sábado, 24 de maio de 2008

A BÊNÇÃO, PAULO LEMINSKI


Há muitos modos de se torturar uma criança.

Pode-se, por exemplo, fazer uma fogueira com todos os seus brinquedos e obrigá-la a assistir a cena. Esse era o método favorito entre os mongóis, que entendiam de tortura infantil como poucos.

Um outro método muito eficiente também é chegar de repente e dizer para a criança: - "Tua mãe morreu." Salvo caos raríssimos como o do imperador Nero, essa técnica dá resultados lancinantes. Já os russos preferem métodos mais sutis. Para torturarem uma criança eles enchem um quarto escuro com as obras de Lênin e Stalin e deixam a criança lá dentro por vinte e quatro horas. Os americanos, mais pragmáticos, preferem levar a criança a um parque de diversões bem distante e dizer: - "Titio vai ali comprar pipocas." E nunca mais aparecer. Só isso. Soube-se de casos em que pais ou responsáveis deixaram seus filhos ouvindo Frank Zappa, a todo volume, no escuro e por horas a fio, tortura preferida pelos pais contraculturais dos anos 60.

Pais imaginativos gostam de torturar seus filhos contando-lhes histórias em que lobos tentam entrar nas casas dos porquinhos, sendo que a criança é um dos porquinhos. Ou histórias onde a bruxa malvada prende a Branca de Neve numa jaula para que ela (a Branca, não a criança) engorde e fique no ponto para ser assada no churrasco de domingo. Essa tortura ficcional - é muito eficaz porque vai repercutir na vida onírica dos petizes, produzindo, a longo prazo, sonhos angustiantes e pesadelos insuportáveis, dos quais, a criança, inevitavelmente, acorda gritando: - "Mamãe!" ...É a hora certa para dizer: - "Volte a dormir, querida, a mamãe, o lobisomem comeu!" (...)

Mas, de todos os métodos para torturar crianças, nenhum se compara ao método chamado "escola". A escola deve ter sido inventada por um verdadeiro discípulo do Marquês de Sade. Basta dizer, para vocês fazerem uma ideia, que nestes hediondos calabouços as crianças são obrigadas a memorizar que dois mais dois "são quatro", que "pi" é um número sem fim, que um ao quadrado é um e que todo o número multiplicado por zero - mesmo que sejam infinitos bilhões - é zero. E não para por aí.

Uma das torturas mais requintadas usadas nestas tais "escolas" é a chamada análise sintática. Nome inocente para disfarçar um dos mais requintados tormentos que a doentia mente humana conseguiu inventar.

Basta dizer que na tal "análise sintática" diante de uma frase uma criança tem que adivinhar quem é o sujeito, quem é o predicado, quem é o objeto. Não nesta ordem, é claro. Adivinhar é uma brincadeira divertida. Mas não no caso da "análise sintática." Se a criança adivinhar errado, reprova, e vai ter que fazer de novo, aquele ano inteirinho tentando advinhar - sob a tortura, o pavor e o medo da reprovação - quem é o sujeito, quem é o objeto, quem é o predicado. Depois de reprovar uma, duas, três, quatro vezes, a criança desiste e prefere ser trombadinha, traficante, surfista ou cabo eleitoral de Paulo Maluf. Tudo, menos sujeito, predicado e objeto.

Peguem, por exemplo, o tal "sujeito inexistente", o sujeito das orações que expressam os fenômenos atmosféricos. Chove. Quem chove? Ninguém chove. Venta. Quem venta? O vento. Errado. Ninguém venta. O vento se venta sozinho.

Que dizer do tal "sujeito oculto"? Claro que o "sujeito oculto" é sempre o principal suspeito do crime de haver frases no mundo. A não ser por isso, por que se ocultaria? Exemplo de sujeito oculto: "O assassino se escondeu atrás da parede de tijolos." "O espião da KGB usa óculos escuros." "Jack, o estripador era filho da rainha Vitória." "O Menguelle está vivo e muito bem no Paraguai." Esses sim, são os verdadeiros casos de sujeitos ocultos. Mas as crianças levam anos para encontrá-los. E quando os encontram, já estão de cabelos brancos como Sherlock Holmes.

A invenção da escola, como vocês estão vendo, torna obsoletos todos os antigos métodos de torturar crianças. Com mais escolas, as crianças sofrerão muito mais, se tornarão ingênuas, omissas e prontas para aceitarem todas as torturas possíveis. Os adultos se divertirão muito e todos teremos, enfim, "aquele Brasil com que todos sonhamos."
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(LEMINSKI, Paulo. ...E por falar em tortura. Jornal A folha de S. Paulo, de 18.09.85, citado na íntegra por Antonio da Costa Neto, in, Paradigmas em educação no novo milênio. Goiânia: Ed. Kelps, 2004).

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