quarta-feira, 30 de setembro de 2009




"Quando eu morrer

voltarei

para buscar

os instantes que

não vivi

junto do mar."



(Sophia de Mello Breyner)

sábado, 26 de setembro de 2009

MAIS UMA VEZ O ESPORTE. ECA!....


Aliás, fico me perguntando sempre qual é o grande sentido e a grande importância do esporte neste país? Ele parece ser mais importante do que a comida, a moradia, a educação, a saúde, o lazer. Outro dia, fiz uma pesquisa de observação que significou 24 horas de televisão ligada ininterruptamente. Neste tempo, entre notícias do esporte, partida de futebol, comentários sobre o assunto, chamadas de urgência sobre venda e preço de atleta (como historicamente se vendiam e compravam escravos, considerados como peças). Teve até um senhor que usou a expressão: "o valor da peça", referindo-se ao passe de um jogador brasileiro para um time europeu. Ao todo, das 24 horas, exatamente 10h e 46 minutos foi sobre esporte, o que é um absurdo, vez que vivemos numa realidade multiplamente complexa (o que envolve tantos outros segmentos igualmente importantes e que não podem ser tratados neste espço da mídia televisiva).

E, de mais a mais, ganhando ou perdendo no esporte, não muda nada de concreto na condição social e política, no real concreto da qualidade de vida das pessoas. Então, o porque desta palhaçada toda? Não quero dizer que o esporte não tenha a sua importância, seus pontos positivos e que não seja algo necessário, mas minha tese é de que, principalmente, o esporte tem esta importância porque:
a) facilita e muito o desprender do cidadão comum dos problemas reais, pois a cabala do esporte é fortíssima;

b) a presença, por exemplo, numa boa partida de futebol, com o indivíduo envolvido até a alma, dando murros e ponta-pés, chingando a mãe do juiz e os atletas adversários, tira de qualquer cidadão toda a capacidade crítica para brigar, de fato para o que lhe interessa, para o que lhe é de direito; com o que a trupe maldita do papai Lula se refastela toda;

c) quando sei que um atleta ganha milhões, e ele é meu ídolo, me envolvo tanto inconscientemente com isso que não ligo mais para o meu salário mínimo ou a minha situação de desempregado, pois mais forte que tudo, é a bandeira do time e a paixão que se estilhaça no meu peito. E o mesmo acontece com as mansões cinematográficas que eles compram e que são "nossas", com as viagens fantásticas que eles fazem e que nós, pobres coitados "vamos juntos";

d) a lição de subserviência e de disciplina animalesca que passam para todos, na medida em que o jogador tem que cumprir as normas que lhe foram impostas, sem questionar. Tem que ser passivo e subserviente para ter sucesso no jogo, o que pra mim é o pior de tudo.

Claro que os atletas privilegiados, os profissinais do esporte não vêm isto e não concordarão jamais, pois é com isto que conquistam status, fortuna, bem-estar e jamais vão dar a mão à palmatória em relação ao brutal crime que cometem durante suas vidas inteiras.

Eu próprio, trabalhei por 12 anos em Faculdades de Educação Física e sei o que aquilo significa em termos de lavagem cerebral. Acho mesmo que já passou da hora dos Galvões Buenos, dos Imperadores, Ronaldos, Romários...enfim, de toda a corja que se utiliza do esporte para matar, aos poucos a alma do povo, de darem um bom tiro de taurus 48 na própria cabeça.

Afinal, seria maravilhoso que seguissem o melhor exemplo que Ayrton Sena já pode dar a este país. Não é atôa, por exemplo, que o viaduto com o seu nome em Brasília, tenha, estrategicamente, uma curva bem no meio. Com esta "Tamburello" inconsciente, o fatídico governo do DF homenageia o povo que se livrou desta praga ....tão forte...

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

NO DESCOMEÇO ERA O VERBO - Por: Manoel de Barros




No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá,
Onde a criança diz:eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo,
ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
De fazer nascimentos
-O verbo tem que pegar delírio.




Depois de ter entrado para rã,
para árvore,
para pedra- meu avô começou a dar germínios
Queria ter filhos com uma árvore.
Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir
vender na cidade.
Meu avô ampliava a solidão.
No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos doquintal :
Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro.
Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato.
Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou.
Aí a nossa mãe deu entidade pessoal ao dia.
Ela deu ser ao dia,
e Ele envelheceu como um homem envelhece.
Talvez fosse a maneira
Que a mãe encontrou para aumentar
as pessoas daquele lugar que era lacuna de gente.




Pela forma que o dia era parado de poste
Os homens passavam as horas sentados na
Porta da VendaDe Seo Mané Quinhentos Réis
que tinha esse nome porque todas as coisas que vendia
custavam o seu preço e mais quinhentos réis.
Seria qualquer coisa como a Caixa Dois dos Prefeitos.
O mato era atrás da Venda e servia também para a gente desocupar
Quinem as emas solteiras que despejavam correndo.
No arruado havia nove ranchos.
Araras cruzavam por cima dos ranchos
conversando em ararês.
Ninguém de nós sabia conversar em ararês.
Os maridos que não ficavam de prosa na portada Venda
Iam plantar mandioca
Ou fazer filhos nas patroas
A vida era bem largada.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009



O mais conhecido autor moçambicano de todos os tempos transita com graça pela poesia e pela prosa, mostrando a força de uma condição que denomina “estar” escritor. Muito arraigado às suas origens, consegue transmitir a leitores das mais diversas nações o vocabulário, a cultura, as angústias e as alegrias de Moçambique, tornando universal um dos países mais pobres do planeta. Não é apenas a incrível qualidade da literatura inventada pelo escritor, nascido em 1955 e batizado António Emílio Leite Couto, que surpreende: sua aparência, o nome adotado e a profissão também.

Mia é filho de imigrantes portugueses que foram residir em Beira e, nas inúmeras palestras que ministra mundo afora, o público muitas vezes aguarda uma senhora negra com vestes multicoloridas. Eis que surge um homem branco, traços europeus, óculos, terno. Sua inventividade é de longa data: aos 3 anos de idade, em função da paixão por gatos, criou para si mesmo o apelido que até hoje usa.

Poeta - é assim que ele se define - continua trabalhando no campo da biologia, área em que se formou. De qualquer forma, coleciona vários prêmios literários internacionais, inclusive um no Brasil: a obra O outro pé da sereia ganhou, em 2007, o 5º Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura como melhor romance publicado em língua portuguesa. Aos 14 anos, publicou os primeiros poemas, Notícias da Beira. Desde então, as letras vão saindo magicamente de seus dedos. Ele trafega por um tipo de realismo fantástico que remete a Gabriel García Márquez, mas com raízes muito bem plantadas na realidade de sua região.

Outras vezes, faz lembrar Guimarães Rosa, pela criação incansável de neologismos. Brincações, desconsigo, choraminhices, noitidão, impossível não entender o que querem significar e maravilhoso perceber como é possível poetizar a prosa com palavras inventadas. Aliás, detalhe curioso: inúmeras vezes elas vêm à sua cabeça, e ele as anota em pedacinhos de papel que vai amontoando nos bolsos das roupas. Em algum momento, se encaixam nas frases sempre bem-lapidadas de sua literatura. Outra importante característica do autor de Venenos de Deus, remédios do Diabo é seu engajamento político.

Lutou contra Portugal pela independência de sua pátria (ocorrida há pouco mais de três décadas) atuando na política e no ensino, sem pegar em armas: a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) só permitia isso à população negra. Em nosso país, às suas obras, a editora acrescenta um glossário ao final para que se compreendam os vocábulos típicos do português de lá, que tornam seus livros ainda mais interessantes. O fio das missangas, acaba de ser lançado por aqui, trazendo 29 contos entrelaçados como miçangas ao redor de um fio, revelando muito das falas do homem de sua terra e demonstrando mais uma vez a proximidade e admiração declarada deste moçambicano pelo universo do autor de Grande sertão: veredas.

Mia se revela sempre em produção. Nas respostas dadas nesta entrevista, realizada por e-mail antes de ele sair a campo isolado para uma pesquisa biológica, utilizou sua forma peculiar de usar a língua, mantida nas linhas a seguir, também sem adotar as regras do novo acordo ortográfico. Miriam Sanger Dizem que você mesmo criou o curioso apelido Mia. Sim, por causa da minha relação com os gatos. Contam meus pais que eu dormia com os bichos como se fosse um deles. Certa vez, proclamei que queria ser chamado de Mia. Meus pais aceitaram e talvez tenha sido esse meu primeiro acto de ficção. Tinha, talvez, uns 3 anos de idade. Como sua família foi para Moçambique? Meus pais emigraram do Norte de Portugal no início da década de 1950.

Fixaram-se numa pequena cidade no centro do país, Beira, e ali tiveram seus três filhos. Eu sou o do meio. Meu pai migrou por razões políticas – na altura, Portugal vivia uma ditadura fascista, e ele foi objeto de perseguição política. Como é seu cotidiano? Sou biólogo de profissão e grande parte do meu tempo é passado em trabalho de campo, na floresta e na savana. No mais, sou casado com Patrícia, que é médica. Tenho três filhos: Madyo, Luciana e Rita. Os dois primeiros já saíram de casa. E vivo em Maputo, capital de Moçambique.

Sua primeira obra foi escrita aos 14 anos. Qual foi a repercussão? Ela marca minha decisão de viver o mundo por via da poesia, a necessidade de poetizar a vida. Não é apenas um livro, é uma declaração de fé numa crença que não tem nome, senão o desejo de estar disponível para ser encantado. Você acompanha a literatura brasileira, poderia citar autores preferidos daqui e também de seu continente? Acompanho mal a nova literatura brasileira, mas posso citar como meus preferidos Adélia Prado, Manoel de Barros, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector.

Na literatura africana, há vários nomes expoentes, como o nigeriano Amos Tutuola, os angolanos José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira e, já bem conhecido, o sul-africano J. M. Coetzee. Também em Moçambique temos grandes autores, como os poetas José Craveirinha e Rui Knopfli. Mundo afora, é preciso citar Anton Tchekov, Juan Rulfo e Gabriel García Márquez. Brasil e Moçambique são países colonizados por portugueses, que falam a língua portuguesa, com uma grande mistura de raças e povos. Qual a nossa afinidade mais marcante?

Existe uma afinidade de que pouco se fala e que é a religiosidade, um sentimento de crença muito marcado pelos sistemas religiosos africanos. E também o modo como esses sistemas se permeabilizaram e deixaram-se mesclar com a religiosidade católica. Essa marca é para mim mais funda e duradoura que a língua. O Brasil não passou pela experiência de guerra pela independência, ao contrário de Moçambique. Quais marcas permanecem nos moçambicanos? Há coisas que creio que resultaram positivamente pelo facto dos moçambicanos terem resolvido dentro de si sua relação com o ex-colonizador.

Houve uma luta armada que criou terrenos bem distintos de afirmação e nos libertam da necessidade de confronto com o outro. Teria sido diferente se um filho de portugueses tivesse, em solo moçambicano, proclamado o grito do Ipiranga. Existe alguma obra sua que você considere mais especial do que as demais e, uma vez que transita entre diversos gêneros, há alguma com a qual tem mais afinidade? Meu gênero é a poesia. Sou um poeta que escreve histórias e que se realiza na prosa.

Meu romance Terra sonâmbula foi redigido no final da guerra civil no meu país e sua gestação marcou-me profundamente. Eu acreditava que não seria possível escrever um livro que falasse da guerra enquanto ela estivesse decorrendo – apenas depois, no momento da paz, quando os fantasmas da violência estivessem adormecidos. Mas sucedeu que fui visitado, noite após noite, pela urgência da escrita. Eu estava, sem o perceber, a aplacar os demônios interiores que a violência da guerra haviam despertado em mim.

Qual dos gêneros é mais difícil? O infantil, sem dúvida. Porque não sei pensar esse gênero e me custa acreditar que se escreve para crianças. A idéia de que elas pedem uma escrita simplificada é uma tentação fácil, mas profundamente arrogante. Nessa escrita, percebemos que não sabemos falar com a infância que ainda vive em nós. Tanto o Brasil quanto Moçambique vivem situações tristes em diversos aspectos, ainda mais no que diz respeito a infância e educação. Você acredita que haja alguma forma de a literatura ajudar na transformação da realidade nacional? Acredito que a literatura pode ajudar a manter vivo o desejo de inventar outra história para uma nação e outra utopia como saída.

