segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A CRIANÇA QUE PRATICA ESPORTE, RESPEITA AS REGRAS DO JOGO ...CAPITALISTA - WALTER BRACHT





Educar nesta sociedade é tarefa de partido, porque não é possível a um educador permanecer neutro. Ou educa a favor da classe dominante ou contra ela. Ou a favor das classes dominadas ou contra elas. Aquele que se diz neutro, estará apenas a serviço do mais forte, ou seja, da classe dominante. No centro, portanto, da questão pedagógica, situa-se a questão do poder.”
(Moacir Gadotti)


Entre os profissionais da educação física do Brasil, existem diferentes entendimentos do papel da educação física escolar. Poderíamos dizer que um grande grupo pensa e age de acordo com uma visão “biológica”, a partir da qual o seu papel seria o de melhorar a aptidão física dos indivíduos, com o que já estaria, automaticamente, contribuindo para o desenvolvimento social. Uma vez que as pessoas já estariam mais aptas a atuar na sociedade, e, portanto, mais úteis a ela. Outro grupo de profissionais, que, juntamente com o anterior perfazem a maioria, supera de certo modo esta visão, agregando à melhoria da aptidão física, o essencial desenvolvimento psíquico da pessoa.
Esta segunda visão, que denominamos de “biopsicológica” reconhece como papel da educação física não só a melhoria da performance desportiva em si, mas, também o desenvolvimento intelectual e a manutenção do equilíbrio efetivo e emocional; utilizando, para tal, uma abordagem sistêmica.
Diria-se que a educação física atua para além dos domínios cognitivo, afetivo e psicomotor. Nestas duas visões, porém, a análise da relação da educação física com o contexto social é, simplesmente, funcionalista, na medida que a sua função é a de formar física e psiquicamente um cidadão que desempenhe o melhor possível (dentro da atual estrutura social) o papel a ele atribuído na prática social.
Desta forma, são visões a - históricas da dimensão social da educação física, como também circunscrevem-se no âmbito das teorias acríticas da educação, conforme Saviani (1984), por não reconhecerem os condicionantes sociais da educação, e, mais especificamente, da educação física e da sua atividade pedagógica propriamente dita. Entendemos, assim, que não podemos mais permanecer com estas visões parciais e falseadoras da nossa prática social, produzidas, por sua vez, por uma metodologia positivista e fragmentada, como fruto do ultrapassado pensar cartesiano sobre os fatos e fenômenos. E neste sentido, não podemos prescindir de uma análise crítica que possa identificar o papel social que a educação física concretamente cumpre neste especial momento histórico de nossa sociedade.
São muito recentes algumas tentativas neste sentido que foram levadas a efeito. Dentre elas citamos a de Castellani (1983), que analisando os documentos e a legislação relativos à educação física no Brasil desde a década de 30 chegou à conclusão de que esta tem cumprido o papel de reforçar a estereotipação do comportamento masculino e feminino. Tem, igualmente, colaborado para o adestramento físico necessário, tanto à defesa da pátria, quanto à preparação e manutenção da força de trabalho necessária aos interesses da classe dominante.
Cavalcanti (1984) demonstrou o caráter ideológico do discurso que fundamentou, por exemplo, a campanha “Esporte para Todos” no Brasil, na medida em que este menosprezou os fundamentos filosóficos, sociológicos e psicológicos da atividade físico-desportiva e valorizou sobremaneira os aspectos metodológicos, não questionando, desta forma, o significado integral do esporte para a vida em sociedade.
Ferreira (1984)], a partir de uma matriz dual, em que classifica as atitudes e procedimentos do professor de educação física num modelo de reprodução ou numa perspectiva de transformação social, procedeu a uma investigação empírica que demonstrou o caráter reprodutivo das atividades pedagógicas do trabalho com a educação física no ensino fundamental. E para fazer justiça, teríamos ainda que citar as reflexões pioneiras de Lopes (1980) e as análises críticas de Oliveira (1983) e de Medina (1985).
Buscando colaborar no processo de análise crítica pelo qual passa a educação física brasileira, hoje. E o que ocorre intensivamente com a educação de uma maneira geral é que nos propomos a investigar uma outra faceta da educação física escolar, que é a sua possível contribuição no processo de socialização real de crianças e adolescentes.
