domingo, 31 de maio de 2009

MANOEL DE BARROS: O POETA DA (DES)INVENÇÃO


O motivo central dessa edição é investigar acerca de determinados recursos estilísticos e explorações semânticas que se comportam como elementos recorrentes nos escritos do poeta Manuel de Barros, (natural de Corumbá, Mato Grosso - 1916) cuja projeção nacional se deu a partir dos anos 1980. Mas que, de há muito, já vinha chamando a atenção dos críticos e dos analistas acadêmicos, especialmente, por conta de uma dicção própria, concentrada, de modo mais intenso, na captação das coisas simples do dia-a-dia. Mesmo que estas nem sempre comportem a atmosfera do que a tradição acostumou-se a identificar como inerente ao material poético.
O trabalho de Manoel de Barros, trata, portanto, de uma poesia intrigante, desafiadora e, sobretudo, inaugural. Seus livros já antecipam a estranheza poética nos próprios títulos, tais como: ´Poemas concebidos sem pecados´ (1937), ´Face imóvel´ (1942), ´Compêndio para uso dos pássaros´ (1961), ´Gramática explosiva do chão´ (1969), ´Arranjos para assobio´ (1983), ´Livro de pré-coisas´ (1986), ´O guardador de águas´ (1989), ´O livro das ignorãças´ (1993), ´Livro sobre o nada´; (1996), ´Retrato do artista quando coisa´ (1998), dentre outros. Percorrermos, assim, um dos múltiplos caminhos desse poeta lavrador que colhe do chão as palavras.
Se, em João Cabral de Melo Neto, havemos a identificação da palavra com a pedra, isto é, a idéia de uma aprendizagem do poeta no sentido de tirar lições da pedra: com esta podendo aprender a exatidão da forma, a impassibilidade, a resistência à porosidade. Sendo, portanto, impermeável a sentimentalismos, sob a severidade das rimas toantes; em Manoel de Barros, se sedimenta a concepção da palavra como um organismo vivo: a palavra-vegetal, a palavra-animal.

"...Para entrar em estado de árvore
é preciso partir de um torpor animal
de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz..."
Ou, quando não, a palavra-mineral - mas esta, ao contrário da palavra-pedra em João Cabral, estática e impassível, anuncia-se portadora de anima.
Adoecer de nós a Natureza:- botar a aflição nas pedras. Como se vê, a palavra, enquanto morada do poético, imprime-se como a marca fundamental da criação literária de Manoel de Barros. É daí que resulta a sua poesia, ou seja, do seu próprio cotidiano com as palavras, estabelecendo entre elas novas relações, produzindo efeitos novos, para, assim, poder extrair a forma oculta que toda forma abriga. Tudo nele é preocupação com a linguagem, ´uma vontade de recuperar a virgindade das palavras'.
A sua atitude de casar uma palavra já gasta com outra também gasta parece produzir a primeira vez de uma palavra. Nesse sentido, o poeta busca não apenas simples relações semânticas, pois, mais que isso, aspira às ressonâncias, aos ritmos inefáveis, às inumeráveis sensações:
'Mas eram coisas desnobres como intestinos
de moscas que se mexiam por dentro de suas palavras'.

"...Gostava de desnomear:
para falar barranco dizia: lugar onde avestruz esbarra.
Rede era vasilha de dormir.
Traços de letras que um dia encontrou nas pedras de uma gruta.
Chamou: desenhos de uma voz.
Penso que fosse um escorço de poeta..."

A poética de Manoel de Barros se enquadra na categoria daquelas coisas que, segundo Santo Agostinho, existiam para ser desfrutadas, isto é, prazer em si mesmo. Nesse sentido, o discurso é elaborado a partir de um entrelaçamento de palavras para que desemboquem sempre num jogo de pensamento, do qual se depreende o inesperado ou a estranheza:

"...Desinventar objetos.
O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear.
Até que ele fique à disposição de ser uma begônia.
Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma..."

