sábado, 5 de outubro de 2019

PARABÉNS SILVÂNIA PELOS 245 ANINHOS...UM BEBÊ ENGATINHANDO PELA VIDA...

PARABÉNS SILVÂNIA PELOS 245 ANINHOS...UM BEBÊ ENGATINHANDO PELA VIDA...

Todo mundo tem uma paixão secreta, acredito. Seja ela qual for: uma pessoa, um bicho, uma lembrança que faz suspirar, sentir saudade. Mas sei também que todo mundo tem uma paixão explicita. E aqui venho deixar escancarada e clara uma das minhas. Cinco de outubro pode ser para muita gente uma data comum. Um dia sem nenhum brilho especial. Uma ou outra pessoa pode até puxar pela memória e ser pega de surpresa ao lembrar, ainda que de maneira atrasada, o aniversário de alguém. De um acontecimento marcante, um amor, um beijo, alguma coisa feliz, gratificante.
Eu, porém, vou mais longe, se me permitem. Vou voltar no tempo e arriscar algumas emoções. Pois, 05 de outubro é a data de aniversário da minha cidade natal. A minha amada Silvânia, a antiga e inesquecível Bonfim, de todos nós. "Terra que ensinou Goiás a ler, a ter cultura, sendo sua Atenas". Cidade que viveu tempos memoráveis do cinema. Onde olhos curiosos acompanhavam ansiosos o mundo que se descortinava frente às enormes telas do Cine Teatro Municipal e do Cinema do Seu Aurelino, na rua do Neves de Siqueira. Ou do teatro das freiras salesianas e da arte suprema e inesquecível de D. Nair Damásio e sua "intrépida trupe".
Ali, muitos se conheceram e, possivelmente, se apaixonaram. Apertaram as mãos às escondidas, trocaram o primeiro beijo, a primeira carícia carregada de suspiro como se a vida quisesse imitar a arte. E conseguisse. Cidade que tem às margens a telúrica Estação Ferroviária, um por do sol poético. Cheiro do eucalipto, as águas do Rio Vermelho, as velhas histórias de Zé Caetano, Josito, D. Maria Teresa. Silvânia do saudoso Manezão, das figuras humanas tão suas, tão próprias: Hermínio Cotrim, Urbano Caetano, D. Fleuza Corrêa, Chico da Altina, Sinhô, Aninha do Afonso, Tôen do Cândido...
Silvânia, fragmentos de poemas, sempre inacabados. A voz da Salete encantando multidões. Gracinha do Acrísio, um misto de beleza, carisma, inteligência, jornalista, poeta, atleta de vôlei. Maria Érika, sua arte, sua força. Carmita, seu sorriso, sua máquina de costura, sua batalha incansável, por anos, até hoje, até sempre. Silvânia do Inácio, o anjo sem asas. Do Astrogildo, homem bom, sensível, bem-humorado, uma pessoa maravilhosa. Fazendo par com a sua Cota e ciranda com seus filhos, netos, bisneta. Silvânia dos Damásios, de D. Darvina, minha eterna professora, com quem muito aprendi. Dos jardins paradisíacos de D. Inácia Leite. As trilhas com suas porteiras rangendo, suas vacas, galinhas, hortas, flores ao vento. E, logicamente, dos Silva, que lhe deram o nome, a graça, o encantamento da simplicidade que tudo dignifica.
Que tem os famosos colégios Anchieta, Nossa Senhora Auxiliadora e o Aprendizado Padre Lancísio. Além do José Paschoal, o campus da Universidade de Goiás, de educação rigorosa, desdobrando as tradições da clássica pedagogia, dos ensinamentos igualmente especiais e profundos como os suspiros, as saudades, a bondade no coração do seu povo.
A matriz de Nossa Senhora do Rosário e a Igreja do Senhor do Bonfim, com sua pracinha típica de cidade de interior.O casarão sisudo, as ruas tortas, os telhados seculares. Um coreto melancólico e solitário, que nos faz voltar no tempo. Terra de gente católica, que tem como símbolo da fé um Cristo de braços abertos em cruz lá no alto, abençoando a tudo e a todos.
Silvânia deve estar em festa. Antes estaria. E era festa das grandes. Os desfiles em comemoração a sua fundação, eram verdadeiros motivos de grandes expectativas. Os ensaios das "bandas" de cada escola se sucediam cansativos, mas cheios de entusiasmos. Cada um queria render sua homenagem maior que a outra. Numa das principais avenidas da cidade os dobrados emocionavam o público. O amontoado de gente formava um verdadeiro corredor humano para ver o desfile passar. Alguns nem respiravam. Cada centímetro era disputadíssimo. E a cidade lá, acolhendo cada nota como prêmio de uma segura gratidão. Silvânia dos festivais, dos encontros de juventude, das marchas da amizade, das serenatas do Lico, da viola do Zé Luiz, da voz doce da Lalá. E também, dos cursilhos de cristandade, das festas dos ex-alunos. Dos espetáculos, das semanas de retiro, dos jogos escolares. Os uniformes de gala, as gincanas. O mel do seu Brenner, os salgados de D. Almira, biscoitos de Ana Rogéria, presépios de D. Babita. Rezas, benzimentos, crenças, muita fé.