Muitos pedagogos da educação física/esporte têm realçado a contribuição da atividade física e desportiva na socialização das crianças, contribuição essa, que tem sido utilizada como justificativa da sua inclusão nos currículos escolares. Neste sentido, as colocações indicam que acriança, através do esporte, aprende que, entre ela e o mundo existem “os outros”. Que para a vivência social precisamos aprender a obedecer determinadas regras, ter determinado comportamento. Aprendem as crianças também a conviver com vitórias e derrotas, a vencer por meio do esforço pessoal, desenvolvem, pelo esporte, a independência e a confiança em si mesmos, o sentido de responsabilidade, de socialização, de reconhecimento, etc.
Todas estas informações têm, no entanto, em comum o fato de serem informações que identificam um papel positivo-funcionalista para o esporte no processo educativo. Privilegiam, portanto, a sua funcionalidade, sua prática fria, camuflando, desta forma, os aspectos direcionais em si, que neste prisma, seriam, logicamente, os mais importantes. Estas posições não partem de uma análise crítica da relação educação física/esporte e o contexto sócio-econômico-político-cultural em que se objetivam, e, sim, da análise da educação física/esporte enquanto instituições funcionais. Ou seja, como instituições que devem colaborar para o funcionamento e a harmonia da sociedade na qual os indivíduos que as integram se inserem. Quando tais abordagens identificam aspectos negativos, estes são simplesmente colocados como disfunções internas da própria educação física/esporte.
No entanto, ao lado destas informações que considero como positivo-funcionais no resultado do processo de socialização através do esporte, poderíamos encontrar outras que indicam, justamente, no sentido contrário, como por exemplo: pelas regras das competições o esporte imprime no comportamento as normas desejadas da competição e da concorrência. As condições do esporte organizado ou de rendimento são, simultaneamente, as mesmas condições de uma sociedade de estruturação autoritária. Assim, o ensino do esporte nas escolas, enfatiza o respeito incondicional e irrefletido às regras e dá a estas um caráter estático e inquestionável. O que, é lógico, não leva à reflexão ou ao questionamento, mas sim, ao acomodamento. “Forjando um conformista feliz e eficiente.” O aprender as regras significa reconhecer e aceitar passivamente regras pré-fixadas e impostas. Como podemos verificar, sob um enfoque distinto, temos também, valorizações diferentes do produto e do processo da socialização na educação física e no esporte infantis.
Estas diferentes valorizações decorrem de óticas variadas de sociedade ou teorias sociais. As valorizações positivas são respaldadas na teoria estrutural-funcionalista da sociedade a partir da qual os elementos isolados do sistema social, tais como a educação, o esporte, etc. podem ser descritos como funções do sistema. Eles são considerados desde que tenham importância funcional para o sistema macro. Mantendo, portanto, sua estabilidade como unidade de funcionamento. Uma afirmação que tem o respaldo desta teoria é a de que a nova geração é educada dentro de uma sociedade muito competitiva, na qual, o princípio do rendimento se impôs. O jovem desportista é confrontado muito cedo com princípios do rendimento e dele é esperado não só suportar diferenças de rendimento, como também respeita-las.
As análises que criticam a função socializadora que o esporte cumpre, partem de uma teoria da sociedade que poderíamos chamar de “abordagem ou ótica do conflito”. Esta concepção desenvolvida a partir de Marx e Engels acredita que é mais correto ver a sociedade a partir de suas contradições historicamente acumuladas. Portanto, a adoção deste referencial significa não entender as sociedades capitalistas, por exemplo, como sendo harmônicas e funcionais, e, sim, que estas encerram contradições fundamentais, surgidas, principalmente na exacerbada competição entre as pessoas, que, em última análise, o esporte vem reforçar, ao mesmo tempo em que lança uma nuvem de fumaça para que as mesmas não sejam vistas, enfim, aliena politicamente as pessoas.

A partir da ótica do conflito – visão histórico-crítica – o esporte:

1 – Precisa ser entendido no contexto mais amplo das condições objetivas das sociedades capitalistas, ou seja, extremamente competitivas e centradas no produto, no resultado que, de preferência, deverá ser benéfico a qualquer custo, exacerbando, desta forma todo o processo de competição.
