sexta-feira, 21 de agosto de 2009

MEU TIO DO MATÃO - Uma singela homenagem ao meu amado Tio Zé Magno

Meu Tio Zé Magno morava no Matão com Tia Lica.
Matão que depois virou Ouro Verde, por causa do café.
Com suas ruas tortuosas, suas casas velhas
decoradas com pedras, imbés, árvores imensas.
Muitos coqueiros e pés de figo para os doces de Dona Deocleciana,
com aquele narigão e a cara vermelha,
debaixo da pituca grisalha, lisa e bem comportada.
Tio Zé Magno não montava, mas empurrava a bicicleta
do seu lado, como quem acompanha a namorada
e de vez enquando, fazia até um carinho no cangote dela.
A casa deles também era bonita e grande, com muitas janelas,
pés de hibiscos, bananeiras, abacateiros misturados com galinhas,
gansos, patos, marrecos, gatos e cachorros preguiçosos e dorminhocos.
Também, convivendo com Tia Lica, não podia ser diferente.
Ele era carpinteiro, como o santo.
Acho que foi por causa do nome.
Pena que Tia Lica não servia para ser Nossa Senhora,
era feia, velha, dizia-se cega e gostava de fazer umas ruindadezinhas.
Pequenas, mas ruindades.
Ela rangia os dentes e fechava a cara pra dizer as coisas
e aquilo me dava um medo danado.
Ela também não tinha filhos.
Contava que deu à luz as gêmeas: Cordai e Magali,
mas que as duas morreram ao nascer.
(Deus que me perdoe, mas ele sabe o que faz...)
Dizia que o parto foi feito às pressas, com garfo e faca de mesa.
E eu que não sabia o que era parto,
pensava que o médico queria comer as crianças
e ficava matutando nisso antes de dormir.
No quintal, a oficina cheia de serragem e pedaços de madeira.
Os pés de beladona muito carregados com aquela flor imensa
que parecia as mulheres que a gente vê nos livros de história
com as saias longas e cheias de babados coloridos.
Eu ficava olhando aquilo e inventando coisas.
De noite, com frio,
as mulheres colocavam seus xales e todos iam conversar na sala.
Minha vó falava das receitas e da doença de D. Rita, sua vizinha.
Meu Tio Zezinho – irmão caçula do meu pai mostrava
com orgulho os primeiros fios do bigode. Coitado...
Tia Lica aproveitava para exibir seu tesouro:
uma coleção com muitas toalhas de mesa de plástico, coloridas.
Tinha uma de crianças holandesas colhendo tulipas,
um verdadeiro espetáculo.
Uma de frutas, a coisa mais linda!
Outras de colunas gregas,
patos, peixes, flores, passarinhos...
Uma infinidade...
Depois ela dobrava uma a uma com todo cuidado, toda orgulhosa.
Minha tia Luiza se propunha a ajudar,
mas ela agradecia e afastava a sua mão para que ninguém as tocasse.
Tio Zé Magno raspava a garganta e ia para a cozinha,
passava um café daqueles torrados em casa
e o cheiro rescendia pela vizinhança.
Um cheiro bom de café de quem não tem pecado.
Tia Lica era meio manca e muito lenta.
Arrastava vagarosamente os pesados chinelos pelo quintal e pela casa,
passando as mãos no cabelo e reclamando das dificuldades da vida.
Mas para ela – que se fazia de cega para não fazer nada – era até muito fácil.
Tio Zé Magno cheio de paciência entregava nas suas mãos o pente,
as meias, o prato de comida que ele mesmo fazia
e a xícara grandona de café que ela sorvia gole a gole,
sentindo bem o gosto com os olhos fechados.
E, de vez em quando,
batia com força o fundo da xícara pesada na mesa,
como se fosse uma governadora.
Tio Zé do Matão cheirava rapé e dizia que era dos bons.
Fez-me um carrinho de madeira que era uma beleza,
com uns belesqüetes encima que
rodavam, rodavam, rodavam juntos e no mesmo ritmo.
E eu os pintei de várias cores com tinta de urucum,
de açafrão e corantes de papel de seda.
Ficou maravilhoso e eu brincava com aquilo o dia inteiro.
Era o que bastava para o meu coração ficar derramando de felicidade.
Tio Zé Magno deve ter virado Santo.
Pois além de agüentar as cavalices de Tia Lica
ele me deu de presente a maior alegria do mundo
e dar alegria pra criança é o princípio básico para a santificação...
...Eu gostei da toalha das crianças holandesas
e pedi à Tia Lica para deixá-la na mesa.
Ela titubeou, franziu a testa. rangeu os dentes,
mas me atendeu com um sorrisinho meio desconfiado.
Foi a única boa ação de Tia Lica que já se teve notícia.
E foi só por isso que ela ganhou o céu...


Antonio da Costa Neto
antoniocneto@terra.com.br

Um comentário:

Giulia disse...

Lindo, Antonio, muito saboroso! Também lembrei de uma toalha de plástico que minha mãe colocava na mesa da cozinha: era estampada com castelinhos, eu tinha a fantasia de entrar dentro deles e inventava todo tipo de aventuras. Acho que as pessoas se esquecem do que sentiam na infância, por isso tanta insensibilidade. Um abraço!