As excursões para Aparecida, D. Rilza sorridente e amorosa. Dr. Helvécio, nsosso dentista atendendo as pessoas no seu casarão da Praça. Os ciprestes do quintal de D. Quetinha. A livraria da Nenzita, Vivin, Maria Preta fazendo graças. Conversas afiadas, rodas, brincadeiras da rapaziada, quadrilha junina marcada pelo Toín da D. Elpídia e Amelinha. Não se sabia o que era mais belo, se a dança, as roupas, a alegria dos casais ou a voz melodiosa de seus marcadores.Alguém lembra como era lindo? Hum! que saudade...
As pamonhadas, a feira ao lado do Céssi. Os pomares de jabuticabeiras, o rádio de D. Nestina sempre no último volume. Os anúncios do Ditão no alto-falante da igreja.O repicar dos sinos, os sermãos do Pe. Polly. A visita da imagem do Divino Pai Eterno e toda gente animada decorando suas portas, iluminando a graça das toalhas brancas e bordadas ao calor das mãos humanas, calejadas, sofridas, mas, nem por isso, deixando de fazer as alegrias do povo.
A cidade que tem como um dos cartões postais a Praça do Rosário. Famosa por sua fonte luminosa onde todos se encontram durante o final de semana e ainda vivem ali os grandes carnavais, os shows que encantam, as feiras, as mostras de arte, só alegrias. Os bailes do Clube Recreativo, as festas religiosas e profanas. A Avenida, o Galetu's, o Bar Patropi, o saudoso Tôen do Clóvis...o Bloco do Id, a Rádio Rio Vermelho.
A casa deliciosa de Seu Cipriano, onde íamos estudar entre paredes de adobo, terreiro de margaridas, cortinas de chitão, estampadas ao vento. E aquele portão lá na rua, longe da casa onde a gente batia e ficava esperando a pessoa e o sorriso. Os meninos do Seu João de Oliveira, com quem eu até não me encontrava muito, mas até hoje, quando encontro qualquer um deles é uma festa tão grande, a demonstração de uma alegria tão imensa, que fico sem graça, emocionado e sem ar. Os filhos do Soguim e D. Laudicena. As nossas idas em sua casa para colher as uvas-do-Pará, uma delícia como poucas. Como não sentir a falta de todas estas delícias.
Silvânia dos Clubes Atenas e das Pedrinhas, do queridíssimo Padre Januário. Da AABB. E como não poderia deixar de lembrar aqui, Silvânia das galerias enormes do Anchieta, das festas juninas, da quadra de vôlei no meio da praça. . Do relógio acertado pelo Tãozinho, do Zequita, D. Luiza Mestre, a Julina do Asilo, D. Preta do Hermelindo, Ivani, Antonio da Laura, Maria do Zé Leão, D. Carlota, Nigrinha, Zefina, Zulmira, Sinhana de Sá Rosa, Maria Tanásia, Neném do Nego, Vó Cândida e inúmeros outros amores profundos e inesquecíveis. Impagáveis.
Silvânia de D. Inhazica, encantadora. Do Zé Caixeta, um grande prefeito, seguido de Zé Denisson, Zé Tavares, Milton, Adonias do Prado, Augusto Siqueira e tantos outros. Silvânia das festas maravilhosas de São Sebastião, do Divino, das comemorações da Paixão de Cristo, do Natal. O mês de maio, inteirinho dedicado à Maria. Silvânia de D. Geralda do Chaveco, D. Nina. Lôpo Ramos, Tim, Moisés Umbelino, Pe. Pedro Celestino. D. Miçana, Seu Clarido, Begê, Moisés Português, Seu Oscar, Bendita de Eva, Nigrinha do João Alfaiate... Das plantações de marmelo mais cheirosas dos que as noivas e o seu perfume invadia toda a pequena cidade durante as noites inteiras. E a gente acordava se deliciando e dando graças a Deus por aquele presente: motivo pra sorrir e agradecer sempre.
Silvânia dos sorrisos doces de D. Isaura, o mais eficaz dos remédios do hospital e de D. Lili de Melo, um banho de alegria, uma festa. Além das mãos mágicas do Dr. Tiago, um outro santo da nossa terra. As procissões bonitas, iluminadas, as músicas, as rezas de D. Tina Guimarães. A elegância de D. Didi Félix, D. Negueta, D. Leonor da Pensão, a doçura de D. Teresinha Lobo. A poesia, a pureza, as madrugadas silenciosas e repletas de bênçãos para os dias que sempre chegavam radiantes, vindos das mãos de Deus. Os pedaços da cidade que adolesciam com a sua juventude a cada final de manhã, a cada nova primavera. Silvânia de tantas outras lembranças. Silvânia, minha paixão ensolarada, repleta de luz, de sonhos e poesias.
Silvânia que surge da luz e do amor de Deus.
Silvânia de todos nós.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

