças. Aprendeu o idioma francês e teve aulas de piano. "Naquele tempo não havia ginásio nem nada disso. Mas o ensino era muito superior ao de hoje", ela diz. Dona Claudionor ganhou este apelido por causa de um menino da família que não conseguia pronunciar o seu nome.
O casamento de dona Canô, em 7 de janeiro de 1931, coincidiu com a decadência dos engenhos de açúcar do Recôncavo. Ela foi morar com o marido, José Telles Velloso, um telegrafista da Companhia de Correios e Telégrafos, na casa da sogra, na rua Direita, formando uma família de 28 pessoas. Na época já tinha a responsabilidade de criar uma filha: Nicinha, uma menina de três anos, que elegeu os Veloso a sua segunda família.
A primeira filha biológica do casal, Clara Maria, nasceu um ano depois. Em seguida, vieram Maria Isabel, Rodrigo, Roberto, Caetano e Maria Bethânia. Irene, a caçula, tema de uma música de Caetano, só seria adotada por Canô anos depois. Oito filhos ao todo. "Eu não pensava ter muitos filhos, mas não tinha como se evitar naquele tempo", diz.
Os anos trinta marcaram a chegada dos primeiros automóveis. Foi quando surgiu a marinete, o primeiro ônibus da cidade, levado pelas mãos de um certo João. João da Marinete modernizou o transporte local e anos mais tarde, durante os freqüentes cortes de energia no tempo da guerra, garantiu a transmissão radiofônica da novela O Direito de Nascer. Com o auxílio do gerador de seu coletivo fazia chegar à platéia, reunida na praça, o drama de Mamãe Dolores, Isabel Cristina e Albertinho Limonta.
Quando a Segunda Grande Guerra chegou ao fim, em 1945, os Veloso começaram a detectar os sinais das inclinações artísticas dos filhos. Aos quatro anos, Caetano grafitava as paredes da casa com o carvão tirado do fogão a lenha, até descobrir tintas, paletas e pincéis, com os quais chegou a produzir alguns quadros na adolescência. Com dez, gravou seu primeiro disco. "Caetano ficou na sala com o microfone enquanto Nicinha tocava o piano", lembra Dona Canô. Foram duas faixas: "Mãezinha Querida" e "Feitiço da Vila", de Noel Rosa. "Esse disco está com meu filho Rodrigo até hoje. Durante muitos anos a gravadora correu atrás de Caetano feito doida." Mabel, que mais tarde viria a ser uma poetiza, tornou-se a guardiã dos primeiros escritos de Caetano. Maria Bethânia, embora gostasse de cantar, era barrada no coral do colégio pelo grave timbre que sua voz já revelava. "Mas ela não se importava. Dizia que ia ser artista", conta a mãe.
E no início na década de 60 o casal se transferiu para Salvador, acompanhando os filhos que procuravam trabalho. Veio o show no Teatro Opinião e a partida dos caçulas para o Rio de Janeiro. Bethânia tinha dezessete anos. "Zeca não queria que ela fosse, mas Caetano disse: ela vai comigo". Em seguida, vieram os festivais de música da antiga TV Record e Santo Amaro saltou do mapa aos olhos do País.
Os anos de chumbo projetaram os Veloso em profunda angústia e sofrimento. Caetano partiu, em 1969, para o exílio em Londres junto com o parceiro Gilberto Gil, depois de ficarem presos alguns meses no Rio. "Foi uma coisa bárbara. Queriam incriminá-lo com acusações falsas", lembra a mãe. Foram dois anos e meio de ausência, quebrada apenas durante alguns dias por ocasião dos 40 anos de casamento de Zeca e Canô. Isso por determinação de Maria Bethânia, que foi ao presidente Garrastazu Médici pedir a concessão de uma visita.
Em 1984, o casal voltou ao antigo casarão de Santo Amaro da Purificação, de acordo com o desejo do marido. Doente, Zeca queria morrer em sua terra, o que aconteceu apenas seis dias depois da mudança. Desde então, dona Canô só deixou a cidade em visitas aos filhos ou para acompanhá-los em viagens. Conheceu Paris, Nova York, Madri, Barcelona, mas é de Roma que ela guarda a melhor lembrança: a platéia toda de um concerto de Caetano com isqueiros acesos na mão, aclamando o cantor. "Ver o teatro todo iluminado foi a coisa mais linda", diz. Hoje, aos 96 anos, oito filhos e nove netos, dona Canô procura restringir seus compromissos sociais. Mantém agendadas só as primeiras terças e sextas-feiras de cada mês, além dos domingos, quando vai religiosamente às missas na Igreja da Nossa Senhora da Purificação. Mesmo aos shows dos filhos, prefere ir apenas em ocasiões excepcionais, como no concerto do tenor Luciano Pavarotti ao lado de Gal Costa e Maria Bethânia, em Salvador. "Aqui é o meu canto", diz.
Sempre com o risco de quebra da locomotiva, alimentada a lenha. "Mesmo assim eu preferia ir de trem recordando os tempos da minha querida e emocionante motriz", conta dona Canô e ri belamente, eexternando lírios e o mundo de graças, bênçãos e alegrias que transbordam do seu coração iluminado. E num gesto belo e simples encanta-me para sempre como exemplo de um ser humano muito mais do que especial.


Minha paixão.
Minha reverência e respeito.
Meu afeto muito mais que incondicional.
Minha Majestade, Canô!

(Antonio da Costa Neto)

Um comentário:

Carole Chidiac disse...

Lindo seu texto sobre a doce mãe dessa nossa gente morena. Parabéns.
Carole.