segunda-feira, 10 de março de 2008

A MENINA DE LÁ: ELABORAÇÕES SOBRE O FANTASIAR FREUDIANO


A arte, o brincar, o delírio, o sonho, a fantasia. Esta, tem origem em uma experiência passada do sujeito. A criação da fantasia, no tempo presente, se dá a partir de uma impressão motivadora que tem a possibilidade de despertar um desejo no sujeito. Após esses dois tempos, a fantasia buscará criar, finalmente, uma situação para representar a realização desse desejo. Desta forma “o desejo utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do passado, um quadro do futuro” (Freud, 1908, p. 139).
Lacan, quando retoma o conceito freudiano de fantasia, destaca sua importante função como mecanismo de defesa, sendo que a maior motivação para o surgimento da fantasia são os desejos insatisfeitos. Desse modo Freud afirma que os sintomas “são a realização de uma fantasia inconsciente que serve à realização de um desejo”. Para Freud, a fantasia recalcada está na origem do sintoma e a condição para que uma fantasia reviva e se desenvolva sob a forma de sintoma é que ela passe de consciente para inconsciente, sem a obtenção de qualquer tipo de satisfação sexual ou sublimação.
Na análise, a fantasia possui um papel fundamental e serve “de axioma para interpretar o sintoma” (Ribettes). Ao interpretar o sintoma, o que se busca é uma reconstrução da fantasia, e para tanto “a fantasia é para ser tomada tão literalmente quanto possível” (Lacan, 1967), pois é na fantasia que o sintoma encontra seu material simbólico.
Ao falarmos de fantasia temos, com freqüência, um remetimento a algo que parece ser seu oposto: a realidade. Contudo Lacan diz que “o princípio de realidade é simplesmente um princípio de fantasia coletiva” e coloca, ainda, que “a fantasia é a ‘máscara da realidade’, a realidade é a ‘careta da fantasia’: ela é exatamente ‘comandada pela fantasia enquanto o sujeito só se realiza na sua própria divisão’” (Lacan, 1968).
A fantasia está presente em todas as estruturas psíquicas, sua apresentação e a possibilidade de realização desta é o ponto que marca sua distinção dentro de cada estrutura. No artigo intitulado “Escritores criativos e devaneios”, Freud compara a fantasia ao brincar dizendo que “ali onde a criança joga, o adulto fantasia”.
Guimarães Rosa escreve um conto cuja personagem Nhinhinha é “
a menina de lá”, “com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios” (Rosa, 1988, p.22). A característica mais marcante de Nhinhinha era que “o que ela queria, que ela falava, súbito acontecia”. (Rosa, 1988, p. 25). Nhinhinha era a menina de lá, e lá era o lugar de seu desejo. Ela não fazia, dos desejos ou necessidades dos outros, realidade; só de seus próprios desejos. E Nhinhinha desejava pamonhinha de goiaba, o arco-íris e até seu próprio caixãozinho cor-de-rosa com enfeites verdes brilhantes. Tudo se tornava realidade, assim como numa fantasia ou num sonho.
Nhinhinha parecia desejar somente seus próprios desejos, mas se via rodeada dos desejos dos outros, aos quais ela respondia: “Deixa… Deixa…”. Certa vez lhe pediram a cura de sua mãe que estava doente e, noutra, chuva quando da seca maior, e para ambos os desejos ela dizia: “Deixa… Deixa…”, e a coisa acontecia transpassada pelo desejo de Nhinhinha: abraçou e beijou sua mãe que sarou num minuto; quis o arco-íris e choveu.
O fantasiar de Nhinhinha e o fantasiar de um artista se encontram no ponto em que ambos só são valorizados quando se aproximam, mesmo que de lado, de um ‘fantasiar coletivo’, desejado e reconhecido pela civilização, pelo Outro. Ou seja, quando “transformam suas fantasias em verdades de um novo tipo, que são valorizadas pelos homens como reflexos preciosos da realidade” (Freud, 1911, p.242).
Quando Nhinhinha dizia “Deixa… Deixa…” ela agia como o artista que sabe “como dar forma a seus devaneios de modo tal que estes perdem aquilo que neles é excessivamente pessoal e que afasta as demais pessoas, possibilitando que os outros compartilhem do prazer obtido nesses devaneios” (Freud, 1917, p. 378). Ao fazer chover não era a chuva que Nhinhinha queria, era o arco-íris, mas para que ela pudesse ter o seu arco-íris, os demais compartilharam a chuva.
A fantasia como axioma possibilita que um sintoma seja interpretado, possibilita a existência da clínica. A forma de lidar com essas fantasias em análise vai depender da relação do sujeito com sua fantasia dentro de cada estrutura. Entretanto é necessário que o analista não coloque a teste de realidade tudo o que o paciente fala, pois, essas elaborações construídas ou recordadas em análise são “às vezes, indiscutivelmente falsas e, às vezes, por igual, certamente corretas, e na maior parte dos casos são situações compostas de verdades e de falsificação” (Freud, 1917, p. 369).
Nesse sentido, segundo Freud, a clínica tem o desafio de “igualar a realidade com a fantasia”, pois “as fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva” (Freud, 1917, p. 370).


Wesley Pires

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