sábado, 23 de fevereiro de 2008

A MISÉRIA DO PENSAMENTO LINEAR



Em nossa cultura, acostumámo-nos demais à visão linear e imediata, à busca simplista do resultado pelo resultado das coisas. Criamos, por assim dizer, um “tapa” em nossos olhos que não nos permite enxergar dos lados, ver nuances, perceber detalhes, enfim; ter uma percepção no mínimo elástica dos elementos que compõem a nossa vida, o que constitui uma inconcebível tragédia, um atraso humano incomensurável, frente às novas exigências do mundo de hoje. É muito triste testemunhar e ter que viver este tipo de fenômeno sabendo que ele é uma tortura imensa, uma fonte inesgotável de sofrimento para a humanidade inteira.
É o chamado paradigma
cartesiano-newtoniano que se fundamenta e mantém o pensamento simplificado, linear, objetivo, inflexível, frio e absolutamente racional da maioria das pessoas, e, por conseguinte, das organizações, do governo, das famílias, da igreja, enfim, da sociedade. Porque é o pensamento que garante o produto, o lucro, o bem-estar dos comandos. Vemos sempre as coisas pelo mesmo viés com que nos foram impostas há alguns séculos, às vezes, milênios. Ou seja, pelo método, a forma que certamente irá beneficiar o branco, o macho e os detentores do capital em detrimento de todas as demais categorias de pessoas que compõem a maravilhosamente rica diversidade humana que ainda não é respeitada numa cultura como a nossa. Pelo contrário, se tentarmos defendê-la, seremos bravamente atacados pelos guardiões dos interesses contrários que são sabiamente ocultos em todas as sociedades e momentos históricos das civilizações, sendo que a absoluta maioria morre sem saber disto.
Para ser mais didático: recebi outro dia de presente, de uma amiga muito querida e especial uma coleção de pratos coloridos, pintados, verdadeiras obras de arte para a decoração das paredes da minha sala, o que, claro, deixou-me bastante feliz – já começa vir ao caso , pois o possível pensamento linear talvez ficasse mais feliz com pratos menos artísticos e que se prestassem para servir refeições, ou seja dentro do seu objetivo regular e conceitual.
Como não apresentavam um suporte, ou uma forma de prendê-los à parede tentei comprar algo para esta finalidade e não consegui. Imaginei a adaptação de alguma coisa e saí à procura de uma peça, um gancho, um pedaço de madeira, de couro, de ferro. Visitei casas de arte e artesanato, ferragistas, lojas de materiais para costuras e aviamentos, de artigos em geral, feiras, mercados populares, e nada.
O mais incrível é que, quanto mais eu tentava explicar o que e como eu queria, menos as pessoas pareciam entender. Sempre me vinham com as sugestões mais esdrúxulas e às vezes, apenas começavam a me escutar e já diziam logo que não tinha jeito, que eu fosse em outra loja, procurasse um serralheiro, etc. Houve até quem me propusesse a desistir, a esquecer os pratos na gaveta ou que passasse a utilizá-los nas refeições de domingo, já que eram tão bonitos, numa autêntica expressão de deboche.
Quase desesperado, exausto, suado da cabeça aos pés, desisti finalmente – pois sempre que queremos mudar, acabam nos vencendo pelo cansaço. Fui pra casa e com um bom pedaço de couro de um velho cinto encontrado, uma boa cola e imaginação, resolvi o problema. Hoje os pratos me enchem os olhos, embelezam minha sala, minha vida e me deixa bem mais feliz.
Mas o que me indigna é a absoluta dificuldade das pessoas de perceber o novo, o alternativo, de inventar soluções novas e criativas. Nesta minha procura vi que muitos me olhavam como louco, com um rizinho de esguelha no canto da boca que por pouco não me levou a me sentir um ridículo e perdido no meio daquela confusão armada a serviço de nada.
E num tempo em que a dinâmica do mundo exige que abandonemos a objetividade pura e simples para adotarmos uma percepção não só subjetiva, mas intersubjetiva dos fatos e fenômenos tão complexos do dia a dia, ainda persistimos numa visão cartesiana que responde como responsável por grande parte das dores e do sofrimento do ser humano no planeta.
Ainda detemos uma realidade machista, com predomínio do gênero masculino no poder, na tomada das decisões e na condução dos destinos do mundo. Até na nossa linguagem o macho domina: se nos referirmos, por exemplo a duas mulheres e a um homem, diremos gramaticalmente, eles, no masculino, o que significa poder, mando, frente, liderança.
O que realmente manda, o que conta, são os valores convencionais, a norma, a tradição, a cultura arraigada do “sempre foi assim e tem que ser assim; do aprimorar, aperfeiçoar, reciclar o que temos e não mudar, pois a mudança pode significar a perda dos privilégios historicamente acumulados por certas categorias humanas.
Por isso, ainda fazemos os concursos públicos com base nas provas objetivas e na identificação de conhecimentos enlatados em série, que se estuda para a prova e se esquece no dia seguinte, perpetuando aí um serviço público, por exemplo, exercido por pessoas ideologicamente descomprometidas com os processos e preocupadas com o tecnicismo, os relatórios, a burocracia.
Nossas escolas, do jardim da infância ao mais elevado nível acadêmico das mais importantes universidades ainda estão unicamente preocupadas em ensinar pela indução desassociada da dedução, instruindo friamente para a garantia da perpetuação do modelo cartesiano que circula viciosamente há séculos e que já deu mais do que suficientes provas da sua estrutura ultrapassada e caduca.
Precisamos suprimir a objetividade, associar os processos aos resultados, valorizar o simples, enxergar o belo, inventar formas novas de fazer as coisas. Saber buscar alternativas, valorizar as críticas e percepções do outro, do diferente, pois é daí que sairão as soluções para os graves problemas do mundo e da vida. A cura para as mais graves doenças certamente virão dos quintais, das beiras das estradas de terras, das raízes, das ervas. De conversas descompromissadas das comadres nas varandas, nos jardins, nas hortas, e de brincadeiras de crianças é que surgirão métodos e técnicas para os complexos problemas do trânsito, do aquecimento global, da poluição. De acidentes de percurso que sairão novos instrumentos para a garantia de preservação da espécie e assim por diante.
A ordem é, portanto, relaxar, valorizar o insight, o processo, o novo e deixar acontecer. Como no velho e bom princípio bíblico: “Olhai os lírios do campo e olhai as aves do céu. Eles não trabalham, não fiam e nem ceifam, porém são vestidos de um luxo maior do que a corte do mais poderoso dos reis e alimentadas todos os dias, saudável, deliciosa e fartamente . Tudo é igualmente importante, nada é mais fundamental do que qualquer coisa. E, na primavera da vida, os galhos que nascem são natural, harmônica e esteticamente, uns longos, uns curtos; uns retos, uns tortos. O universo é belo porque é rico, complexo e infinitamente diversificado. E nele, e, logicamente, nada é mais fundamental do que qualquer coisa.
Pense e pratique isso. Comece agora! Comece ontem! Pois hoje já pode ser demaiado tarde.


Antonio da Costa Neto

2 comentários:

Zanco disse...

Na verdade, hoje o termo "pensamento linear", como o termo "mente pequena" é o que as pessoas usam para classificar as pessoas que tem opinião diferente da sua.

Zanco disse...

O termo "pensamento linear" é usado pejorativamente por pessoas, geralmente de "esquerda", para classificar pessoas que têm opiniões diferentes das suas. É o mesmo que dizer que os partidos de esquerda são "sic" progressistas, quando comparados aos partidos de direita.