2 – Está intimamente relacionado com as diferenças de classes em termos da distribuição do poder, da riqueza, dos direitos individuais e sociais.
3 – Todo esporte competitivo reflete a ideologia burguesa, transcendendo-a para o lúdico, facilitando, principalmente, em termos psicológicos a sua reprodução no cotidiano das pessoas.

Por outro lado, a partir da abordagem estrutural-funcionalista – ou pela ótica do consenso – o esporte é assim encarado:

1 – O esporte competitivo reflete uma série de valores da maior importância para a sociedade, pois se ela é competitiva, pelo esporte, o indivíduo aprende a competir, lutar e ganhar. Desta forma, o recrutamento para o esporte em si, já cumpre a função de integração social.
2 – O esporte funciona nas sociedades industriais, especialmente as do ocidente (capitalistas) como um mecanismo de mobilidade social, pois, em última instância, reflete as suas tradições, carências e necessidades.
3 – É no esporte que se apresentam as melhores condições e oportunidades para a aprendizagem dos papéis sociais que permitem, por sua vez, a dinâmica da própria sociedade.

Cumpre aqui assinalar que a visão estrutural-funcionalista é mais típica dos chamados países do primeiro mundo – desenvolvidos e capitalistas – pois, tal postura, logicamente, colabora e muito com o dominador. Em função do que este está muito pouco interessado – ou nada interessado - em mudar porque isto pode acarretar a perde de privilégios. Nesta perspectiva, trata-se de não mudar o sistema, mas sim, conseguir mudanças, reformulações, aperfeiçoamentos dentro do sistema capitalista, buscando, assim, formas de fazê-lo funcionar melhor.
Assim sendo, o processo de socialização não é neutro. Pois ele acontece dentro de valores específicos. E, inclusive e, especialmente, pelo esporte, os valores que são inculcados são os valores dominantes, facilitando, enormemente, a exploração do homem pelo homem. O que nos lembram Marx e Engels (1984) em “A ideologia alemã”, que são sempre os valores que interessam às classes dominantes. Desta forma, o que a socialização desportiva reproduz, são, em especial e principalmente, as desigualdades sociais, isto é, a própria dominação se processando, aparentemente de forma lúdica e natural, por meio da prática do esporte.
Desta forma, podemos dizer que a socialização por meio do esporte escolar deve ser considerada uma estratégia de controle social, pela adaptação do praticante (e da torcida, principalmente, pois ela o faz de forma eminentemente passiva) aos valores e normas dominantes que propiciam o funcionamento do próprio esporte, o que é alegado como condição essencial para a funcionalidade e o desenvolvimento da própria sociedade. Um dos papéis que cumpre o esporte – e em especial o escolar – em nosso país é o de reproduzir e reforçar a ideologia capitalista, que, por sua vez, visa a fazer com que os valores, princípios e normas nela inseridos se apresentem como normais e desejáveis. Ou seja, a exploração e a dominação devem ser assumidas e consentidas por todos, exploradores e explorados e tida como forma absolutamente harmônica e natural.
É ainda dentro da “ótica” estrutural-funcionalista que ouvimos com freqüência a afirmação de que o esporte educa. Se indagarmos por que e o que tem de educativo no esporte, obteremos, quase que invariavelmente, a seguinte resposta: “Ora, o esporte educa porque ajuda a criança a conviver com a vitória e a derrota. Ensina a respeitar as regras do jogo (já que somos todos iguais perante a lei, devemos respeita-la, sem discuti-la). Ensina a vencer (no jogo e na vida) através do seu esforço pessoal (às vezes temos que, momentaneamente, nos aliarmos ao outro ou aos outros para atingir nossos objetivos – processo que os pedagogos desportivos chamam, ingenuamente, de cooperação ou companheirismo). Ensina a competir (já que a sociedade é competitiva ao extremo, então isto prepara para a vida). Desenvolve o respeito pela a autoridade, que é o árbitro ou o professor (chama-se isto de disciplina). Precisamos entender que as atitudes, normas e valores que o indivíduo assume através do processo de socialização no esporte, estão relacionados com os sistemas de significados e valores mais amplos, que se estendem para além da situação imediata do esporte.
