quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O FRACASSO SOCIALISTA DE UM ANJO CHAMADO MANDELA


Nas últimas duas décadas da vida, Nelson Mandela foi festejado como modelo de como libertar um país do jugo colonial sem sucumbir à tentação do poder ditatorial e sem postura anticapitalista. Em resumo, Mandela não foi Robert Mugabe, e a África do Sul permaneceu democracia multipartidária com imprensa livre e vibrante economia bem integrada no mercado global e imune a horríveis experimentos socialistas. Agora, com a morte dele, sua estatura de sábio santificado parece confirmada para toda a eternidade: há filmes sobre ele (com Morgan Freeman no papel de Mandela; o mesmo Freeman, aliás, que, noutro filme, encarnou Deus em pessoa). Rock stars e líderes religiosos, esportistas e políticos, de Bill Clinton a Fidel Castro, todos dedicados a beatificar Mandela. E não para nos desfazer desta figura grandiosa, mas fica no ar a pergunta: - O que teria mudado, de fato e para melhor, na vida do povo  sul africano frente às suas posturas grandiosas e suas conquistas muito mais que memoráreis?
Mas será essa a história completa? Dois fatos são, sistematicamente, apagados nessa visão celebratória. Na África do Sul, a maioria pobre continua a viver praticamente como vivia nos tempos do apartheid, e a ‘conquista’ de direitos civis e políticos é contrabalançada por violência, insegurança e crime crescentes. A única mudança é que onde havia só a velha classe governante branca há agora também a nova elite negra. Que acaba por assumir os mesmos papéis, e, consequentemente, como os mesmos erros. Em segundo lugar, as pessoas já quase nem lembram que o velho Congresso Nacional Africano não prometera só o fim do apartheid; também prometeu mais justiça social e, até, um tipo de socialismo. Esse CNA muito mais radical do passado está sendo gradualmente varrido da lembrança. Não surpreende que a fúria outra vez esteja crescendo entre os sul-africanos pretos e pobres. Aí, não teria o majestoso Nelson Mandela se ajustado a princípios não tão transparentes assim, até por ingenuidade ou indução feita por um poder iníquo e imposto pela elite branca?
A África do Sul, quanto a isso, é só a mesma versão repetida da esquerda contemporânea. Um líder ou partido é eleito com entusiasmo universal prometendo “um novo mundo” – mas então, mais cedo ou mais tarde, tropeçam no dilema chave: quem se atreve a tocar nos mecanismos capitalistas? Ou prevalecerá a decisão de “jogar o jogo”? Se alguém perturba esse mecanismo, é rapidamente “punido” com perturbações de mercado, caos econômico e o resto todo. Por isso parece tão simples criticar Mandela por ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid. Mas ele chegou realmente a ter alguma escolha? Andar na direção do socialismo seria possibilidade real? Se não tivesse feito o que fez seria cantado hoje em prosa e verso, até mesmo, e, principalmente, pelo seu povo, os mais pobres, os negros, os que mais sofrem?
É fácil ridicularizar Ayn Rand, mas há um grão de verdade no famoso “hino ao dinheiro” do seu romance A revolta de Atlas: “Até que e a não ser que você descubra que o dinheiro é a raiz de todo bem, você pede por sua própria destruição. Quando o dinheiro deixa de ser o meio pelo qual os homens lidam uns com os outros, tornam-se os homens ferramentas de outros homens. Sangue, chicotes e armas de fogo ou dólares. Faça sua escolha – não há outra.” Não disse Marx algo semelhante em sua conhecida fórmula de como, no universo da mercadoria, “as relações entre pessoas assumem o disfarce de relações entre coisas”? (O capital, p.147)
Na economia de mercado, acontece de relações entre pessoas aparecerem sob disfarces que os dois lados reconhecem como liberdade e igualdade: a dominação já não é diretamente exercida e deixa de ser visível como tal. O que é problemático é a premissa subjacente de Rand: de que a única escolha é entre relações diretas ou indiretas de dominação e exploração, com qualquer outra alternativa dispensada como utópica. No entanto, deve-se ter em mente que o momento de verdade da (se não por isso, ridiculamente ideológica) alegação de Rand: a grande lição do socialismo de estado foi efetivamente a de que uma abolição direta da propriedade privada e da troca regulada pelo mercado carente de formas concretas de regulação social do processo de produção necessariamente ressuscita relações diretas de servidão e dominação. Se apenas extinguirmos o mercado (inclusive a exploração do mercado), sem substituí-lo por uma forma própria de organização comunista da produção e da troca, a dominação volta como uma vingança, e com a exploração direta pelo mercado.
