Já faz um tempo que a Terra é um pequeno grande ovo e a acelerada aproximação entre culturas e seus contrastes virou, no mínimo, sinônimo de muita transformação.
Entre tantos ônus, é também graças a este processo que fabulosos registros de tribos ainda relativamente isoladas têm se multiplicado em séries que eu arriscaria celebrar como as mais lindas que se tem notícia.
Já exaltamos muitas delas aqui, mas hoje chamo atenção para algo particular no meio disso tudo: a apropriação e ressignificação de produtos industriais e outras bugigangas ocidentais na estética destes povoados.
De fragmentos da nossa moda a elementos tipicamente descartáveis, como cartões telefônicos, tudo parece digno de releitura e destaque num contexto onde a adornação é imperativa e muito própria a cada um. Um contexto, diga-se de passagem, de muita ostentação mas não necessariamente de acúmulos.
Antes que me acusem de glorificar algo “antropologicamente triste”, reforço que a ênfase aqui não é bem essa e sim um olhar curioso sobre como artefatos quaisquer viajam física e simbolicamente mundo afora, um deslumbramento sobre a própria beleza e significado de um par de chaves... hoje no seu bolso, amanhã sabe-se lá aonde.
Uma garrafa de Coca Cola que surge como um presente divino no meio de uma tribo nômade era o elemento principal do consagrado filme sul africano ‘Os deuses devem estar loucos’, de 1980.
Naquela trama bastante verossímil, o inédito objeto de vidro causa tanto alvoroço que acaba devolvido aos céus depois de desempenhar um leque de funções ‘absurdas’ (aspas pra que te quero!) entre os tribais.
Dizem que vivemos a tal Era da pós produção onde – pelo menos mais do que nunca - nada se cria, tudo apenas se transforma num ctrl C+ctrl V galopante, bastante explícito na figura do DJ e demais subprodutos da cultura da apropriação e releitura.
Se já refletimos muito sobre como o valor das coisas se remete ao contexto, principalmente depois dourinol de Duchamp, este registro de não-pulseiras de relógio escancara, na prática, o remix de extremos em que vivemos. Aqui o conjunto ponteiro-horas-números foi totalmente deixado de lado, excluído. Aqui o tempo (e o babado) é outro...
Selecionei estas fotos dentro do vasto acervo do fotográfo Eric Lafforgue sobre as tribos que habitam o Vale do Rio Omo, território no sudoeste da Etiópia classificado pela Unesco como patrimônio da humanidade.
Segundo testemunho do próprio fotógrafo, cada uma delas parece viver seus últimos momentos tradicionais já que pontes logo interligarão, por exemplo, o remoto vilarejo Daasanach aos bares onde estas tampinhas são só tampinhas.
Sua maior ameaça, no entanto, está na construção de uma barragem que afetará diretamente o cultivo agrícola que praticam a partir das cheias do Rio Omo, já que a região é muito árida (entenda melhor o problema e ajude clicando aqui).
Estes retratos não representam uma única tribo, mas indivíduos de diferentes etnias que tiveram acesso aos produtos made in china negociados nos grandes mercados da região. É lá que eles descolam a preços módicos estas camisetas com marcas e rostos completamente desconhecidos.
As trocas se estendem a comportamentos e doenças ao mesmo tempo que a remédios e soluções mas este post e eu, obviamente, não somos os mais indicados para analisar a moralidade e implicações disso tudo. Se deveriam seguir hermeticamente isolados, sem espelhos e hepatite B mas abandonando bebês no mato como mandam algumas de suas tradições é só um viés do quanto o assunto é profundo.
Tenha certeza, no entanto, que nesta reciclagem cultural eles também riem muito do valor dado pelos ocidentais a seus ‘míseros’ e geniais travesseiros de madeira.
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