CHORANDO COM RODRIGO MAIA... LÁGRIMAS DE CROCODILO

AS LÁGRIMAS DE CROCODILO DE RODRIGO MAIA

Estou estupefato com a cena do Rodrigo Maia chorando de amor pelo povo que sofre, as crianças, as mulheres, os pobres, os trabalhadores. Não sei o que mais me assusta, se o cinismo incondicional, o anacronismo, o pedantismo, o sadismo deste Nhonho dos infernos ou a ignorância, a subserviência de um povo que não reage a uma palhaçada destas.
É repugnante. Armar a reforma que tira o pão da boca dos filhos dos trabalhadores, escraviza e explora quem trabalha - ou quer trabalhar - submetendo o povo à miséria, à fome, à violência galopantes à deseducação e ainda chorar de emoção enquanto faz isso. É bárbaro, é baixo, é repugnante.
Talvez precisássemos, sim, de uma reforma da previdência, mas não esta. Associada a uma possível reforma moral e ética era preciso, igualmente, mexer nos privilégios da canalhice que governa o Brasil. Que ganha como elite, mora, vive e come como elite e que tem a cara de pau de preservar todos os seus direitos, inclusive da aposentadoria precoce, integral e milionária.
É preciso mesmo, Rodrigo Maia, Nhonho dos inferno, retirar moedas dos pais de família para engrossar os privilégios de vocês dos governantes fanáticos pelo poder e o dinheiro e cegos para a vida. Vocês que têm a coragem de chorar de emoção enquanto sagra o coração do povo, matando seu futuro retirando os direitos mínimos, a comida, a habitação, a cidadania, negando direitos, retirando conquistas.
Meu consolo é que como o Nhonho dos infernos você logo retorna para o seu lar e, felizmente, caixão não tem gavetas. Sinto dor, mágoa, tenho lágrimas nos olhos. Tenho vergonha de ser brasileiro. A mesma vergonha na cara que você deveria ter frente a este espetáculo dantesco, a esta palhaçada política com a qual você já acostumou tanto que considera normal e cotidiana.
Tenho é pena de você, Rodrigo Maia. Tenho pena deste Nhonho dos infernos.