Eis o universo de Manoel de Barros: a (des)invenção. Ou reinvenção. Há, em toda a sua construção poética, o gosto pelo desvio ou o gozo de palmilhar o não-sabido. Persegue, sobretudo, o nada, pois é daí que espera extrair a essência do que desconhece. Trata-se, a rigor, de uma aprendizagem às avessas: desaprender para, assim, ter condições de que apalpar o invisível; desse modo, ignorando as coisas pode, enfim, reencontrá-las.
A primeira parte do Livro das Ignorãças tem como título ´Uma didática da invenção´, e a epígrafe bem sintetiza os poemas: ´As coisas que não existem são mais bonitas´, isto é, a poesia habita o gênesis, daí a reiteração dos exercícios de metalinguagem, uma vez que a poesia quer conhecer a si mesma, anseia de parar o que havia na imagem antes que esta se revelasse. Memória e aprendizagem se inter-relacionam.
Em Manoel de Barros ocorre, exatamente, aquela epifania drummoniana do ´esquecer para lembrar'. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois, em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos -o verbo tem que pegar delírio. Nesse excerto - como em tantos outros - observa-se que as palavras gravitam as altas zonas da linguagem, à semelhança dos pontos privilegiados que a magia discerne e une misteriosamente no mundo: a ´criança´, ao mudar ´a função de um / verbo.' Não delira, mas, sim, o próprio ´verbo´, tocado, agora, pela transformação; por isso, o poético reside em ´fazer nascimentos´, em entregar as palavras ao delírio. Insetos que se arrastam, árvores que voam, arbustos que cantam - tudo isso implica, na poética de Manoel de Barros, o desdobramento de imagens que comunicam a revelação.
As palavras se movem no poema. E o leitor nunca se cansa de se surpreender. A poesia concretiza, pela força da imaginação, o pensamento especulativo no próprio âmago do espírito:

"...Para entender nós temos dois caminhos:
o da inteligência que é o entendimentodo corpo;
e o da sensibilidade que é o entendimentodo espírito.
Eu não escrevo com o corpo.
Poesia não é para compreender,
mas para incorporar.
Entender é parede;
procure ser árvore..."

Nesse exercício de metalinguagem, o poeta aborda, com extrema agudeza, a problemática do que a poesia comunica, cuja natureza, como se vê, é, essencialmente, inefável. O estado poético, portanto, comporta a desintegração das coisas, a decomposição da crosta que as envolve: ´...Desaprender oito horas por dia ensina os princípios...' Em outras palavras, o estado poético consiste em mergulhar no avesso das coisas. Em descascar o que há muito já se encontra cristalizado pela cultura. Ser poeta é inverter. Ser poeta é transgredir. No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:

"...Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite e um sapo engole as auroras..."

Das imagens do dia (que) dorme antes; da tarde (que) está competente para /
dálias´; do ´sapo (que) engole as auroras´, brota o estado poético que o autor inscreve em cada um de nós - os leitores. Todos nos tornamos, então, cúmplices dessa música, do encantamento que suscita. Os seres, as coisas, os sentimentos saem, subitamente, de sua existência ordinária em direção ao indefinível. E o que conhecemos muda, magicamente, de valor. Tudo se converte em música. Não uma música qualquer, mas uma outra que percorre todos os nossos sentidos e nos solicita por inteiro.

"...Insetos cegam meu sol.
Há um azul em abuso de beleza.
Lagarto curimpãpã se agarrou no meu remo.
Os bichos tremem na popa.
Aqui até a cobra eremisa, usa touca, urina na fralda.
Na frente do perigo, bugio bebe gemada.
E periquitos conversam baixo..."

Eis, em síntese, o discurso literário de Manoel de Barros, de que se evola um universo singularmente harmonioso. Uma vez que tal harmonia advém da própria poesia, que nos torna ressonantes e consoantes com ela. Um universo que permanece em nós, exatamente porque não nos é imposto. Mas tão-somente sugerido. É o sonho que emana de uma percepção, de uma (des)continuidade afável e que ninguém, jamais poderá explicar.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabens por conseguir escrever isso

Carmen Regina Dias disse...

Uma bela declaração de amor a Poesia, eis o que encontro aqui, Antonio,
Manoel de Barros, o poeta da Des invenção é, outrossim, o grande amor de Carmen.


"...Para entender nós temos dois caminhos:
o da inteligência que é o entendimentodo corpo;
e o da sensibilidade que é o entendimentodo espírito.
Eu não escrevo com o corpo.
Poesia não é para compreender,
mas para incorporar.
Entender é parede;
procure ser árvore..."

E lhe sou grata por esta ternura demasiada, luxuriante, deliciosa,
que é estar bebendo desta fonte maravilhosa de Mudandoparadigmas.

um grande abraço, sou fã.


Carmen