terça-feira, 25 de março de 2008

VIOLÊNCIA SIMBÓLICA X VIOLÊNCIA CONCRETA


Infelizmente, parece que os céus passaram a conspirar contra Goiânia, transformando-a na capital da violência. De todas as espécies, formas, tamanhos e pesos. Mal nos refizemos do susto da escola que separa os bem sucedidos dos menos inteligentes, numa lição singular de preconceito e retaliação, agora acordamos assustados com as monstruosidades da empresária goiana Sílvia Calabrese de Lima e sua empregada, cometidas contra crianças humildes, puras e absolutamente indefesas.

Muito bem retratou a Delegada Adriana Acorse, responsável pelo caso, quando a identificou como parte da matéria com que são produzidos os monstros. Não há como discordar. Uma mulher fria, má, horripilante, criminosa, que merece e deve ser castigada. E muito. O que ela fez não tem nome, nem explicação. Um crime terrível, hediondo, sem precedentes na nossa história, um fato que envergonha ainda mais a humanidade. E tanto a empresária, quanto sua comparsa precisam não só de apodrecerem na cadeia, como também serem submetidas às agrugruras cabíveis para este tipo de crime, com o mais terrível agravamento de tê-lo cometido contra crianças.

Não temos como falar nisto sem nos emocionar. Sem amargar muita dor e o sentimento de justiça que, sob nenhuma circustância pode deixar de ser feita com a urgência possível. Trata-se de justiça para ontem. E a empresária ainda tem o displante de declarar: - "Na minha cabeça, eu não estava torturando, mas educando as meninas." Simplesmente digna do mais profundo dos ascos. Sem palavras. Sem explicação.

Mas seria só dela que devemos cobrar com tanta veemência? Recordo-me agora de uma entrevista dada pelo cantor e compositor Chico Buarque, por ocasião do assassinato dos meninos da Candelária, quando ele dizia: - "Realmente fico pasmo com o espanto do povo brasileiro quanto ao brutal assassinato dos meninos de rua do Rio de Janeiro. Não que não seja um crime bárbaro, mas porque esquecemos do outro lado; o do crime processual que cometemos todos os dias contra estes mesmos meninos, quando lhes negamos comida, um pouso, um pouco de afeição, um afago, um sorriso. Ou quando discretamente fechamos o vidro dos nossos carros quando eles se aproximam de nós aí pelos semáforos da vida. Eu mesmo faço isso. A única diferença do crime que praticamos com o dos policiais é que o nosso é processual, lento, ocorre dentro de uma gradualidade que o torna normal, morno, cotidiano. É mais covarde e sinistro, não causa impacto e não levanta culpas, punições, nada. Mas é um crime igual. Digno do mesmo horror."

É que somos ainda uma sociedade profundamente atrasada e que anda lenta e pesadamente arrastando suas correntes, amarras e algemas. Ainda não evoluímos ao ponto de poder enxergar e valorizar processos. Somos uns brutos em nossa linha de pensamento. Somos bobinhos, e, ao mesmo tempo, maldosos demais. O que conta são os resultados, as ações, o concreto. O crime contra o corpo é considerado e punido, mas o cometido contra a alma, o espírito; não. Se uma pessoa tem febre ou dor, provavelmente é considerada doente, mas se é triste, deprimida, insatisfeita é tida como manhosa, esperta e não precisa, nem tem tratamento; melhor seria se tomasse vergonha na cara.

Longe de mim aliviar o crime animalesco cometido pela empresária Sílvia Calabrese, muito pelo contrário. Mas que esta lição de dor por que passamos sirva para nos ajudar a enxergar os crimes igualmente não-menores que cometemos todos os dias, quando por exemplo, sugigamos uma criança bruscamente, para que ela acorde no meio da madrugada para ir para uma escola feia, assistir aulas péssimas que só ensinam os processos de exploração, de enriquecimento do capital e os horrores da guerra, do tédio, do sofrimento. Quando desrespeitamos ou abandonamos nossos velhos. Traímos nossos pares, obrigamos os trabalhadores a cumprir funções ridículas, quando os expomos ao assedio moral e a todos os outros. Elegemos ladrões e bandidos, nos omitimos perante o óbvio.

Quando suportamos cinicamente a fome, a miséria das crianças do outro lado do mundo. Calamos perante o desespero de mulheres indefesas, a violência cometida contra o ser humano, os animais, a natureza, a vida. A maldade, a degradação, o martírio concreto e real dói muito. Faz sofrer, derrama sangue, é crime, faz com que lágrimas desçam grossas e salgadas pelas faces solitárias. Mas a tortura simbólica e psicológica, também. Resultados fazem sofrer tanto quanto processos. E no fundo da questão, no meio da verdade, quem não é monstro? Quem não é perigoso? Quem nunca cometeu um pequeno ou grande crime causando dor e sofrimento? Temos todos nossa culpa para amargar.

Claro que Sílvia Calabrese e sua comparsa precisam e muito ser punidas. Mas elas aí estão como um espelho frio e inerte em nossa frente. E pelo que me parece, pelos horrores do mundo, o fracasso da educação, da família e a dureza da vida, etc. Por enquanto acho muito difícil encontrar alguém que, de fato, possa atirar a primeira pedra.

Pensemos nisso. Façamos uma pausa para refletir. E por fim, partamos para agir e fazer a tão sonhada e necessária diferença que vai muito além da mordaça. Muito além do julgamento mas começa com o senso de justiça em relação a cada um de nós que certamente, somos um pouco Sílvia Calabrese, enquanto não é demasiado tarde para não merecermos o mesmo fim.


Antonio da Costa Neto

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom post.