Antonio da Costa Neto
Era uma vez um grande Reino só de cigarras e formigas. As formigas eram muitas, bem mais do que as cigarras e estas, por sua vez, se julgavam mais fortes, bonitas, mais capazes, espertas, inteligentes, preparadas e trataram então de estabelecer as leis, as regras e normas para a vida cotidiana do Reino. E tudo parecia caminhar bem. Enquanto as cigarras habitavam suas casas enormes e muito confortáveis, cercadas de imensos jardins, lagos e cachoeiras, as formigas se amontoavam como podiam em pequenos buracos, onde famílias inteiras se ajeitavam nas noites de frio, depois de comerem as poucas folhas que sobravam dos lautos banquetes das cigarras-patroas.
Como começavam a acontecer alguns problemas em relação à enorme população de formigas e já faltavam comida, escolas, remédios, diversão e outras coisas importantes, as cigarras resolveram formar uma Assembléia Geral e lá elaboraram um estatuto – um conjunto de leis e princípios constitucionais – para continuar garantindo a paz, a serenidade , o conforto material e o ambicionado exercício do poder, pelo menos para elas, as cigarras, é claro.
As crianças formigas passaram a ser encaminhadas para as escolas das cigarras-professoras que eram cuidadosamente preparadas para repassarem as lições que elaboravam para o bom funcionamento do Reino. Aos domingos, a quase totalidade das formigas e algumas cigarras desocupadas iam para as sinagogas onde eram catequizadas para ganharem o céu onde cigarras muito boazinhas iriam garantir que todos tivessem muita paz e alegria depois que partissem do Reino.
Elas ditavam o valor dos salários, o preço das coisas; administravam ao seu bel prazer o dinheiro suado com que as formigas pagam suas dívidas infinitas, os pesados impostos para sobreviverem ainda que miseravelmente.
Assim, dia-a-dia, as cigarras iam ficando muito mais ricas e poderosas, donas de estabelecimentos comerciais, fábricas, escolas, ongs e sei lá mais o que, onde as formigas eram obrigadas a trabalhar dia e noite, retirando dali seu mísero sustento, esperando eternamente o tempo em que viveriam em paz sob a proteção daquelas cigarras boazinhas que só faziam o bem para todos.
Certa noite muito fria um bando de formigas quase morto de fome e frio resolveu assaltar um supermercado onde abundavam casacos, cobertores e toda a sorte de comidas. A guarda das cigarras reagiu , houve troca de tiros e infelizmente a formiga atingiu a cigarra que acabou morrendo. Foi um escândalo total. Só se falava no tal crime, o que levou as cigarras a se reunirem de imediato, e, sem muita discussão decretaram a pena de morte para todo e qualquer crime cometido pelas formigas que, afinal de contas, se tratava de seres minúsculos, de composição pouco complexa; bichinhos miseráveis e desprezíveis, sem a menor graça ou importância e que não fariam a menor falta, já que eram tantas.
No dia da execução da formiga todos se reuniram na praça para a grande festa. Como ela estava magrinha, morreu fácil, fácil e por toda a noite foi um grande carnaval para comemoração de cigarras e formigas, pois afinal, estavam condenando o crime, fazendo justiça e logo tudo se resolveria. Mas novos assaltos, e crimes envolvendo formigas pobres, faveladas, pretas, estranhas, assassinas, adolescentes, drogadas, analfabetas continuaram a acontecer. Pois estas, famintas e desempregadas tinham de arranjar formas de alimentarem suas famílias. E claro, sempre acabavam presas, condenadas, executadas e mortas, com novas comemorações e novas festas.
Assim o Reino começou a ficar uma beleza; um grande silêncio, sem formigas para sujar as ruas, depredar os prédios públicos, e, principalmente, cometer os assaltos e assassinatos terríveis e horripilantes. As escolas estavam vazias, os parques sem ninguém e então começou a faltar quem lavasse as preciosas roupas das cigarras, quem limpasse suas casas, cozinhasse e passasse para elas, quem trabalhasse para que a economia do Reino pudesse crescer e depositarem o lucro em suas contas no exterior, fazer passeios luxuosos, comprar iates, ilhas e mansões.
Se não tinham mais formigas, a quem as cigarras iriam explorar? Quem iria votar nelas para mantê-las no comando do Reino que parecia ser só de cigarras? De quem elas iriam confiscar as poupanças, cobrar o imposto de renda e impor pesadas taxas e multas? A quem elas iriam governar?
Desesperadas elas convocaram uma Nova Assembléia para destituir a pena de morte, pois senão, o Reino desapareceria em breve e elas não poderiam mais manter aquela vida cheia de luxo, prazeres e ostentação. E embora fosse sexta-feira, todas as cigarras constituintes compareceram levando um discurso afiado e muito comovente. O plenário lotado continuou os trabalhos noite adentro, sem que ninguém demonstrasse o menor sono ou cansaço, pois o assunto era de maior importância e dele dependeria a sobrevivência das cigarras-autoridades.
Por fim, foram unânimes em abolir imediatamente a pena de morte, sob os auspícios do sagrado direito à vida e da responsabilidade de se defender com toda compaixão e o mais puro dos sentimentos de quem as cigarras bondosas, honestas, sinceras e justíssimas democraticamente representavam...
Tarde demais, não existiam mais formigas. Agora era um Reino só de cigarras. Só de autoridades. Desesperadas, enlouquecidas, humildes, piedosas e com os olhos rasos d’água começaram a trocar entre si, culpas e acusações procurando, sem esperanças ou perspectivas, alguma solução para o caos que tardiamente se instalara.
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