Nessa medida, não é difícil numa rápida análise da resposta anteriormente mencionada, identificar elementos e valores da ideologia burguesa. No esporte, desenvolvem-se idéias ou valores que levam ao conformismo. Como é, por exemplo, o respeito incondicional às regras. Porque o comportamento não-conformado no esporte não leva a modificações no esporte, mas sim, à exclusão dele. No esporte coloca-se em destaque a idéia de que todos têm a oportunidade de vencer (vencer no esporte, e, igualmente, vencer na vida) através do esforço pessoal e individual, bastando, para isso, que se esforce e tenha talento. O que, em última análise justifica e explica as diferenças sociais, negando toda e qualquer determinação política, econômica e social. Esta crença de que no esporte desaparecem as desigualdades, colabora, também, para um aparente abrandamento das contradições e dos conflitos sociais.
Assim, como vimos, realmente o esporte educa. Mas educação aqui significa levar o indivíduo a internalizar valores e normas de comportamento, que lhe possibilitarão a se adaptar à sociedade capitalista. Em suma, é uma educação que leva ao acomodamento e, não, ao questionamento. Uma educação que ofusca, ou lança uma cortina de fumaça sobre as contradições da sociedade capitalista. Uma educação a serviço da classe dominante. Uma educação que não leva à formação do indivíduo consciente, crítico, sensível à realidade que o envolve.
Se analisarmos as aulas de educação física onde o esporte escolar é iniciado e desenvolvido, veremos que a idéia da aprendizagem das técnicas predomina. Isto porque para a competição, na verdade, é isto que conta. Permeia, portanto, a busca do desenvolvimento atlético, que é condição para a possibilidade de vitória nas competições. Com a exacerbação do espírito competitivo do esporte escolar, as técnicas esportivas e o próprio esporte foram elevados à condição de finalidade, ou seja, o esporte enquanto fim em si mesmo. Neste momento em que a idéia de competição (concorrência) toma conta do esporte escolar, o que é fomentado pela busca da vitória, às vezes a qualquer custo (lucro), e do que representa na nossa sociedade (vencer na vida). Já não existe mais espaço para a discussão sobre as normas do esporte, para a criação no esporte (adaptar o esporte à realidade social e cultural do grupo que faz esporte). Já não existe espaço para a preocupação com o desenvolvimento de valores relacionados com o coletivismo ou como ações que visem propriamente o bem-comum, priorizando, logicamente, o coletivo ao individual.
Já não existe espaço para a discussão de estratégias que permitam a participação de todos os alunos com as mesmas oportunidades nas aulas, porque o professor tem que preocupar-se unicamente com a melhoria e o aperfeiçoamento da técnica – elevando-a à categoria de fim. Preocupa-se com a imposição das regras internacionais que permitirão as condições objetivas de comparação de performances. Preocupa-se em desenvolver nos alunos e suas equipes o espírito de competição, como exigência fundamental para obter vitórias, em síntese, vencer na vida.
Como mencionamos anteriormente, as características que o esporte escolar apresenta não são geradas no seio do próprio esporte, e, sim, são os reflexos mediatizados da estrutura social em que ele se realiza, ou seja, da sociedade capitalista. Neste momento, cabe ou surge a grande indagação: em que medida e em até que ponto poderemos chegar a um quadro diferente? Enfim, a educação física/esporte escolar pode cumprir um papel diferente do de inculcar a ideologia burguesa?
Se assumíssemos aqui e agora a postura das teorias crítico-reprodutivas, afirmaríamos que o esporte nesta sociedade, invariavelmente contribuirá para a reprodução da estrutura social que temos. Embora reconhecendo as ferrenhas determinações sociais que sobre a educação física/esporte escolar recaem, acreditamos que, no seu interior, a contradição não foi suprimida, ela persiste. Ainda que os espaços a serem ocupados no sentido de uma ação transformadora sejam restritos, admitimos a sua existência. Neste sentido, ou seja, o de identificação destes espaços, cumpre inicialmente incluir a educação física/esporte escolar no contexto mais amplo da educação em si e enquanto prática social devidamente sistematizada. E, enquanto parte desta, analisar as possibilidades de contribuição para o processo de mudança social, condição básica para se concretizar uma sociedade melhor, justa e livre.
