sexta-feira, 9 de maio de 2008

INSTITUTO ALEXANDRE NARDONI

As escolas do Brasil - quase todas - deveriam ter este nome. Pois elas se dedicam sempre a algo parecido com o que podemos identificar como a ação mais importante da vida deste notável cidadão: matar criancinha inocente. Muitas escolas apregoam hipocritamente que as crianças são suas filhas. Induzem aos alunos a chamarem os professores de tia ou tio - uma das coisas que mais odeio - e, cega, cruel e friamente, matam-nas todos os dias.
Só que não o fazem com a monstruosa coragem do casal Nardoni. Agem de forma processual, covarde e lenta. Não matam o corpo. Matam o espírito, ferem a alma, sufocam as alegrias; estrangulam os sonhos para terem a certeza de que eles jamais sobreviverão às suas maldades, à eterna violência que cometem. As escolas são loucas. Loucas para que seus alunos se rebaixem aos auspícios dos rigores sociais. Digam sim às exigências brutais da vida, do mercado, da sociedade contemporânea onde ninguém tem o direito de viver, de sonhar, mas apenas de servir ao dono e senhor todo poderoso e definidor todos os desejos.
Atendendo ao convite de uma diretora, fui semana passada a uma escola que se dedica à "educação" infantil, para tratar de uma possível consultoria. E, embora sendo meio de semana, pensei que fosse feriado, tal o silêncio que ali encontrei em plenas duas da tarde. Indagando então à sorridente, muito bem-vestida e maquiada diretora, ela explicou-me que não. Não era feriado, o fato é que as crianças eram muito disciplinadas - diria eu, adestradas - e não davam, sequer um pio durante as aulas.
E assim, como passávamos pelo corredor central, ela abriu delicadamente a fresta de uma das salas - selas de aula - e o que eu vi lá dentro, deixou-me meio aterrorizado: uma classe cheia de crianças caladas, de olhos arregalados e olhando, como que numa coreografia bem ensaiada, para o quadro-negro e o caderno, onde apontavam em monstruoso silêncio a lição do dia. Tive um calafrio nas costas, mas segui com a minha conversa, agora um tanto trôpega e desapontada.
Minutos depois, a cirene nazista soa longamente para o início do recreio, do intervalo. As crianças saem esfuziantes das salas, como quem se livra de um tormento insuportável. E quase se atropelam aos gritos, aos urros. Subindo nos baldrames, derrubando as caixas de lixo e outros utensílios da escola perante o desespero das poucas adolescentes encarregadas da ordem e da disciplina das crianças, como se elas fossem cachorrinhos amestrados para o circo da vida. A conversa se interrompe. Era impossível ouvir qualquer som além do grito dos meninos querendo agarrar com unhas e dentes os poucos minutos de liberdade que possuiam.
Terminado o intervalo quase todos voltam às suas salas. Menos um grupo de pequeninos que, sob a orientação de uma nervosa professora, se preparava para uma atividade fora da sala - o que considerei menos mal, causando-me um rápido suspiro de alívio.
Recomeçamos, diretora e eu a dita conversa. É quando ouço aquela turma cantando uma musiquinha que, de tanto chamar-me atenção, decorei a letra. E era assim: "...para ouvir o som do mosquitinho e as batidas do meu coração zinho...pego a chavinha e tranco a boquinha..." Aparentemente normal. Se não fossem dois detalhes sórdidos. Primeiro, ao pronunciarem as palavras pego a chavinha e tranco a boquinha os garotos encenavam aquilo: abaixando, fazendo o gesto de apanhar a chave, levando-a à altura da boca; fazendo um movimento rodando a mão para a direita, exatamente como se a trancassem. E em seguida, no mais absoluto horror pedagógico, cantarolavam de boca fechada - hum,hum,hum!... - hum, hum, hum!... no mesmo ritmo da música e sob os gritos da professora, para que prendessem bem os dentes para dar o tom por ela pretendido.
Claro que isso não passa de um treinamento brutal, uma verdadeira tortura pedagógica, para que, inconscientemente, estas crianças, num fututro próximo, calassem suas "boquinhas" frente aos rigores, aos abusos da vida. Quem tranca a sua boca assim, ludicamente e em grupo, jamais irá abri-la para reclamar, gritar, reivindicar, criticar se for preciso. Quando forem negados os seus direitos ou retirada a sua dignidade. Assim se cumpria o fim precípuo das instituições escolares iníquas como as nossas: a de formar cidadãos subservientes, ingênuos e disponíveis à perversidade do mundo, aos rigores da elite, aos ideais da burguesia exploradora e insensível. Cidadãos incáutos e facilmente explorados, consumidos, escravos dissimulados pela modernidade estarrecedora do capitalismo perverso.
Tentei falar com a diretora, que, num sorriso disfarçado por trás dos óculos escuros, rodando nos dedos o chaveiro do seu carro último tipo, pois precisava sair para cumprir um compromisso pessoal, disse-me: - Liga não, professor, é assim mesmo. Meu filho já cantava sempre esta música para mim, com a maior graça. Gosto de ver os alunos cantando assim porque mato um pouco as saudades dele, hoje adulto, casado e morando bem longe de mim. E, mudando rapidamente de assunto, tratando logo de questões objetivas sobre meu trabalho, preço, contrato, estas coisas práticas da ideologia do capital de que ela, certamente, tanto gosta.
Arrepiado, confuso, assinei os papéis, depois de titubear em relação a prestar algum serviço para aquele tipo de gente. Mas a sabedoria do universo, imensamente maior do que todas, inspirou-me a aceitar o convite. Pois é exatamente ali que posso fazer alguma diferença, levando a sementinha de fraternidade, respeito, amor, consciência crítica e vontade política para fazer um pouco de bem. Embora tardio. Estarei lá discutindo com estes profissionais. Abrirei os trabalhos com esta pouco respeitosa crônica. Espero que a ficha caia - embora considero um pouco difícil - E tomara que eu saia vivo de lá.
Contudo, isto suscitou-me uma enorme dúvida. Por que será que as escolas geralmente se chamam Pedacinho do Céu, Cantinho da Felicidade, Menino Jesus de Praga, N. Senhora de não sei o quê; Madre Teresa de Calcutá? Quando, na verdade, elas deveriam se chamar: C. E. Cantinho do Inferno, Adolf Hitler, Timotty McWey, Osama Bin Laden, Jack, o estripador, Klaus Outman, o carniceiro de Lyon, Suzane von Richthofen, e, por que não (?), Alexandre Nardoni... seria muito mais justo, lúcido, digno e coerente com o que elas realmente fazem.
Ah! Lembrei-me, Sílvia Calabresi, aquela famosa torturadora de Goiânia seria uma bela homenageada se tivéssemos escolas com o seu nome. Pelo menos estaríamos fazendo alguma conjunção com a verdade dos fatos.
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Antonio da Costa Neto



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