REFORMA DA PREVIDÊNCIA É RASGAR E QUEIMAR A LEI ÁUREA



ESTA REFORMA DA PREVIDÊNCIA É RASGAR A LEI ÁUREA
São mais que repugnantes, cruéis e inumanos os pressupostos que regem a reforma da previdência social que deverá ser aprovada nas próximas horas pelo parlamento brasileiro, sob a pressão e a opressão do (des)governo Bolsonaro que, por sua vez, se pauta nas perspectivas mais obscuras, atrasadas e de um retrocesso sem fim em termos políticos, econômicos, humanos e sociais.
É a retórica macabra de um economista mequetrefe como Paulo Guedes que entende que é melhor tirar moedas de milhões de trabalhadores do que reduzir os privilégios escandalosos de uma minoria privilegiada, má, cínica e arrogante. Mas, afinal, o dito governo Bolsonaro é uma de suas crias. Governo eleito e feito para privilegiar e manter o poder e a riqueza dos abutres que vivem das larvas que sobram da miséria do povo: os políticos, os burgueses, os grandes empresários, enfim, as elites e sua laia de assessores, servidores e puxa-sacos. Gente da pior espécie.
A reforma de previdência, tal como foi proposta - e pelo visto, aceita e aprovada - é um retorno à escravidão, considerando, obviamente, os contornos da evolução tecnocrática deste mesmo processo. Ela não só re-escraviza a população afro-descendente, mas escraviza toda a classe social desprovida do dinheiro. Escraviza todos os trabalhadores, enfim, os que vendem - e passam a prostituírem-se por meio da sua força de trabalho. É a escravidão moderna, tecnológica, feita, não mais por meio do tronco, castigos físicos e chibatadas. Mas por meio de instrumentos talvez muito piores e que marcam com muito mais força: a violência simbólica, a exploração, os baixíssimos salários, o aumento do custo de vida, enfim, a exploração sem limites do corpo, do trabalho, enfim, da vida.
Talvez fosse mesmo necessário reformar a previdência social no Brasil, mudando algumas de suas bases, por exemplo, ampliando a base de responsabilidade e de contribuição do capital, do empresário, do patrão, fazendo a justiça histórica em função de tudo o que foi tirado do trabalhador e não, o contrário, retirando, mais uma vez o pouco de quem trabalha, para acumular mais e mais para os patrões, a empresa, privilegiando mais uma vez o capital, justamente, num tempo em que se perde a guerra para o desemprego, a informalidade, a perda do poder de compra do trabalhador, enfim, investindo-se no caos, na dor, na fome, no desespero que só tende a aumentar dentro das atuais perspectivas.
A reforma brutal e cruel da previdência, associada à inumana reforma trabalhista que seca direitos, retira benefícios,reduz as condições de emprego, desgraça o trabalhador, feita, associada a esta reforma "bolsomínica" da previdência é a constituição da treva absoluta, do assassinato histórico e social de quem trabalha, precisa, quer, mas não vai trabalhar, vai, se for o caso, se escravizar e dar graças a Deus por isso.
Enquanto o "mito" ri da canalhice contra os incautos que votaram nele e que ainda o defendem de dentro de suas ignorâncias, de suas burrices, de suas faltas de visão, de inteligência, de lógica e de contexto. Vivemos e aplaudimos este caos, este retrocesso, este atraso absurdo. Mas não resta o que fazer. Só esperar mais alguns séculos e quem sabe, um dia, a classe trabalhadora brasileira possa ter um mínimo de senso, de visão, de vergonha na cara. O que me consola é que muito antes de tudo isto, Bolsonaro estará torrando no fogo do inferno. Ele e sua trupe. E eu também. Estarei do lado para aplaudir.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