Na busca do esclarecimento do que a educação pode contribuir para transformar a sociedade, depara-se com duas posições antagônicas. De um lado a postura teórica que identifica a educação como redentora da sociedade (teorias crítico-reprodutivas). O que cabe, no entender de Saviani (1 984) não, a polarização entre as duas posturas, mas sim, a tentativa da superação por meio de uma teoria crítica da educação que possa identificar em que e como pode contribuir especificamente a educação no processo contínuo de transformações sociais.
Esta possível contribuição prende-se ao fato de que a escola não é um instrumento homogêneo da classe dominante, pois nela refletem-se as contradições existentes na sociedade. Reflete-se, portanto, o antagonismos entre os interesses burgueses e os proletários. Neste sentido, na escola existe um espaço, embora pequeno, o que Gadotti
(1 981) chama de guerrilha ideológica travada na escola. Cumpre, então, para desenvolver uma pedagogia desportiva com alguma força transformadora, tomar como ponto de partida um compromisso político com a classe oprimida e dominada que é a classe trabalhadora. Portanto, uma pedagogia que não se comprometa com os interesses burgueses, mas com os atributos e interesses revolucionários das classes populares.
Neste sentido, a tarefa que nos impõe parece ser a de desenvolver uma pedagogia desportiva que possibilite aos indivíduos pertencentes à classe dominada, aos oprimidos, o acesso a uma cultura desportiva desmistificada. Permitir ou possibilitar por meio desta pedagogia que estes indivíduos possam analisar criticamente o fenômeno esportivo, situá-lo e relacioná-lo com todo o contexto sócio-econômico-político e cultural.
Embora não seja o objetivo deste ensaio desenvolver uma proposta pedagógica numa perspectiva de classe, e, que tenha como fundamento o referido compromisso político com a classe dominada. Ousadamente, coloco algumas reflexões que apontam neste sentido:
Os professores de educação física, na ação, devem, efetivamente incorporar novas posturas frente às questões básicas aqui levantadas, tendo, como princípio, a análise crítica e o comprometimento ideológico do que fazem, do como fazem e dos valores que, consciente ou inconscientemente inculcam nos seus alunos dentro das normas e dos princípios técnicos do esporte que fazem os alunos aprender.
Precisam superar a visão positivista de que o movimento é, predominantemente, um comportamento motor. Entender que o movimento é humano e o homem é, fundamentalmente, um ser social. A motricidade não é mais biológica, e, sim, histórica e socialmente contextualizada. Desta forma, o movimento tem repercussão sobre todas as dimensões do ser humano. A conseqüência disso para a ação pedagógica é que nas aulas de educação física devemos objetivar muito mais do que a aptidão, a performance, a destreza, a capacidade motora, etc. Mas entender que o movimento que a pessoa realiza num jogo, tem repercussões diretas sobre todas as demais dimensões do seu comportamento. E mais ainda, que esta atividade veicula e faz a pessoa introjetar determinados valores e normas de comportamento, que irão, gradualmente, causar e responder por condicionantes e aspectos gerais ulteriores na sua vida.
Deverão entender que aquela idéia de que atuando sobre o físico já estamos automática e magicamente atuando sobre as demais dimensões precisa ser superada com a máxima urgência para que as questões aqui tratadas possam ser levadas efetivamente em consideração na ação pedagógica, por meio de esclarecimento de estratégias que objetivem conscientemente o desenvolvimento num determinado sentido, destes outros aspectos e dimensões dos educandos. O que atualmente acontece é que, embora os objetivos da educação física incorporem a dimensão psicossocial, as estratégias e atividades são totalmente norteadas pelos objetivos relacionados a resultados, à aptidão física, destrezas desportivas, aprendizagens motoras, esperando-se que estas, tenham repercussão sobre todas as outras demais dimensões que envolvem o aspecto educativo em seu teor mais amplo.