Não que eu tenha ilusão sobre o poder da literatura, mas a escrita literária pode, em certos momentos, ter funções de terapia coletiva. Regresso ao caso moçambicano do período pós-guerra. O que aconteceu foi uma mesma espécie de amnésia coletiva. Ninguém se recorda de nada do que aconteceu. Foram 16 anos de guerra fratricida, 1 milhão de mortos, mas ninguém quer, hoje, relembrar este tempo de cinzas. Trata-se de uma estratégia de não despertar fantasmas mal resolvidos. No entanto, é triste não termos mais acesso a esse tempo, perdermos parte de nossa história recente nos faz sermos menos nós mesmos. É aqui que a literatura pode ter função resgatadora. Pode permitir acesso, fora de sentimentos de culpa e de dedos acusatórios. Como é seu processo criativo? Há alguma preparação especial para iniciar uma obra? Não tenho ritual. No fundo, tenho para mim que a escrita não pode ser resumida ao seu lado visível, que é quando nos sentamos com caneta e papel ou com computador.
Houve algum evento ou pessoa que despertou sua vocação literária? Meu pai é poeta. Mais do que isso: vivíamos a poesia, mais do que líamos. Recordo as vezes em que, devido a uma certa desconfiança, mandavam-me fazer os deveres de casa no local de trabalho dele, que era um armazém obscuro dos Caminhos de Ferro, na pequena cidade colonial da Beira. Doía-me muito ver meu pai, um poeta, ali, naquele recanto poeirento e penumbroso. Mas, ali mesmo, naquele local sombrio, eu aprendi uma das mais importantes lições de toda minha vida.

Meu pai, para meu espanto, se apressava muito que eu desse despacho nos deveres. Demoras?, perguntava ele, inquieto. Mal eu pousava a caneta, ele me pegava pela mão e me levava para a luz, para o descampado. Caminhávamos por entre os trilhos, os carris ferrugentos, e ele passeava por ali garimpeirando pelo chão, à cata de quê?

O que procurava ele entre sujidades e poeiras? Procurava pedrinhas coloridas, dessas que tombavam dos vagões, e trazia na concha das mãos como se tivessem vida e carecessem de aquecimento. Lá fora estrondeava a guerra colonial e o mundo se rasgava. Minha mãe recebia em casa aqueles lixos brilhentos e muito ralhava com ele. As pedras voavam pela janela, meu pai se internava pelo corredor num desmaio de penumbra. Lembro-me de ter interpelado depois de uma dessas zangas maternas. “Pai, tu também és atrasado mental?” Eu hoje agradeço ao meu pai me ter ofertado essa cumplicidade, esse outro pai que nascia dele quando se tornava cúmplice, me esgueirava dos meus deveres e saltava para a desobediência. Meu pai se convertia em outro menino, e eu ainda hoje encontro inspiração nessa habilidade e vou pela linha férrea a descobrir encanto e encantamento na busca desses brilhos do chão. Você pretende, ou gostaria de, um dia viver apenas de literatura? Mesmo que pudesse, e talvez agora eu já possa, não queria viver exclusivamente da escrita.

É vital para mim ter esta dispersão de atividades, poder fazer coisas tão distintas e manter janelas abertas para a ampla diversidade da vida. Eu “estou” escritor, duvido que “seja” escritor. Não dá para não falar do acordo ortográfico. Qual é sua opinião? Não sou contra, mas também não milito a favor. Creio que em Portugal houve reações nervosas e crispadas porque, devido a um falso debate, alguns acreditaram estar a prescindir do patrimônio fundador da sua própria identidade a favor do Brasil.

Eu acredito que se deve discutir os verdadeiros factores que nos afastam – e os principais factores do nosso afastamento não são de ordem lingüística. São de natureza estratégica, das opções políticas dos nossos governos. Os livros brasileiros são lidos sem nenhuma dificuldade em Moçambique, e os moçambicanos são lidos no Brasil sem que a grafia diferente perturbe. Como se deu o convite para compor a letra do hino de seu país, junto com outros autores?

Samora Machel, o primeiro presidente de Moçambique, pensou que era preciso mudar a letra de um hino que tinha sido concebido em período da revolução socialista e marxista. Um novo que servisse, como ele disse, de lençol e sombra para todos os moçambicanos. Ele convocou à maneira da guerrilha um grupo de poetas e músicos, fechou-os numa casa e disse: vocês têm uma semana para produzir um novo hino nacional.