PAULO TINHA FAMA DE MENTIROSO, Carlos Drummond de Andrade




Paulo tinha fama de mentiroso.
Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.
A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo mesmo.
Desta vez, Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-la ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
– Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia.
(Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro).

quinta-feira, 30 de maio de 2019

A MÁQUINA DE AVESSAR OS DIAS DA MINHA AVÓ



Theo G. Alves


T
a máquina de avessar os dias de minha avó
minha avó
inventou uma máquina
de avessar os dias:

antes de sua morte
pôs-se a engendrar
memórias
– gente com asas
– estranhas histórias do tempo
– cães de nomes improváveis
e lindos

eliminou
de seus dias as
pessoas reais –
que pode
haver de mais tedioso
que gente
concreta
ou tijolos e barro e pedras?

minha avó
com sua máquina de
avessar os dias
acordava
a casa no meio da noite
ironizava
a invenção do vento
esquecia
os nomes inúteis das filhas
recriava
o absurdo não linear do tempo.

era uma máquina
de costurar avessos –
retalhos
coloridos do tempo:

guardei-a para mim
– minha avó
e sua máquina de aventuras –
para usá-la
quando for
meu tempo.

(Theo Alves)


——

ANÁLISE DO MEU LIVRO SIMPLESMENTE AZUL





VALIOSA ANÁLISE DO LIVRO SIMPLESMENTE AZUL...
ABSOLUTAMENTE FANTÁSTICO
[OPINIÃO] BOCA LIVRE: Brasília-DF, 30 de maio de 2019.
SIMPLESMENTE AZUL
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Azul da cor do mar: “Ah! Se o mundo inteiro/Me pudesse ouvir/Tenho muito pra contar/Dizer que aprendi/E na vida a gente/Tem que entender/Que um nasce pra sofrer/Enquanto o outro ri/Mas quem sofre/Sempre tem que procurar/Pelo menos vir achar/Razão para viver/Ver na vida algum motivo/Pra sonhar/Ter um sonho todo azul/Azul da cor do mar”. Tim Maia (1942-1998) na vitrola, enquanto fui curtindo o livro Simplesmente azul (2015), com versos de Antonio da Costa Neto, inicialmente embalado por uma gentil dedicatória, certa vez, feita pelo amigo Paulo César de Oliveira: “Antônio, as pessoas boas se dividem em simples e azuis. Agora, você é simplesmente azul”.
O poeta e educador se alimenta de tesouros biográficos para homenagear, em versos, fatos, pessoas e invenções. Nesta terra onde tudo é linguagem, o poeta é um brincante das palavras. Durante a obra, leveza e humor se espalham generosamente: “A poesia mora no azul do céu e visita as nuvens/como quem procura conversas amigas,/aconchegos, cafezinhos, motivos para rir de alguma coisa./A poesia mora onde não existe solidão”. Realmente, pensar e rir ao mesmo tempo nos levam às alturas! Entre o matutar aqui e o prosear ali: “Tia Maria da Cândido sempre dizia/- Ai, menino!.../Deus pode ser bom./Mas, queijo com açúcar!.../Viiiiiixeeee!”.
Questionando a retórica – essa “fraude sutil”, como diria Umberto Eco (1923-2016) – Costa Neto, em “Púlpitos”, discorre sobre o traquejo da língua entre retas simbólicas e curvas diabólicas, mapeando convicções e incoerências que marcam historicamente o exercício humano do palavrear: “Quebram tímpanos e silêncios,/entre gestos bruscos, repentinos/e as lágrimas dos olhos dos monstros esverdeados/se misturam com as gotas e babas/inadiministráveis como os pensamentos/e desejos recônditos e ocultos:/aquela criatividade vadia e má que todos temos”. No livro de Costa Neto, a poesia se realiza como um lugar lúdico onde as associações se realizam de maneira divertida, proporcionando recordações e reminiscências curiosas e inusitadas. Vida com diferentes espacialidades e ambientações, a exemplo de “Meu Rio Vermelho”, marco poético da fluidez que perpassa as subjetividades líquidas performatizadas em água viva:
