sábado, 3 de dezembro de 2011

POEMAS PARA OS ANJOS DA TERRA, MEU NOVO LIVRO: SÓ UM APERITIVO







PREFÁCIO


Antonio, um excelente fazedor de versos


A cidade de Bonfim, atual Silvânia, um dos primeiros arraiais do ciclo do ouro, partícipe da interiorização civilizatória ocidental, nas futuras terras goianas, quando de mala e cuia, Anhanguera, Filho, marchou em seu segundo retorno (1726) para aqui permanecer e, definitivamente, misturar-se à terra tão sulcada por ele, em busca do seu precioso metal amarelo, a 19 de setembro de 1740, é o berço paridor do escritor Antonio da Costa Neto e de tantos outros grandes nomes da literatura brasileira.


Até então, cerca de alguns meses, confesso que não sabia da existência cultural de Antonio da Costa Neto, ele, amigo de alguns dos meus amigos de produção literária, ainda não havíamos nos encontrado. O bom culpado, disso tudo, foi um poema que escrevi e publiquei, em meu livro Licores da carne, de título: o descascador de amêndoas, que ainda não sei como foi habitar as páginas do blog do Antonio: mudandoparadigmas.blogspot.com, emoldurado por ele, com referências elogiosas ao meu texto. A chegada do meu e-mail na caixa eletrônica do Antonio, agradecendo a sua generosa crítica, aos meus versos, trouxe-me em resposta, o convite para prefaciar seu livro: Poemas para os Anjos da Terra, prontamente aceito por mim, pedindo-lhe a compreensão de certo tempo para essa feitura para que antes pudesse cumprir uma série de compromissos literários previamente agendados.


Depois de uns dois meses, iniciei a leitura dos seus versos. A poesia ao contrário da prosa, a sua resposta de leitura, é muito imediata. Foi, assim, numa leitura de quem toma o elevador e desce no último andar dessa construção poética que se deu o meu embarque gustativo e estético desse lavrador de poemas silvaniense, radicado em Brasília. Feliz, porque não dizer, eufórico, encontrei um poeta dotado de extrema habilidade para trabalhar com muita personalidade as impressões da sua vivência infantil, adolescente e, agora, adultamente interpretada, acolhidas com uma ternura tão própria e confessa sem meias-palavras, portadoras uma essência poética ricamente bem-trabalhada, incorporando palavras.


Suas lembranças sensoriais afagam bichos, plantas, comidas e gente em todos os seus trejeitos – muito em especial a sua origem afro-brasileira (minha também) – acomodando seus parentes, num terno mosaico familiar. Antonio da Costa Neto, muito privilegiado, viveu com farta intensidade seus primitivos ciclos carnais. Eles tão próximos aos meus e que durante a leitura dos seus poemas, suas tias, seus avós, não eram somente seus, eram meus avós, minhas tias, madrinhas, professoras que ele buscou em sua existência para universalizar poeticamente com perfeita realização.


Não é pelo fato de sermos filhos de uma mesma geração, de uma mesma origem continental, de cidades próximas, ele, de Silvânia, e eu, da minha Pires do Rio, que me emocionei ao ler seus versos. Nunca misturei minhas emoções pessoais para criar ou inventar estética poética, dar qualidade literária ao que não existe. Antonio é, sim, um excelente fazedor de versos.


O educador por profissão, Antonio da Costa Neto é a grande revelação poética dos meus encontros cotidianos com a poesia neste 2011. Foi um grande presente que recebi dele, ao ser convidado para apresentar este seu livro. Sem dúvida, também, um presente enriquecedor da produção poética do Planalto Central à poesia brasileira.



Ubirajara Galli

Membro da Academia Goiana de Letras


e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás




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Meu Reino

O quintal da casa
da minha vó era grande.
Quase uma fazenda.
Junto às cercas de arame farpado
o capim ficava grande
e emoldurava a paisagem lá fora: casinhas, morros, postes, serras...
O tanque rodeado de moças e conversas,
mãos espumadas, batedor surrado
e varal tão cheio quanto o cansaço dos corpos.

Minha tia reclamava: - “Gente, estou mais morta do que viva”.

E ia se deitar mais cedo.

No outro dia acordava se espreguiçando e dizendo

que dormiu como uma pedra. Ai, que saudade...
Laranjeiras, cachos de banana, roseiras, margaridas, pés de pimenta.
Chuchu trepado no pé de manga, lá encima.

Abacateiro, flor de manacá espalhando aquele cheiro bom de esperança.
Galinhas, jabuticabas, moitas de bananeiras fresquinhas e úmidas,

onde a galinhada preferia fazer seus ninhos.
Gato malhado e tocas de passarinhos. E a gente contando os ovos,
vigiando os filhotes nascerem.
Era só alegria ajudar dona sabiá deixando comidas
nos galhos das árvores e ficar espiando escondido.
Eu fazia isso e achava que já tinha ganhado o céu.
Não precisava mais rezar e nem fazer penitências.