Nós produzimos diversas alternativas. Anos mais tarde, quando se introduziu o pluripartidarismo no país, alguém se lembrou de que havia esse manancial de propostas. E assumimos como criação colectiva aquele que é o novo hino nacional. Você está em produção literária no momento? Estou sempre em produção, mesmo que eu não tenha consciência clara disso. Mas, no caso, estou há três anos laborando num novo romance. Mas realmente, e sem que isso seja uma pose de afectação, não sinto que posso levantar o véu dessa história.

Por fim, cultura é... Um modo de sermos quando todo o resto nos nega.

sábado, 5 de setembro de 2009

A METAFÍSICA DA MORTE - Antonio da Costa Neto


"Pior que a morte é desviver." (Fátima Guedes)


A morte sempre foi em nossa cultura e quase todas as demais um monstro. Uma coisa de fato, horrível, o fruto do maior do medo, do frio, do escuro, do silêncio mórbido que causa os mais profundos arrepios. É o mais absoluto dos terrores: tudo, menos a morte, infelizmente, adiável, mas inevitável a cada um de nós.Todos - ou quase todos - o que mais temos é o medo de morrer. Nascemos e morremos. E pior ainda, já nascemos morrendo, o que é motivo de tristeza e sofrimento para muita gente. Sabemos de sua fenomenologia: um dia alguém vai morrer. Mas para o nosso sossego, a vida continua, dando-nos a ilusão de sermos imortais, o que, em última análise mantêm-nos vivos. Restando-nos a "certeza" de que não será agora, que ainda irá demorar anos e anos. E assim, sempre.
O medo de morrer, o pavor da primeira noite na sepultura, para onde iremos, inevitavelmente e por toda uma eternidade. Restando aí a tão medonha sensação dos crematórios. São, talvez, os maiores temores que a humanidade enfrenta e que a eterna evolução da tecnologia jamais irá resolver. Mesmo que se fale em clones, em elixir da vida eterna, nas belezas do pós-túmulo. Nada alivia esta dor, este sofrimento, este medo. Assim, a própria inexistência de solução - pois inevitavelmente todos morreremos - já mostra que isso não constitui um problema. A sábia energia do universo já deu prova de que todos estes têm solução. Se não tem solução, como é o caso, é porque não é problema e pronto.
Na verdade, o que aí constitui o mal é a nossa infinita ignorância. A humanidade continua muito burra, muito boba, coitadinha. E este brutal e infantil medo da morte é uma das provas mais evidentes da nossa pequenez e insignificância frente a grandiosidade do universo e do mundo. Nossa visão arraigada na matéria, numa sociedade de consumo profundamente atrasada - especialmente a nossa, que se fundamenta no mais rudimentar dos modelos capitalistas - e que se esqueceu de evoluir, há milênios. Uma legião de pessoas que dorme o sono pesado, intranquilo da dinâmica do produto e não, do processo. Do ter que ter à revelia de tudo mais, que passa a vida desvivendo e que, de repente, morre sem saber.
Ficamos e permanecemos assim, verdadeiros escravos do poder e do dinheiro. E o desligar da matéria, o ter que morrer, que abandonar este envólucro carnal que tanto nos encomoda: engorda, envelhece, fica doente, feio, gasta-se tanto com ele, transparece-nos como a maior das tristezas, insuportável para muitos. Que, talvez, mandá-lo embora possa ser um prêmio, uma maravilha sem precendentes. Por que nunca paramos para pensar nisso?
A bem da filosófica verdade, morrer é um grande prêmio, uma bênção a qualquer tempo. Morremos de medo de morrer porque somos uns patetas, um bobos, teleguiados por quem precisa de nossas vidas para nos explorar mais e mais a cada dia. Na minha terra existe um dito popular, uma brincadeira,que acaba sendo uma sábia afirmação pra valer. Dizem-se assim: "Morrer deve ser muito bom. Você já viu alguém que morre voltar para cá? - Então, deve ser bom demais ir para o lado de lá..."
Há apenas um mal em tudo isso: a morte, assim como tudo na vida deve acompanhar um processo natural. Morre-se quando se tem que morrer e pronto. Na velhice, na juventude, na infância. Por doença, um grave acidente, ou apenas e simplesmente, morrer por morrer e acabou. Enfim, tudo é vida e motivo de festa. O ter que morrer significa que fomos escolhidos para nascer um dia. Fomos e somos tão importantes que coube-nos uma missão única e especial e se morremos é porque a cumprimos.