Precisam superar a visão de infância que enfatiza o processo de desenvolvimento da criança em si, e não, de uma criança situada social e historicamente. Fala-se da natureza da criança, e, isto é comprometido ideologicamente, na medida em que não se considera as diferenças produzidas pelas condições sociais, culturais, e, principalmente, econômicas destas crianças. Na sociedade capitalista, definida pelas relações que se estabelecem entre classes sociais antagônicas, a origem e o completo histórico familiar da criança estabelecem as condições gerais da sua infância, o que interfere diretamente nos seus processos de aprender, de viver e de estabelecer relações com o mundo no qual se insere.
Os professores de educação física devem entender que o que determinará o uso que indivíduo fará do movimento (na forma de esporte, de jogo, de trabalho manual ou artístico, de lazer, de defesa, de produção, de ataque aos outros e à sociedade), não é determinado, em última análise, pela condição física, habilidade desportiva, flexibilidade, etc. e, sim, pelos valores e normas de comportamento introjetados pela condição econômica e pela posição na estrutura de classes da sociedade.
Suplantar, urgentemente a falsa polarização entre diretividade e não-diretividade. Embora as pedagogias não-diretivas tenham contribuído para a denúncia do excessivo autoritarismo com que a educação bancária conduzia o processo educativo. Enquanto o oposto, ou seja, o não-diretivismo pode, quando realizado de forma irresponsável, nos levar a um espontaneísmo estéril que acaba tornando-se igualmente, comprometido com os valores burgueses que sustentam a sociedade capitalista. Ferreira (1 984), que citamos no início deste ensaio, de certa forma, cai nesta “armadilha”, quando coloca que as fontes de informações, normas e sanções, numa perspectiva de transformação devem provir dos interesses, necessidades e motivações do educando. Para tanto, segundo a autora, o educador deve ser o facilitador da conscientização, a partir de “motivações intrínsecas” dos indivíduos. Ora, as crianças não chegam vazias às aulas de educação física, elas já estão incorporadas ao processo de socialização burguesa e se nós quisermos a introjeção de normas e valores que se contrapõem aos burgueses, temos que dar uma direção real ao processo, pois os interesses e necessidades, etc. da criança já estão, de certa maneira “contaminados” pela vivência burguesa, consumista, capitalista, que elas trazem de suas vidas e do meio social em que se inserem. Assim, permitir ou facilitar, simplesmente que elas “desabrochem”, implica na reprodução, e não, na transformação. A postura de que o educador deve apenas facilitar o desenvolvimento das potencialidades da criança, tem como fundamento a idéia – igualmente burguesa – de que a criança possui uma “natureza” que é, fundamentalmente, boa, contextualizada política e economicamente para as suas necessidades reais e que bastaria permitir que isto se manifestasse, o que é muito mais do que ingênuo e determina na parte e no todo o fracasso de qualquer educação que se diz transformadora. Se assumirmos uma posição de classe social para a educação, os interesses e necessidades que devem ser levados em consideração, não só os dos indivíduos, e sim, os valores, objetivos e metas da classe social pela qual se trabalha, o que, de uma maneira geral, os professores de educação física têm feito em favor da burguesia, e, nem sempre, conseguem saber disto.
Um outro equívoco que precisa ser superado, é o que devemos, simplesmente, ignorar a cultura dominante, que, neste entendimento, não serve à classe dominada. Não podemos negar a cultura dominante, e sim, permitir que a classe dominada, em “dominando a cultura dominante” possa, então, construí-la a partir de suas necessidades e interesses. Em termos de educação física significa que não devemos negar o desporto como meio de se educar. Porque, segundo alguns pensadores da área, ele é essencialmente burguês, e existe, portanto, a necessidade de que a classe popular “domine” a cultura esportiva burguesa, mas que lhe seja simultaneamente permitido desmistificar criticamente esta mesma cultura desportiva.