A regra geral é que, quando começa uma revolta contra um regime opressor semidemocrático, como aconteceu no Oriente Médio em 2011, é fácil mobilizar grandes multidões com slogans que só se podem descrever como “formadores de massa”: pela democracia, contra a corrupção, por exemplo. Mas adiante gradualmente vamos nos deparando com escolhas mais difíceis: quando nossa revolta é bem sucedida no alcance de seu objetivo direto, passamos a nos dar conta de que o que realmente nos atormentava (a falta de liberdade pessoal, a humilhação, a corrupção das autoridades, a falta de perspectiva de, algum dia, chegar a ter uma vida decente) perdura sob nova roupagem. A ideologia dominante mobiliza aqui todo o seu arsenal para nos impedir de chegar a essa conclusão radical. Começam a nos dizer que a liberdade democrática implica responsabilidades; que a liberdade democrática tem seu preço; que ainda não estamos plenamente amadurecidos, se esperamos demais da democracia. Seria possível construí-la, ainda que simbolicamente, sem as ligações com o clã Castro, o arremate dos ícones de produção e consumo capitalista imposto pelo esporte competitivo tão difundido pelo próprio NM, só para exemplificar?  Há como fazer críticas? Como analisar avanços, retrocessos, sucessos e fracassos de tais dimensões e conquistas humanas e sociais?
Num plano diretamente mais político, a política externa dos EUA elaborou detalhada estratégia para controle de danos: basta converter o levante popular em restrições capitalistas-parlamentares palatáveis. Isso, precisamente, foi feito com sucesso na África do Sul, depois do fim do regime de apartheid; foi feito nas Filipinas depois da queda de Marcos; foi feito na Indonésia depois da queda de Suharto e foi feito também em outros lugares. Nessa precisa conjuntura, as políticas radicais de emancipação enfrentam o seu maior desafio: como fazer avançar as coisas depois de acabado o primeiro estágio de entusiasmo, como dar o passo seguinte sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária”, em resumo: como avançar além de Mandela, sem se converter num Mugabe.
Se quisermos permanecer fiéis ao legado de Mandela, temos de deixar de lado as lágrimas de crocodilo das celebrações e nos focar em todas as promessas não cumpridas, infladas sob sua liderança e por causa dela. Eternizando o mito, e, com ele, a dor, o caos, a fome, a miséria a marginalização, principalmente, dos negros e dos pobres, como sempre. Os ajustes, os comandos feitos, as alienações perpetuadas, as lições de humildade - talvez nem tão positivas assim, como parecem. Sem tais estratégias nada é feito, tal o nosso atraso e a nossa visão draconiana do mundo e das suas relações, seu poder e seu mando. Assim se verá facilmente que, apesar de sua indiscutível grandeza política e moral, Mandela, no fim da vida, era também um velho triste, frustrado, e, de certa forma, sozinho e bem consciente de que seu triunfo político e sua consagração como herói universal não passavam de máscara para esconder uma derrota muito mais que amarga. A glória universal de Mandela é também prova de que ele não perturbou a ordem global do poder. E muito dos que hoje se enlutam com sua morte, nada mais fazem do que uma mera representação quase que teatral frente à hipocrisia necessária à manutenção de todas as maneiras de status, inclusive, as mais grotescas.

Seu discurso sobre educação sempre foi minimamente unilateral, sem tocar na sua qualidade política, para não ferir a poderes e dogmas perversos do consumismo e da opressão dos trabalhadores, do povo, dos oprimidos. Associar-se ao esporte competitivo como forma de busca da alegria do povo pobre, humilde e marginalizado associada às conquistas do socialismo que defendia é algo que não se deve entender como uma atitude  mais sábia. Tinha conhecimento de que também baixou a cabeça e serviu a conchavos inúteis e antagônicos à sua própria luta histórica e sangrenta. O que, de nenhuma maneira ofusca o seu brilho, a sua importância ou mancha a sua memória. Mandela sempre será grandioso, acima de muitos. Mas as verdades precisam ser ditas. Ainda que doam.
                     (Publicado originalmente no New York Times, em      9/11/2013 -    tradução ampliada por Antonio da Costa Neto )
***

Nenhum comentário: