EDUCAÇÃO E AS HERANÇAS
DA DITADURA MILITAR:
disciplina, ordem unida, chamada, uniforme,
reprovação, calendário de provas. Onde é que vamos parar?
(*) Antonio da Costa
Neto
Se fizermos um mergulho no período da Ditadura Militar no
Brasil, ou seja, a partir do golpe de 1 964 até
a retomada do poder político em 1985 iremos encontrar toda uma concepção
absolutamente antidemocrática, com
notória concentração do poder de decidir e das consequências disto. Sendo,
justamente, na educação que ela produz os maiores estragos inferindo nos seus
métodos, legislação, filosofia e propostas. Isto, por motivos óbvios, pois é
por meio dela - a educação - que se intensificam as formas de comando, de
controle do comportamento humano, favorecendo e deixando como se fosse natural as maneiras escusas do exercício do poder hegemônico e explorador. Visando, assim, cumprir o objetivo confesso
de se ampliar a produção econômica e as chances de atuação das pessoas no
mercado, o que se acelerava no pós-revolução industrial. Mas, na verdade, sabemos que
não era bem esta a sua meta maior.
É, em contrapartida, o que justifica, por exemplo, a expansão quantitativa das
universidades neste período. Bem como o acirramento das ações de controle e
punição de professores, alunos e adeptos de qualquer visão contrária, por razão
de uma luta ideológica o que se acostumou chamar de “verdadeira caça às bruxas”,
pelo regime militar então em vigor. Ou seja, nada poderia ser dito, feito ou,
muito menos conclamado, se não atendesse aos interesses, regimes e domínios que
governavam o país com pulso de aço. Tendo, como era a crença na época, a caneta em uma das mãos e a chibata na outra. Assim, impondo seus regimes disciplinares e ordens
que tinham que ser cumpridas a qualquer custo, inclusive da violência, da opressão,
quando não, com a própria vida. O que chegou a acontecer com muitos por meio das guerrilhas e de outros atributos do comando, do poder, e, por que não dizer, do horror político, humano e social.
Sem dúvidas, uma das mais importantes faces da imposição
educacional da ditadura foi, justamente, a criação de padrões estanques de
educação e de escola, sem reconhecer, e, muito menos, considerar as diferenças
sociais, econômicas e culturais bastante diversas num país de dimensões
continentais como o nosso. Tudo cronometrado e regido pela força da imposição dogmática de normas de conduta cobrada das instituições educacionais e dos educadores,
com o que podemos simbolizar as leis, a força dos decretos
num tempo de pareceres oficiais como: ...”revogam-se todas as disposições em
contrário; publique-se; cumpra-se!” – Um verdadeiro espetáculo de tirania!
Conta-se que um dos mais fortes ministros da
Educação e Cultura no Brasil deste período, Pedro Aleixo, em seu gabinete, olhava no relógio
e afirmava com toda convicção e pompa: - “... A esta hora, todos os alunos da
quarta série estão estudando a lição de geografia que trata da divisão regional
do Brasil”. O que o enchia de orgulho e alegria, como brinde à forma de
comandar o poder, a disciplina e suas regras militarmente inflexíveis. Ou seja, ter a população nas mãos
e fazer dela o que quisesse, ainda que
com objetivos escusos e condenáveis, mas, jamais, admitidos, nos discursos
humanistas e, evidentemente, muito mais do que falsos em todas as suas extensões.
Educadores foram perseguidos, e por medo e outras
circunstâncias, permaneceram e parece que permanecerão calados para sempre, fazendo um acordo de silêncio e omissão. O
Decreto-Lei 477 e a ordem do então ministro da justiça de que “professores
deveriam ensinar os estudantes a estudar e não fazer baderna”, finalizando com a Lei
de Diretrizes e Bases 5692/71 que institui a educação como intenção profissional
– leia-se escravagista – parecem perpetuar os aspectos e efeitos ditatoriais
perversos mesmo que tudo já tenha sido oficialmente terminado.
Ainda hoje, os princípios altamente antidemocráticos e o
militarismo consentido saíram do real para o simbólico em nossas escolas. E continuam aí ditando as regras e aguardando os resultados. Mantendo, portanto, um efeito psicológico fortíssimo. Sendo mais do que
eficientes na sua função de transformar
as escolas em autênticas fábricas de trabalhadores e consumidores em potencial
submissão; prontos para o atendimento de ordens e comandos sem um mínimo de
questionamento, de análise, de crítica. Minimizando, também gastos e custos, o que começa com os míseros
salários pagos aos educadores, que, nada mais são, do que uma fatídica
estratégia, ingenuamente, engolida por – quase – todos, com o quê, é claro, os
sistemas de poder se rejubilam e juntam o útil ao agradável: confinam as massas em seu favor e gastam o
mínimo neste que seria “o grandioso projeto”: o de "educar", para, supostamente, "libertar" as pessoas.
Em plena abertura política, nossos alunos ainda frequentam as
escolas e as aulas sob o regime de responder às chamadas e de cumprir um percentual mínimo de presença
que é imposto por lei. Se chegar atrasado, não entra. O aluno é punido se não
responder a ordem unida, não participar do coro uníssono, não atender, enfim,
os limites hierarquicamente impostos pela burocracia ditatorial da escola. Cabe ao aluno obedecer, respeitar, calar a boca, cumprir
ordens. Não seria esta uma forma mais que eficiente de ditadura? Uma espécie de
pedagogia da humilhação que mais deforma, conforma, adestra, treina, do que
propriamente educa ou forma as pessoas, de conformidade com o seu conhecido discurso?