Mas, contudo, a morte deve vir naturalmente como vem o dia depois da noite, a fome depois de horas sem comer, o cansaço depois do trabalho árduo, o gozo depois do bom sexo e assim por diante. Apenas ela não pode ser provocada, buscada, convidada antes da hora.
Nem pensar em suicídios, penas de morte, abortos, eutanázias e o que o valham. Se a pessoa está em coma há anos e vive vegetativamente, é porque tem que ser assim. Faz parte dos designos do universo. Ela já se acomodou, já se encontra confortável no seu canto, cumprindo sua missão, passiva, mas aos nossos olhos de pequenez inexplicável. Se está consciente, ela pensa e o seu pensamento é uma energia rarefeita orientada pelas trilhas da sabedoria maior que sabe muito bem, precisa dela e por isso mesmo, a constituiu desta forma. Aparentemente sofrível, mas pode,no seu âmago ser o maior dos prazeres. E quem somos nós para distinguirmos uma coisa da outra?
Se a pessoa antes deste estado pedia a eutanázia, como geralmente o alegam seus parentes e responsáveis - que na verdade o que querem, consciente ou inconscientemente é se verem livres do trambolho que carregam. Com certeza a esta altura ela já mudou de opinião e pediria para que não a matassem. É como nós quando vivemos certas experiências novas que se fazem acompanhar de uma força, uma nova adrenalina que nos alivia a dor que nos é dada. Sendo, portanto, um processo natural toda morte é um grande prêmio e tem que vir quando tiver que vir, de forma autônoma, natural e livre, como uma brisa, um sonho bom, uma primavera enluarada.
Uma enorme felicidade. Morrer, mesmo fazendo uma comparação materialista baixíssima, é como, por exemplo, conseguir-se um ótimo emprego para quem está sequioso por ele. Passar num ótimo concurso, ganhar na loteria, fazer um ótimo casamento. Enfim, morrer é também uma felicidade.
Mas o ediondo mundo capitalista não nos permite pensar e nem agir assim. Pois, colocaríamos em planos distintos as matérias, os produtos, os bens tocáveis, tangíveis e mensuráveis, traduzindo-se em dinheiro, em bens, em poder. Estas coisas pobres e miseráveis em torno das quais, já no terceiro milênio de evolução da humanidade, as instituições, as escolas, as crenças. as culturas, os governos, as famílias, enfim, a vida, ainda sub-existem em função delas.
Não devemos nos entristecer quando alguém nosso morre. Ao contrário, como orgulhosamente viviam muitas e muitas das comunidades milenares, morte é festa. É um grande motivo de alegria. Entristecemo-nos com a morte do outro porque somos fracos e covardes. Porque aquela pessoa vai-nos fazer falta. Não vai mais nos amar, lavar nossas roupas, cozinhar para nós, nos fazer companhia, dar-nos conselhos. Rir, dançar, cantar conosco. Ficamos tristes porque somos sádicos e egoístas. Pensamos em nós que não merecemos ainda o presente belíssimo da morte: um ramalhete de Deus. E este, só o entrega aos seres especiais, lindos, completos, iluminados, prontos e que merecem este presente. E, com ele, serem felizes sorrindo supremamente e por toda uma eternidade universal e divina.
Resta-nos esperar. E fazer tudo para que venha quando for o seu tempo certo. Que seja belo e delicado assim como as ações que desempenhamos enquanto ficamos por aqui: "gemendo e chorando neste vale de lágrimas". As pessoas morrem como vivem. E devemos fazer de tudo para morrermos como tenhamos vivido: belamente, fortemente, impetuosamente... Como os animais, por exemplo, que geralmente morrem sadios, dormindo e sonhando com bondades e delícias. Sentindo os aromas magníficos da energia do mundo e da vida, da qual a morte é parte importantíssima, inseperável e fundamental para que co-existam. Nascemos e vivemos para morrer. E morrer bem significa o cumprimento do que viemos fazer aqui. Alegremo-nos, pois. Afinal, a morte existe para que morramos de tanto viver, complementando assim a merecida felicidade para os que são bons. Ou pelo menos, desejos de sê-lo.