Tinha preguiça de ir à missa
e fugia para ir espiar o Rio Vermelho nas manhãs de domingo.
Minha mãe desconfiava da minha cor morena

porque dentro da igreja não tinha sol.
Eu me fazia de desentendido e ia levando.
Corria para a casa da minha vó

e ganhava a barraquinha de despejo lá no fundo do quintal.
Me deliciava com o cheiro da lenha guardada há anos e dos bichos,
dos sacos de arroz e feijão empilhados. Queijos, rapaduras, muita farinha.
Dos pés de milho e dos tempos das pamonhas: de doce, de sal, de canela,
de pimenta com linguiça, frita, assada, cozida.
Minha vó ria suave e enrolava o cabelo no alto da cabeça,

prendendo com um pente preto com pedrinhas brilhantes.
Ela escondia a chave da despensa na alça da combinação
pra gente não roubar seus doces, bolos e biscoitos.
E antes de dormir; segurava nas mãos de Nossa Senhora da Guia,
pedia bênçãos e fazia o sinal da cruz rezando em voz alta

(que era pra santa escutar).
Apagava a luz, se deitava e ficava pensando:

nos filhos, nas dívidas, nos problemas...
De vez em quando dava um suspiro tão fundo que doía na alma.
A gente escutava passos na rua e ficava imaginando de quem poderia ser.
Às vezes ouvíamos vozes que davam para ser reconhecidas.
Eu era bem feliz porque tinha minha vó,

uma fortaleza a me proteger, me dar moedas.
Contar estórias como as da moça que se encantou,

do bezerrinho medroso e do peixe que sabia falar.
Tinha silêncio pra dormir, o escurinho do quarto e festa no coração.

E, amanhã, certamente, aquele quintal inteiro seria o meu Reino...
Eu, majestade, seria feliz entre cercas de arame, galinhas, gatos,
passarinhos, flores de abóbora e roupas branquinhas, cheirosas, lavadas
por minhas tias bonitas e ancudas.
Minha vó trançando os cabelos, calada, com os grampos na boca
e rezando em silêncio, cochichando, bem baixinho.

Enquanto eu achava que era para a gente ficar
rico e o meu pai poder ir pescar todos os dias, o dia todo,

que era o que ele mais queria na vida.
Eu, menino, brincava no quintal e nem pensava em outra coisa na vida.
E era muito mais feliz do que os reis da Suécia, da Espanha, da Inglaterra...
Mas muito mais mesmo.
(Ainda mais agora que eu sei que ser rei de verdade não tem aquela graça toda).
Bom mesmo era reinar no quintal-fazenda de minha vó.

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Meu Padrinho Nenem da Costa

Tinha voz de melado de cana.

Alma de melado de cana.

Jeito de melado de cana.

Era mole pra beber que era uma coisa,

qualquer dose de cachaça com arnica

que tomava como remédio,

preparado por madrinha Martinha,

(que Deus a tenha num trono dourado)

meu Padrinho já caía de bêbado...

E virava menino, repetindo o tempo todo:

- “ Eu quero minha espingarda infantil.

Eu quero minha espingarda infantil!...”

O que me dava um misto de dó e de graça.

Meu padrinho morreu novo

e tinha no peito um coração

de torrão de açúcar

(que não chegou pra quem quis).

Era...um doce de pessoa.

Quando o doce é cobiçado demais

acaba cedo.

Vai embora logo.

Igual ao meu padrinho

o que desapareceu no horizonte

depois do ponto azul do infinito.

Onde ele parou, virou pra mim, sorriu macio,

colocou o chapéu, me deu adeus.

Pegou sua cabaça d’água e amarrou calmamente na cintura.

Jogou nas costas a enxada, o enxadão, a foice.

E foi plantar feijão e milho,

cortar cana, fazer melado, açúcar, rapadura, manuê

para adoçar o paraíso celestial, a casa de Deus.

E nunca mais voltou.

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Conversinha Boa com Inácio Lôbo

- Eu já prantei o argudão, num prantei?

Eu já panhei, num panhei?

Eu já discarocei, num discarocei?

Eu já cardei, num cardei?

Eu já fiei, num fiei?

Eu já meiei, num meiei?

Eu já tingi, num tingi?

Eu já nuvelei, num nuvelei?

- Então, agora eu vô “pu tiá!”

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Tabela de Saliença de D. Antonia Bacada

Toda a minha geração de meninos

“perdeu a virgindade”

na casa de D. Antonia Bacada,

bem ali, ao lado do Cemitério.

(espero que me perdoe por usar aqui o apelido que odiava).

A gente entrava, sorrateiramente, pé-anti-pé, pelos fundos,

morrendo de medo de ser visto

e dava logo de cara com um cartaz na parede da cozinha,

que dizia, com uma letra feia e muitos erros:

TABELA DE SALIENÇA

Isso.........10 cruzêro.

Aquilo.....5.

Aquilo Outro...7,50.

Serviço Completo....15.

Etc. Etc. Etc.

Era o que ela cobrava pra brincar

com as suas meninas.

Cada um de nós tinha a sua preferida.

Eu, por exemplo, gostava muito da Luzia Fogoió,

porque além de loura, ela era fofinha,

gorda, repolhuda e muito farturenta.

Assim, as coisas ficavam muito mais fáceis

e eu, coitado, me gabando de bam-bam-bam.

Outros ficavam loucos pela Alzirona, desconfio,

até, que pelos mesmos motivos.

Tinha gente que eu nem posso dizer o nome

que adorava a Dercília e ficava horas na fila

esperando a moça terminar o serviço,

tomar o seu banho tcheco e se refazer

para a nova jornada que ia pela noite a dentro.

O que nos obrigava a fazer contas e mais contas

pois todo o mundo queria o tal “serviço completo”...

E o dinheiro era curto para tanta despesa.

À noite era melhor, pois a gente soprava a lamparina,

entregava o dinheiro – bem abaixo do combinado –

e saia correndo pela rua a fora.

Este era o enigma, porque nós, os homens,

tínhamos tanta facilidade para entender a matemática nas aulas.

A gente tirava notão e passava tranqüilo.

É, D. Antonia Bacada deveria ser homenageada como educadora

e o seu nome ser colocado em alguma escola da cidade.

Ensinava matemática com teoria e prática.

Bem melhor do que muita professora formada

e a gente aprendia que era uma beleza.



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