quarta-feira, 2 de maio de 2007

DESPREZO


"Eu queria ser chão para que em mim as árvores crescessem.

Para que sobre mim as conchas se formassem.

Para que sobre mim os rios corressem..."


(Manoel de Barros)


Desprezo era um lugarejo. Acho que lugar

desprezado é mais triste do que abandonado.

Não sei por quê caminhos o mundo me tirou do

Desprezo para este posto de gasolina na

estrada que vai para São Paulo. Acho quase um

milagre. Quando a gente morava no Desprezo ele já

era desprezado. Restavam três casas em pé. E três famílias

com oito guris que já corriam pelas estradas já cobertas de mato.

Eu era um dos oito guris. Agora estou aqui botando gasolina para

os potentados. Naquele tempo do Desprezo eu queria ser chão, isto ser:

para que em mim as árvores crescessem. Para que sobre mim as conchas

se formassem. Eu queria ser chão no tempo do Desprezo para que sobre

mim os rios corressem. Me lembro que os moradores do Desprezo, incluindo

os oito guris, todos queriam ser aves, ou coisas, ou novas pessoas.

Isso queria dizer que os moradores do Desprezo queriam ficar livres para

outros seres. Até ser chão servia, como era o meu caso. Ninguém era responsável

pelas preferências dos outros. Nem isso era uma brincadeira.

Podia ser um sonho saído do Desprezo. Uma senhora de nome Ana Belona

queria ser árvore para ter gorjeios. Ela falou que não queria mais moer solidão.

Tinha um homem com o olhar sujo de dor que catava o cisco mais nobre do lugar

para construir outra casa.

Não sei por quê aquele homem com o olhar sujo de dor queria permanecer no

Desprezo.

Eu não sei nada sobre as grandes coisas do mundo,

mas sobre as pequenas eu sei menos.

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