O esporte é burguês, não porque esta é a sua essência, e, sim, por suas múltiplas determinações que lhe fornecem as características para tal. De maneira que, para termos um esporte não-burguês, precisamos, logicamente, atuar sobre suas determinações. E o educador representa o momento de ruptura em relação ao que é determinado socialmente, ao mesmo tempo que define uma conduta para levar o educador uma solidariedade consciente, vale dizer, ao sentido coletivo de sua formação. Procurando desenvolver um esporte em que o princípio do rendimento e da competição discriminatória (dos melhores e dos piores) , do esforço pessoal e individual (às vezes associado) para vencer o adversário, não seja o norteamento deste, desenvolvendo um esporte em que se busque insistentemente o desenvolvimento do coletivismo (ou seja, a priorização do coletivo ao individual, incluindo o “adversário/companheiro”), estaremos, na verdade, descaracterizando o esporte burguês, lançando e criando as bases de um novo esporte, que, por sua vez, somente se consolidará com a criação, também, de uma nova ordem social sem a qual não terá condições de sobreviver. Porque será, fatalmente, submetida à ordem burguesa.
Para que este novo esporte, que leve a uma socialização, é necessário que, os professores de educação física devam superar também a idéia, muito difundida, que nas aulas de educação física, não se deve falar, ou seja, não se deve sentar e discutir com os alunos o que se está fazendo, sob o argumento de que a aula de educação física deve ser “prática” – entenda-se, “adestrante”.
Estas são algumas reflexões sobre o processo da educação física escolar que, espero, contribuam para que possamos desenvolver uma proposta pedagógica que aponte e possa realmente colaborar com a transformação social. Que permita a concretização de uma nova ordem social, esta sim, mais justa, fraterna e livre.
Porém, de acordo como pensamos, acreditamos que a ação transformadora do professor de educação física não deve restringir-se a esta esfera, ou seja, aos muros da escola. A atuação prática deste profissional deve estender-se à sua entidade respectiva, seu sindicato. Não movido, é óbvio, por uma visão corporativista, e, sim, a partir de uma identificação social com a classe trabalhadora. O engajamento com a categoria de profissionais ligados à educação. Neste momento histórico, deve, ao nosso ver, visar a uma ação que permita e que se estabeleça uma política educacional, de que se concretize uma escola em nosso país, de acordo com as necessidades e interesses da classe trabalhadora. A atuação política do professor de educação física deve também alcançar a política partidária, para que, enquanto cidadão comum, assuma o papel de sujeito político da sociedade.
Finalizando, gostaríamos de lembrar as palavras do Professor Flrestan Fernandes, ditas no III Congresso Estadual de Educação, em São Paulo, segundo as quais: “O EDUCADOR QUE SE NEGA NO PLANO IDEOLÓGICO E POLÍTICO, SE NEGA TAMBÉM COMO EDUCADOR”.
­­­­_______________

Walter Bracht, autor deste texto é Doutor pela Universitat Oldenburg (1990). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Espírito Santo, onde coordena o Laboratório de Estudos da Ciência da Motricidade Humana. Foi presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (1991/93 e 1993/95). Tem experiência na área de Educação Física, atuando principalmente nos seguintes temas: educação fisica escolar, formação continuada de professores, educação e epistemologia.

Leituras Complementares Recomendadas:

CAVALCANTI, K. B. Esporte para todos: um discurso ideológico. São Paulo: Ibrasa, 1 984.
COSTA NETO, Antonio da. Paradigmas em educação no novo milênio. Goiânia: Editora Kelps, 2 003.
____________. Escolas & Hospícios – ensaio sobre a educação e a construção da loucura. Goiânia: Ed. Kelps, 2 009.
DEMO, Pedro. Sociologia: uma introdução crítica. São Paulo: Atlas, 1 983.
FERREIRA, Vera Lúcia M. Costa. Prática da educação física no 1° grau: modelo de reprodução ou perspectiva de transformação? São Paulo: Ibrasa, 1 984.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1 983.
____________. Escola, direita...volver!.... Boletim/Suplemento especial da Folha de São Paulo, n° 187, 17/08/80, p. 15.
GADOTTI, Moacir. Educação e poder: introdução à pedagogia do conflito. São Paulo: Cortez,
1 981.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial e seus referenciais políticos e ducativos. Rio de Janeiro: Zahar, 1 967.
MEDINA, João Paulo Subirá. A educação física cuida do corpo e...mente. Campinas: Editora Papirus, 1 983.
SANTIN, Silvino. Educação física: outros caminhos. Porto Alegre: EST, 1 990.
SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Ed. Cortez, 1 984
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