quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O RELICÁRIO DE LALÁ - Sônia Ferreira

O relicário de Lalá

DIÁRIO DA MANHÃ
SONIA FERREIRA


A casa do Tio Deco e da Tia Dadinha era assim: um telhado envelhecido, irradiando luz, meio ao verde lodo do tempo e  picumãs, escurecidas por um inesquecível fogão caipira. Cheirava, por dentro e por fora, fartura na mesa, nas panelas e nos varais. Gamelas de quitandas, caixetas de marmelada caseira, variedade de doces de calda, ternuradas pelas mãos das filhas, de sobrinhas e da rainha do lar; cuias e baldes de jabuticabas fresquinhas e um cacho de bananas pintadinhas, uma fruteira derramando marmelos, saídos do quintal da sede da Fazenda São Sebastião; voltas e voltas de linguiças, lombo defumado de porco, dependuras em um arame, pertinho da tábua de queijos e requeijões, amarrada ao teto por cordas de bacalhau, contemplavam as labaredas do fogão e os olhos de cobiça; um enorme tacho de pamonhas quentinhas também salivava os visitantes. Tia Dadinha tinha mãos de artista culinária no doce e no sal e tocava bandolim. Era loira, de olhos azuis, polida e bonita. Era Felix de Souza.
Tio Deco era Correia Bittencourt. Tinha amizade com o escritor Carmo Bernardes. Ambos, amigos de uma boa prosa e de uma aventureira caçada. Em uma das paredes da casa, a espingarda, a capanga de apetrechos de caça, a buzina e um chifre pequeno pra beber água, uma bainha com facão amolado. Seu pito de palha, com fumo de rolo, aceso, compunha o cenário de histórias de paca, veado e outros bichos do mato, saídas de uma cadeira larga com assento de couro. Tio Deco era gordo, baixo, moreno, simpático e sensível. Moleque, Guerreiro e Tarefa eram nomes de seus cachorros perdigueiros. Tio Deco apreciava as serenatas de Lalá e seus amigos do Grupo de Cultura Popular João de Barro, sobrinhos adotivos.
Lalá é uma das filhas do casal. Como eu, encantada com suas raízes. Seus irmãos, habitantes de seu coração, referência contínua em diversos capítulos de história, fazem parte do sagrado acervo: Uda, Tiana, Cotinha, Terezinha, Tonhão, Marizinha, Cidoca e Chiquinho. Lalá amava contar e preservar histórias de seus pais e de sua família. Em sua chácara, que herdou o nome da Fazenda matriz “São Sebastião”, estão peças que nunca deixarão de respeitar a ternura e o carinho que ela dedicava a seus ancestrais: tulhas, gamelas (fabricadas por Tio Deco), banquetas, bancões; oratório (feito por seu avô materno “Totó”), um tacho grande e um armário, que narram fascinantes contos vividos por Tia Dadinha. Retratos nas paredes. A essas peças e às respectivas histórias, reveladas pela emoção de Lalá e pela verdade de cada uma, dei o nome de RELICÁRIO DE LALÁ. Isto aconteceu, há sete anos. Numa grandiosa festa, coordenada pela Lalá e pelo Cairo, com a participação de todo o Grupo João de Barro, a Chácara São Sebastião se transformou numa mágica e sagrada caixa de música. Os pingos de violas e violões, a melodia dos teclados, o ritmo da percussão e a harmonia dos amigos batizaram o RELICÁRIO DA LALÁ. Todos nós, os do presente, os do passado e os do futuro fomos consagrados. E eu, com muita honra, era a homenageada. Essas histórias têm o tempero significativo da presença de seu esposo Luiz, de suas filhas Ana Luiza e Luciana, de seus netos Luiz Guilherme, Arthur e Izabela.
Perfumam o RELICÁRIO DE LALÁ a essência do perdão, do sorriso, da alegria de viver e de conviver, plantada por seus pais e mestres, cultivada pelos continuadores da história. Seus tesouros, esposo, filhas, genro e netos, seus amigos de prosa, lealdade e canção, somos conchas verdadeiras, onde preservaremos as pérolas de suas histórias, suas lembranças, seus gestos, seu sorriso, em harmonia contínua com o universo, com as pessoas e com Deus.
Valho-me de um fragmento do poema Relicário, de Mírian Warttusch, como brinde à essência de Lalá, com uma carinhosa revelação:
"Implorei ao tempo que não apagasse,
que deixasse ficar comigo, em relicário,
o seu meigo sorriso, o brilho dos seus olhos,
pois tudo eu guardaria, como num sacrário..."
Sonia Ferreira

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