quarta-feira, 2 de maio de 2007

...MEU REINO


O quintal da casa da minha avó era grande.Quase uma fazenda.

Junto às cercas de arame farpado o capim ficava grande

e emoldurava a paisagem lá fora: casinhas, morros, postes, serras...

O tanque rodeado de moças e conversas,

mãos espumadas, batedor surrado

e varal tão cheio quanto o cansaço dos corpos.

Minha tia reclamava e ia se deitar mais cedo.

Laranjeiras, cachos de banana, roseiras, margaridas, pés de pimenta.

Chuchu trepado no pé de manga, lá encima. Abacateiro, flor de manacá.

Galinhas, jabuticabas, moitas de bananeiras fresquinhas e úmidas.

Gato malhado e ninhos de passarinhos. E a gente contando os ovos,

vigiando os filhotes nascerem.

Era só alegria ajudar dona sabiá, deixando comidas

nos galhos das árvores e ficar espiando escondido.

Eu fazia isso e achava que já tinha ganhado o ceu.

Não precisava mais rezar. Tinha preguiça de ir à missa

e fugia para ir espiar o Rio Vermelho nas manhãs de domingo.

Minha mãe desconfiava da minha cor morena porque dentro da igreja não tinha sol.

Eu me fazia de desentendido e ia levando.

Corria para a casa da minha avó e ganhava a barraquinha de despejo lá no fundo do
quintal.

Me deliciava com o cheiro da lenha guardada há anos e dos bichos,

dos sacos de arroz e feijão empilhados. Queijos, rapaduras, muita farinha...

Dos pés de milho e dos tempos das pamonhas: de doce, de sal, de canela,

de pimenta com linguiça, frita, assada, cozida.

Minha vó ria suave e enrolava o cabelo no alto da cabeça, prendendo uma pituca.

Ela escondia a chave da despensa na alça da combinação

pra gente não roubar seus doces, bolos e biscoitos.

E antes de dormir; segurava nas mãos de Nossa Senhora da Guia,

pedia bênçãos e fazia o sinal da cruz rezando em voz alta (Que era pra santa escutar).

Apagava a luz, deitava e ficava pensando: nos filhos, nas dívidas, nos problemas...

De vez enquando dava um suspiro tão fundo que doía na alma.

A gente ouvia passos na rua e ficava imaginando de quem poderia ser.

Às vezes ouvíamos vozes que davam para ser reconhecidas.

Eu era feliz porque tinha minha vó. Uma fortaleza a me proteger, me dar moedas
e contar estórias como as da moça que se encantou, do bezerrinho medroso e
do peixe que sabia falar.

Tinha silêncio pra dormir. E amanhã, certamente, aquele quintal inteiro seria o
meu Reino...

E eu, magestade, seria feliz entre cercas de arame, gatos,

passarinhos, flores de abóbora e roupas branquinhas, cheirosas, lavadas

por minhas tias bonitas e ancudas.

Minha avó trançando os cabelos, calada, com os grampos na boca

e rezando em silêncio. E eu achava que era para a gente ficar

rico e o meu pai poder ir pescar todos os dias, o dia todo.

E eu, menino, brincava no quintal e nem pensava em outra coisa na vida.

Eu era muito mais feliz do que o rei da Suécia, da Espanha, da Inglaterra...

Muito mais mesmo.

(Ainda mais agora que eu sei que ser rei de verdade não tem aquela graça toda.

Bom mesmo era reinar no quintal-fazenda de minha avó).


(Antonio da Costa Neto - do meu livro ainda

inédito: Poemas para os anjos da terra).

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