“O andarilho que corta os prados da minha infância/é transparente como o coração daquelas pessoas/encantadas: os compadres dos meus pais, as mães,/padeiros, lavadeiras, domésticas, ciganas, raparigas,/gente simples e boa que merecia ali viver./Trafega cheio de ondas, alegrias, barulhos/e silêncios profundos,/gelados em suas curvas tortuosas de areia molhada,/verde, cheia de variados tons e sons,/sol e de flores coloridas de todos os matizes/[...] O andarilho rastejante/que corta os prados da minha infância/sou eu,/que durmo nu e sonho turbilhões de encantos/enquanto navego sem destino”.
Conforme Norberto Bobbio (1909-2004), somos aquilo que recordamos. O conjunto das memórias de cada um determina aquilo que se denomina personalidade ou forma de ser. Se a nossa “humanidade” se torna mais frágil na medida em que é submetida a cada dia a um processo de redesenhamento das suas fronteiras (e da sua “essência”) não é de se estranhar que uma de nossas principais características, a de ser um “homo memor”, ou seja, um “ser com memória”, também seja repensada. Em “Lua Amiga”, a voz poética de Costa Neto traduz sentidos em imagens, compara os dados colhidos e gera juízos sensíveis a partir de um fecundo reservatório tomado por vivências espetaculares:
“Quando eu era criança, lá em Silvânia/e nem faz tanto tempo assim,/a lua vinha nas madrugadas visitar as bananeiras,/as galinhas no poleiro, os pés de mangas e de goiabas,/as figueiras carregadas de frutos, as flores de Santa Teresinha./Eu juro!/Ela descia dos céus pelas mãos dos anjos/que jogavam um vôlei celestial./Pulava os muros de terra, molhados,/cheios de buracos e rachaduras,/por onde colocava seu olho sorrateiro e via tudo./Lembro de uma gostosa noite de frio/em que eu dormia na casa de tia Lica/(ela não viu porque era cega)”. Há que se lembrar do pequeno tratado De memoria et reminiscentia, no qual Aristóteles (384-322 a.C.) sublinha que a memória, devido ao seu caráter de arquivo de imagens, pertence à mesma parte da alma que a imaginação.
“Ela [a lua] estava ali, ao alcance das minhas mãos,/a poucos palmos do solo./Redonda como um queijo, ela tocou a terra/se aninhou entre folhas secas e galhos orvalhados,/que chiavam e se quebravam sob o seu peso./Ajeitou-se como pode numa posição de conforto,/fechando lentamente os olhos até dormir/e sonhar encantada com suas bochechas gordas e sorridentes./Eu não podia incomodar sua majestade./Voltei pra casa,/fechei a porta que voltou a ranger mais alto e mais fino./Deitei-me novamente, ouvindo o descompasso do coração/saindo pelos ouvidos./Eu respirava ofegante e trêmulo/sobre o colchão de palhas e/sob as pesadas cobertas de algodão/muito limpas./Foi o único segredo que, até hoje, guardei a sete chaves./Esta verdade que agora escapa de minhas mãos/sem juízo e muito desobedientes” – prossegue em doce delírio a narrativa surreal de Costa Neto, desenvolvendo a pleno vapor a arte da memória.
A arte da memória deve muito ao louvor aos grandes feitos, ao culto dos mortos e, finalmente e paradoxalmente, ao desejo de poder selecionar o que queremos nos lembrar e, portanto, também de poder determinar o que queremos nos esquecer. Até do trágico, tira-se lição para o cômico-sublime: “Ser poeta mesmo é ser Bandeira que/escrevia poemas tão fortes e tão belos/como a paixão dos suicidas./Dos que se matam sem razão/ou saber o porquê./Isto é de uma beleza tão profunda,/tão densa,/que nunca se explica,/nem mesmo quem dança/metafísica”. “Poesia de saber se matar” é o título irônico que Antonio da Costa Neto dá ao cinza que também participa do nosso azul. 
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* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.