Não deveriam os alunos
gostarem da escola e quererem frequentá-la tendo plena consciência sobre o que
nela recebem para subsidiar conquistas, melhorias de vida, cidadania, autonomia, enfim, a tão sonhada liberdade? Por que
isto ainda não acontece e o estar e permanecer na escola chega às raias do sofrimento
e do martírio para a grande maioria? O que falar dos uniformes – em muitos
lugares chamados – não por acaso de
fardas – que neutralizam as diferenças econômicas e sociais, criando, assim, uma falsa igualdade que faz, naturalmente, com que os menos favorecidos se acomodem e se iludam? Eles criam,
politicamente, uma ilusão provisória dos pontos de vista econômico e social; neutralizando dores, sofrimentos e
conflitos que são assim mantidos na vida
das pessoas e daí, tidos como naturais ou mesmo superados. E as filas a determinação de locais na ordem da escola, a
disciplina rígida? Os deveres de casa como uma forma eficiente de dar ocupação, evitar o ócio e o prazer de viver como se gosta e se quer? Servem a quem e a quê na presente ordem das coisas? Em que tudo isto influencia o cotidiano e a vida das pessoas?
As avaliações feitas pelas provas medonhas, as grades curriculares onde têm que se
enquadrar o que o sistema quer, transformando o ensino em mandatos lineares e
autoritários? Por que os alunos ainda não podem escolher, mas tem que obedecer?
Cumprir regras e normas autoritárias e impostas para sobreviver até que o sinal
soe ou que as férias cheguem, ou mesmo a greve se firme, para que fiquem livre da escola? É o que podemos esperar de tanta evolução nas ciências da educação, suas pesquisas, teses, livros publicados? Acabou de fato a ditadura, o militarismo que horroriza a todos nós, educadores
de boa vontade? Ou ele apenas mudou de forma e de cor para que fosse aceito com muito mais facilidade e que possa invadir o cotidiano pedagógico, sem, nem mesmo ser percebido?
E os Parâmetros
Curriculares Nacionais que embasam e engessam a estrutura de currículo vestindo
em todos uma roupa de tamanho único que serve para todo o mundo e não serve
para ninguém? Existe alguma democracia nisto que vem da herança dos tempos de
FHC para construir a educação “de qualidade” que temos nos dias de hoje? Ou as
coisas não passam de um disfarçado engodo?
É, existe sim um peso alto demais para que seja carregado por
nossas costas proletárias, exploradas pela obsessão ditatorial que não está mais
na lei, mas se encontra viva no inconsciente dos educadores. Ela vive e reina
na nossa cultura. Na ideologia impositiva das aulas, das provas, das notas que
são estabelecidas, nas correções feitas – em vermelho, o que lembra sangue - e
nos pontos tirados. Na punição dos erros, na exigência por vezes descabida, no endurecimento
disciplinar que constituem os grandes equívocos da dita evolução democrática da
educação dos tempos de hoje. E tudo acontece em plena era do conhecimento e da evolução
da tecnologia da informação e da conquista dos direitos humanos. É preciso,
então, que se faça um novo apelo à formação docente, ao entendimento do fim dos
tempos ditatoriais, para o quê, finalmente, deva surgir uma revolução cultural
que se inicie, por sua vez, no seio da escola.
Pelas ideias, propostas, buscando a satisfação de desejos, amorizando
necessidades, educando para e pelo prazer e para a dignidade das pessoas. Esta
é uma luta que aguarda o passo inicial da delação e da crítica para uma
sucessiva ação do coletivo.
A maligna herança da
ditadura e a sua incomensurável competência fez-nos lograr uma certa cegueira,
uma imensa ingenuidade sobre o que, como educadores, devamos fazer ou dizer. A
ditadura parece ter minado os espaços para a formação de cidadãos autênticos,
criativos e capazes de agir pelo próprio bem. Assim, não deixa de ser a escola
um refinado instrumento para manter a pior das ditaduras, a aquela da omissão,
do silêncio, da coação e do aplauso aos nossos algozes. Já passa, historicamente, do tempo de apagarmos esta
lousa para, assim, como educadores de um novo tempo darmos início a um outro processo, uma outra história. Inaugurando a era da educação para a vida, a conquista das
liberdades que nos fazem merecedores de uma vida digna e de uma cidadania plena. As mesmas que ainda estão
por vir na construção deste plano miraculoso de um Brasil melhor para todos.
Quando será
que vamos educar o cidadão concreto que possa contribuir para melhorar o Brasil
do presente que ainda tem fome e pressa? Um ser autêntico, criativo, livre e consciente da realidade que o cerca, sendo autor e autor de sua própria história. Capaz de fazer as buscas coesas do que for necessário para a concretização dos seus sonhos, em todos os momentos e nos vários sentidos possíveis. A ditadura militar morreu. Mas nós,
educadores, insistimos em nos manter de luto, reclamando e batendo no peito. Não deixando que ela se vá. Parece mesmo que negamos a nos acostumar com a sua perca. Acostumamo-nos demasiadamente com o sofrimento, a dor, a carência, a penúria. E a educação que fazemos quer ser, apenas e simplesmente, um instrumento para eternizá-las, tornando-as, por sua vez, cada vez mais vivas, presentes e fortes, enquanto sonhamos com o contrário, fazemos tudo para negar este paradoxo.
_______________
(*) Professor aposentado da SE/DF e da FE/UnB. Consultor, conferencista e pesquisador em atualização docente, planejamento e gestão educacional. Autor de Paradigmas em educação no novo milênio (Ed. Kelps, 2007), Escolas & Hospícios – ensaio sobre a educação e a construção da loucura (Ed. Kelps, 2011) e vários artigos. www.mudandoparadigmas.blogspot.com - antoniocneto@terra.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário