quinta-feira, 30 de maio de 2019

A MÁQUINA DE AVESSAR OS DIAS DA MINHA AVÓ



Theo G. Alves


T
a máquina de avessar os dias de minha avó
minha avó
inventou uma máquina
de avessar os dias:

antes de sua morte
pôs-se a engendrar
memórias
– gente com asas
– estranhas histórias do tempo
– cães de nomes improváveis
e lindos

eliminou
de seus dias as
pessoas reais –
que pode
haver de mais tedioso
que gente
concreta
ou tijolos e barro e pedras?

minha avó
com sua máquina de
avessar os dias
acordava
a casa no meio da noite
ironizava
a invenção do vento
esquecia
os nomes inúteis das filhas
recriava
o absurdo não linear do tempo.

era uma máquina
de costurar avessos –
retalhos
coloridos do tempo:

guardei-a para mim
– minha avó
e sua máquina de aventuras –
para usá-la
quando for
meu tempo.

(Theo Alves)


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ANÁLISE DO MEU LIVRO SIMPLESMENTE AZUL





VALIOSA ANÁLISE DO LIVRO SIMPLESMENTE AZUL...
ABSOLUTAMENTE FANTÁSTICO
[OPINIÃO] BOCA LIVRE: Brasília-DF, 30 de maio de 2019.
SIMPLESMENTE AZUL
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Azul da cor do mar: “Ah! Se o mundo inteiro/Me pudesse ouvir/Tenho muito pra contar/Dizer que aprendi/E na vida a gente/Tem que entender/Que um nasce pra sofrer/Enquanto o outro ri/Mas quem sofre/Sempre tem que procurar/Pelo menos vir achar/Razão para viver/Ver na vida algum motivo/Pra sonhar/Ter um sonho todo azul/Azul da cor do mar”. Tim Maia (1942-1998) na vitrola, enquanto fui curtindo o livro Simplesmente azul (2015), com versos de Antonio da Costa Neto, inicialmente embalado por uma gentil dedicatória, certa vez, feita pelo amigo Paulo César de Oliveira: “Antônio, as pessoas boas se dividem em simples e azuis. Agora, você é simplesmente azul”.
O poeta e educador se alimenta de tesouros biográficos para homenagear, em versos, fatos, pessoas e invenções. Nesta terra onde tudo é linguagem, o poeta é um brincante das palavras. Durante a obra, leveza e humor se espalham generosamente: “A poesia mora no azul do céu e visita as nuvens/como quem procura conversas amigas,/aconchegos, cafezinhos, motivos para rir de alguma coisa./A poesia mora onde não existe solidão”. Realmente, pensar e rir ao mesmo tempo nos levam às alturas! Entre o matutar aqui e o prosear ali: “Tia Maria da Cândido sempre dizia/- Ai, menino!.../Deus pode ser bom./Mas, queijo com açúcar!.../Viiiiiixeeee!”.
Questionando a retórica – essa “fraude sutil”, como diria Umberto Eco (1923-2016) – Costa Neto, em “Púlpitos”, discorre sobre o traquejo da língua entre retas simbólicas e curvas diabólicas, mapeando convicções e incoerências que marcam historicamente o exercício humano do palavrear: “Quebram tímpanos e silêncios,/entre gestos bruscos, repentinos/e as lágrimas dos olhos dos monstros esverdeados/se misturam com as gotas e babas/inadiministráveis como os pensamentos/e desejos recônditos e ocultos:/aquela criatividade vadia e má que todos temos”. No livro de Costa Neto, a poesia se realiza como um lugar lúdico onde as associações se realizam de maneira divertida, proporcionando recordações e reminiscências curiosas e inusitadas. Vida com diferentes espacialidades e ambientações, a exemplo de “Meu Rio Vermelho”, marco poético da fluidez que perpassa as subjetividades líquidas performatizadas em água viva:
