domingo, 29 de março de 2009

OS ESTATUTOS DO HOMEM - Thiago de Mello (*)







Ato Institucional Permanente

À
Carlos Heitor Cony










Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.

Agora vale a vida,

e, de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana,

inclusive as terças-feiras mais cinzentas,

têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,

haverá girassóis em todas as janelas,

que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra;

e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,

abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV

Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem.

Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento,

como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.

(Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino).

Artigo V

Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras.

O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo

porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos,

a prática sonhada pelo profeta Isaías,

e o lobo e o cordeiro pastarão juntos

e a comida de ambos terá o mesmo gosto de outrora.

Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido

o reinado permanente da justiça e da claridade,

e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor sempre

foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama

e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.

Mas que, sobretudo, tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama

e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido,

tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes

e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.

(Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.)

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro não poderá

nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras.

Expulso do grande baú do medo,

o dinheiro se transformará em uma espada fraternal

para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade,

a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.


Santiago do Chile, abril de 1964

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Pequena Biografia:

Thiago de Mello (*)
É o nome literário de Amadeu Thiago de Mello, nascido a 30 de março de 1926, na pequenina cidade de Barreirinha, fincada à margem direita do Paraná dos Ramos, o braço mais comprido do Rio Amazonas, no meio do pedaço de um verde mais intenso, úmido e vivo do planeta: a Amazônia.

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