domingo, 27 de fevereiro de 2011

ODE À TIA ANTONIA LUCENA


Tia Antonia Lucena, linda.

Parecia uma flôr do campo,

orvalhada, num eterno amanhecer

de verão, cheio de sol.

Sempre com seu xale alaranjado, forte como seus

pulmões, dizia ela.

Que aguentavam quase um século da

fumaça do seu cachimbo, e nem reclamavam.

Repetia às gargalhadas, balançando suas inúmeras pulseiras

e desembaralhando os colares: de ouro,

de cordões de tons diferentes, de muitas cores, de contas,

só não, as de lágrimas, pois estas nunca tiveram lugar em sua

bem vivida existência.

Mostrava os anéis em todos os dedos, grandes, robustos

e sorria escancarado, repetindo que se estivesse

sem batom ou sem brincos, estaria nua:

c-o-m-p-l-e-t-a-m-e-n-t-e...

Sussurrava, piscando um dos olhos.

Saias fartas e longas, arrastando aos seus pés,

pois alguém tinha que fazer isto,

uma vez que seus homens,

das centenas que viu nus, já não o faziam,

pra seu quase desespero.

E Tia Antonia - conhecedora dos homens - permaneceu solteira.

Mas que nada, era mais casada que todas.

E com quase todos. E assim levava sua vida de glórias

entre seus jardins, livros, discos pesados de nivil

que ouvia todos os dias,

até alta madrugada e fazia comentários suspirando.

Ela namorava as capas,

alisava as fotos e os repousava junto ao peito, de olhos fechados.

Seus óculos grossos (que ela tirava para ver de perto) seus bordados

eram seus amigos como os cachorros, os gatos.

E tinham de ser muitos, senão não tinha graça.

Gostava de colocar neles nomes exóticos, sensuais.

Alguns eu nem posso escrever aqui. E pra não contrariar ninguém,

faço a apologia de Tia Antonia e não vou citar nenhum, é melhor.

Vista boa, afinada. Enfiava sua agulha em segundos, bordava,cantava,

assoviava e espantava pintos e galinhas com sua bengala vistosa

que envernizava quase todas as semanas, com verniz importado,

que ela fazia questão de buscar nos correios, durante anos.

Carregando aquela lata pesada pela rua, parando e contando histórias.

Tia Antonia era uma figura: culta, lida e corrida,

afirmava, enquanto limpava

o canto da boca para secar o veneno:

- "Eu pinto, bordo, acabo cedo e ainda caso e batizo.

Eu sou fogo, menina!"

(Se Tia Antonia vivesse hoje diriam que era um travesti operado

e ela não iria se importar nem um pouco. Apenas ocupava parte do

seu tempo imaginando como seria bom se fosse verdade).

O que mais fazia era seus bordados e leituras.

Íntima de Montesquieu , de Spinosa.

Mas claro, de longe, Maquiavel era o seu preferido.

Mulher pra gostar da vida.

Dizia que tudo o que acontecia, acontecia e pronto.

Não valeria a pena ficar reclamando.

E na morte repentina do seu único filho, ela

passou o velorio assoviando, com o terço nas mãos e repetindo:

acho muito ruim, mas também muito bom.

Muito bom porque aconteceu.

E se aconteceu é porque tinha de acontecer.

Como Schopenhauer, a quem também lia,

era bem próxima do inevitável.

E assim foi com muitos sofrimentos. Gostava de doenças na família,

porque tinha a chance de fazer o bem.

E de ficar doente, porque recebia carinho e atenção.

Tia Antonia, que não era nem minha tia, mas acabou sendo,

como de toda a meninada da rua.

É claro, que tudo que não queria era morrer.

Mas acabou fazendo a apologia de Pollyana com o jogo do contente.

Até certo ponto, lutou, fez tudo pra que a morte não chegasse.

E quando se lembrou de sua filosofia e entregou os pontos.

Mas como não podia deixar de ser, chamou à beira do seu leito

a sobrinha de quem mais gostava e a fez jurar que escreveria

no seu epitáfio, o que ditou letra por letra,

deixando apenas o espaço para a data:

- "São Luiz do Maranhão...

desde este dia, aqui jaz Antonia Lucena.

Muito a contra-gosto!"

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(Antonio da Costa Neto)










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