“O andarilho que corta os prados da minha infância/é transparente como o coração daquelas pessoas/encantadas: os compadres dos meus pais, as mães,/padeiros, lavadeiras, domésticas, ciganas, raparigas,/gente simples e boa que merecia ali viver./Trafega cheio de ondas, alegrias, barulhos/e silêncios profundos,/gelados em suas curvas tortuosas de areia molhada,/verde, cheia de variados tons e sons,/sol e de flores coloridas de todos os matizes/[...] O andarilho rastejante/que corta os prados da minha infância/sou eu,/que durmo nu e sonho turbilhões de encantos/enquanto navego sem destino”.
Conforme Norberto Bobbio (1909-2004), somos aquilo que recordamos. O conjunto das memórias de cada um determina aquilo que se denomina personalidade ou forma de ser. Se a nossa “humanidade” se torna mais frágil na medida em que é submetida a cada dia a um processo de redesenhamento das suas fronteiras (e da sua “essência”) não é de se estranhar que uma de nossas principais características, a de ser um “homo memor”, ou seja, um “ser com memória”, também seja repensada. Em “Lua Amiga”, a voz poética de Costa Neto traduz sentidos em imagens, compara os dados colhidos e gera juízos sensíveis a partir de um fecundo reservatório tomado por vivências espetaculares:
“Quando eu era criança, lá em Silvânia/e nem faz tanto tempo assim,/a lua vinha nas madrugadas visitar as bananeiras,/as galinhas no poleiro, os pés de mangas e de goiabas,/as figueiras carregadas de frutos, as flores de Santa Teresinha./Eu juro!/Ela descia dos céus pelas mãos dos anjos/que jogavam um vôlei celestial./Pulava os muros de terra, molhados,/cheios de buracos e rachaduras,/por onde colocava seu olho sorrateiro e via tudo./Lembro de uma gostosa noite de frio/em que eu dormia na casa de tia Lica/(ela não viu porque era cega)”. Há que se lembrar do pequeno tratado De memoria et reminiscentia, no qual Aristóteles (384-322 a.C.) sublinha que a memória, devido ao seu caráter de arquivo de imagens, pertence à mesma parte da alma que a imaginação.
“Ela [a lua] estava ali, ao alcance das minhas mãos,/a poucos palmos do solo./Redonda como um queijo, ela tocou a terra/se aninhou entre folhas secas e galhos orvalhados,/que chiavam e se quebravam sob o seu peso./Ajeitou-se como pode numa posição de conforto,/fechando lentamente os olhos até dormir/e sonhar encantada com suas bochechas gordas e sorridentes./Eu não podia incomodar sua majestade./Voltei pra casa,/fechei a porta que voltou a ranger mais alto e mais fino./Deitei-me novamente, ouvindo o descompasso do coração/saindo pelos ouvidos./Eu respirava ofegante e trêmulo/sobre o colchão de palhas e/sob as pesadas cobertas de algodão/muito limpas./Foi o único segredo que, até hoje, guardei a sete chaves./Esta verdade que agora escapa de minhas mãos/sem juízo e muito desobedientes” – prossegue em doce delírio a narrativa surreal de Costa Neto, desenvolvendo a pleno vapor a arte da memória.
A arte da memória deve muito ao louvor aos grandes feitos, ao culto dos mortos e, finalmente e paradoxalmente, ao desejo de poder selecionar o que queremos nos lembrar e, portanto, também de poder determinar o que queremos nos esquecer. Até do trágico, tira-se lição para o cômico-sublime: “Ser poeta mesmo é ser Bandeira que/escrevia poemas tão fortes e tão belos/como a paixão dos suicidas./Dos que se matam sem razão/ou saber o porquê./Isto é de uma beleza tão profunda,/tão densa,/que nunca se explica,/nem mesmo quem dança/metafísica”. “Poesia de saber se matar” é o título irônico que Antonio da Costa Neto dá ao cinza que também participa do nosso azul. 
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* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.