terça-feira, 12 de maio de 2020

ODE À BETHÂNIA - POR JORGE MAUTNER

Quero aproveitar para falar do sublime nesse poema que escrevi para minha e nossa querida Maria Bethânia de todos nós: Quando ela canta ela transforma o palco em um altar, e, ao mesmo tempo-espaço, em um terreiro. O ser humano nasceu na África e daí se espalhou para todos os lugares. E viva o rei Zumbi do Quilombo dos Palmares!!!! “Aonde foi que Jesus ensinou sua filosofia?" Foi na Bahia, foi na Bahia!” — Noel Rosa. Miriam em Aramaico é Maria. Miriam de Migdal, Maria Madalena. Aqui é Miriam, de Maria de Bethânia. Ela vem do mais profundo início do teatro de Ésquilo onde as falas são cantadas. Mas é mais atrás, é mais agonal, vem da grande mitologia, da literatura oral de Homero, Hesíod, dos candomblés, de Dom Sebastião que morreu em Alcácer Quibir, de cânticos de luz de axé, de flores, amores que é Jesus de Nazaré e os tambores do Candomblé. O perfeito equilíbrio simultâneo quando ela canta ela irradia entre o esplendor de todos os paganismos e o esplendor de todos os cristianismos, humanismos, democracia, anarquismo, socialismo pacifista da Amálgama, com a qual José Bonifácio nos definiu em 1823 dizendo: “Diferente dos outros povos e culturas, nós somos a Amálgama, esta Amálgama tão difícil de ser feita.” Quando ela entra no palco ela transforma o palco em um altar, e, ao mesmo tempo-espaço, em um terreiro. O altar é de Palas Atena e o terreiro é de Iansã. Sua presença é um incêndio de paixão que ressuscita o tempo todo o seu canto Nagô que é Banto e é o amor. E que em sua voz tão bela e cheia de bem-querer é Benguela e Gêge pra irradiar a instantaneidade da vibração da vida com todos os entrelaçamentos das dimensões da graça divina que começa lá na infância em sua família lá em Santo Amaro da Purificação desta Bahia onde o Brasil começou e não é à tôa que foi seu irmão Caetano quem lhe deu o nome, inspirado na música cantada por Nelson Gonçalves. Ela é poetisa, filósofa, pensadora, ativista social política, pioneira dos feminismos, irradiadora de um conhecimento absorvido em leituras incessantes, de Fernando Pessoa, dos filósofos, e, também não foi à toa que foi lançada pelo magnífico Vinicius de Moraes que a trouxe para o Rio de Janeiro. Ela vive perto de Jorge de Lima, da neurociência e o que é mais impressionante para mim é um constante mistério que ela irradia com seu talento que é, ao mesmo tempo, antiquíssimo e reflete todas as emoções e informações dos ancestrais. E, ao mesmo tempo, de novo a simultaneidade, traz sempre a novidade é o eternamente novo. Na verdade, são cânticos religiosos, incluindo cânticos das religiões ateias, mas todas anunciando a mensagem do presente que arrasta o passado em direção ao futuro e se eu fosse resumir em todas as miríades de interpretações e composições de Dorival Caymmi a outros tantos, gênios da cultura brasileira e internacional. Eu acho que está no Evangelho de São João em que uma voz anuncia: “Uma criança nasceu entre nós.” Ela tem o expressionismo com um afastamento mediúnico, ela tem também Villa-Lobos que disse: “Aprendam harmonia e contraponto a fundo e depois esqueçam tudo”. Mas o que ela tem é ela mesma e isso se reflete em tudo em mensagem permanente de ressurreição. Com Fernando Pessoa lado a lado com Seu Esteves e a tabacaria, a presença onipresente dos fados imortais. E aqui eu pergunto: Nasceram os fados no Brasil? Amália Rodrigues, a grande fadista portuguesa, canta De São Paulo de Luanda de Capiba: “Minha mãe chorava, kalunga, e eu cantava, kalunga, maracatu! Maracatu! Nação do preto nagô”. Bethânia quando canta, seus cantos também são acalantos de ninar, de adormecer a criança que nasceu entre nós para ela ser feliz e para morar na felicidade. Dizem que nossa arte é barroca, ela é mais do que isso, é maneirista e o maneirismo já é quântico. Sua majestade tem tamanha plenitude que se apresenta com a mais extrema humildade. Sua voz ecoa sempre nos batuques em homenagem ao rei Zumbi do Quilombo dos Palmares. Ela ecoa em todos os lugares, e este canto tem sempre aquela cor azul dos primeiros raios da manhã, os quais o pintor Fra Angelico captava em seus quadros. Claro que a primeira luz do azul de anil assim canta e caminha a rainha, porta-estandarte e porta-bandeira da bandeira brasileira. A voz do candomblé que irradia/ o Sermão da Montanha, Maria Bethânia. Eu a conheço há milênios e me lembro que assistimos juntos à entrada em Jerusalém de Jesus de Nazaré montado em seu burrico. No candomblé existe a árvore Irôko que é a árvore do tempo. Mas no tempo antes do tempo. Orun, o céu e suas estrelas ou Olorun, seu Orixá, habitavam aqui no planeta Terra com nossos ancestrais. Acontece que, de repente, os nossos ancestrais começaram a tratar Orun e Oloruncom muita falta de respeito. Alguns usavam a lua como travesseiro, outros chegavam a cuspir e urinar nas estrelas. Então Orun e Olorun não se queixaram porque os deuses não se queixam, apenas decidiram já que a coisa era assim, se afastar do Planeta Terra e ir morar lá no alto, onde estão até agora. No entanto, quando Maria Bethânia canta, Orun, o céu estrelado e Olorun, seu orixá, voltam para ficar em nossa presença. E se o espectador prestar bem atenção perceberá que o sol, a lua, as estrelas, os cometas estão ali enquanto ela canta. Quando ela para de cantar, Orun e Olorun voltam lá para o alto para morar no infinito novamente.