MÉTODOS DE CONFINAMENTO E
ENGORDA
(COMO FAZER RENDER MAIS PORCOS,
GALINHAS, CRIANÇAS...)
(*)João Batista Freire
Porcos, vacas,
suponho ainda que galinhas, perus e outros animais de pelo e penas, confinados,
não só engordam mais, como produzem mais leite e carne, botam muitos ovos e
fazem menos sujeira. Não sei se essa questão da sujeira é relevante, mas,
enfim... melhor sujeira num cantinho apenas do que no pasto ou no terreiro
todo. Quando confinados, estes animais se mostram muito mais econômicos: menos
terra, pasto e comida, menos mão-de-obra, e, ao mesmo tempo, mais produção.
Coisa de país rico, porque países pobres e vastos como o Brasil, por exemplo,
não precisam economizar, pelo menos, com bichos e terras.
Muitos homens da terra tornaram-se sábios e acabaram com os
latifúndios: dividiram a terra e confinaram os bichos. Mais gente com menos
terra, menos miséria. O campo organizava-se, a cidade crescia e
racionalizava-se, as chaminés enchiam os céus de fumaça. Tudo se dividia, tudo
se procriava. Também os mestres-escolas se modernizavam e faziam o mesmo, e,
melhor, com crianças.
De alhos para bugalhos. Mas uma coisa tem muito haver com a
outra, e, eu, logo, vou dizer o porquê.
Jeremy Bentham nasceu em 15 de fevereiro de 1748 em Londres.
Gênio, lia em grego e latim aos 4 anos de idade. Precoce, faria alegre qualquer
escola objetiva destas de hoje. Ainda atual, Bentham logo ganhou adeptos,
influenciou a gente do seu tempo e tornou-se líder de pensamentos e pensadores.
O que me parece, quando ocorre tal fenômeno, mais uma manifestação da qualidade
dos liderados do que do líder. Possivelmente, pela incorrigível de servos voluntários de que todos padecemos
um pouco, desde, pelo menos, quando
Etienne De La Boetie sentou-se para descrever aspectos singulares do espírito
humano, talvez, entre 1554 e 1576. De lá para cá recusamo-nos a nos debruçar
sobre a gênese de tal servilismo, como denunciado por Marilena Chauí e que bem
poderia ter sido feito por aqueles que se preocupavam com a gênese da inteligência ou dos sentimentos,
da sexualidade, ou, ainda, das relações sociais. Nas escolas aprende-se melhor
o hábito de sentar do que refletir sobre as leis matemáticas, pois é pra
aprender o melhor jeito de colocar o traseiro que vamos à escola, e, não, para
exercitar as inquietações mentais. Ou não?
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(*)Licenciado em Educação Física, é mestre e doutor em Psicologia Educacional pela Universidade de São Paulo. Livre Docente em Pedagogia do Movimento, professor da UNICAMP e coordenador do grupo de estudos Oficinas do Jogo.
(*)Licenciado em Educação Física, é mestre e doutor em Psicologia Educacional pela Universidade de São Paulo. Livre Docente em Pedagogia do Movimento, professor da UNICAMP e coordenador do grupo de estudos Oficinas do Jogo.
Nada de particular contra Jeremy Bentham, brilhante na sua
filosofia utilitarista. Também nenhum interesse especial em sua obra ou ideias,
das quais nossa sociedade de hoje parece andar, particularmente, saudosa. Do
que escreveu, num ponto apenas me detenho, com atenção sempre redobrada: no panóptico,
seu projeto para o sistema penitenciário.
Não sei, exatamente, com que intenções teria Bentham
projetado seu panóptico. Não sou dado a estudar o pensamento de pensadores,
como se também, não o fôssemos. Mas Foucault era (ambas as coisas) e dissecou o
panóptico. Parte de seu livro Vigiar e punir
é dedicada à análise do sistema penitenciário de Bentham. Terrível é a palavra
que define meus sentimentos diante das colocações de Foucault. Bentham pensou
numa construção circular que abrigaria prisioneiros, com a seguinte disposição:
as alas fariam fronteira umas com as outras, todas voltadas de frente para uma
torre localizada no centro do presídio. Para a torre central e para o mundo
exterior eram abertas, portanto, vazadas pela luz natural e iluminadas por ela,
tornando, portanto, impossível a privacidade dos prisioneiros. Todos os
condenados enxergavam o guarda que os vigiava da torre. Mas nenhum prisioneiro
podia enxergar os companheiros do lado. Assim, um único guarda postado na torre
central, vigiaria, ao mesmo tempo, todos os condenados. Requinte de vigilância,
em pouco tempo podia, até mesmo, retirar o guarda. Simbolizado pelos detentos,
ele os vigiaria de dentro de suas almas. Em cada prisioneiro um vigia atento
para sempre.
Causa-me arrepios pensar no panóptico quando se tem em mente
prisões, manicômios, hospitais ou escolas, principalmente, estas últimas.
Métodos de vigilância sempre me causaram mal-estar. Sei para que servem e sei
como atuam. Invariavelmente, cerceiam as manifestações corporais e ritualizam a
vigilância até que a sentinela se instale simbolicamente dentro do vigiado. Daí
para a frente, a tarefa se simplifica, e, somente aí, ela se cumpre.
De todas as instituições panópticas, a que me interessa mais
analisar mais particularmente é a escola. Não como o fez Foucault com sua
intensidade. Porém, dentro dos limites do texto, do ponto de vista da
simbologia da figura do panóptico. Mesmo quando o professor se ausenta por meio
a uma prova escrita os alunos relutam em “colar”, ainda que a “cola” seja um
recurso absolutamente aceitável dentro das normas previamente estabelecidas –
tudo pode desde que o autor da “cola” não seja descoberto. O exame vale uma
nota e não, um conhecimento. Na ausência física do examinador, no entanto,
permanece a sua presença simbólica que continua a vigiar a todos, a cercear a
“cola” de boa parte dos alunos e a
prejudicar a eficiência dos que se propõem a vencer a vigilância simbólica do
professor ausente.
O panóptico penetra nas entranhas do vigiados – prisioneiros,
doentes, ou alunos, não importa. As crianças, desde cedo, tornam-se vigiados
que transgredirão talvez menos. Transgredir torna-se, por vezes, uma arte,
tentada por poucos. E quando observo o empenho dos professores de educação
física, o meu mesmo, com jogos de construção de regras, nossas preocupações me
inquietam. Regras construídas pelos alunos costumam ser pouco transgredidas. Em
nome do que se faz isso? Não seria outra maneira de instalar a torre de vigia,
dado que transgredir pode se constituir, por vezes, no sintoma mais positivo da
reação, da autonomia? A forma mais democrática de vivenciar um jogo, a da
construção de regras pelos alunos, teria, de alguma forma, a ver com a
representação simbólica do panóptico. Desde que a encaremos (a construção das
regras) como panaceia de uma democracia de fachada, que é essa depauperação do
próprio nome da democracia, que é esta banalização do conceito de democracia.
Não se pode construir por construir regras nos jogos infantis. A construção de
regras deveria pressupor a autonomia para transgredi-las de tal forma que os
professores que se interessem por este processo não se espantassem com a sua transgressão, mas antes, se alegrassem
com estas reações vivas de autonomia da criança. Quanto a estas transgressões
serem chamadas de desonestidade, de falhas de caráter, atribuo isso mais ao
incorrigível moralismo que possuímos e à tarefa assumida de bem servir ao poder
que, consciente ou inconsciente, representamos.
Mais um pequeno salto, nada tão grande que não permita
voltar às crianças e seus confinamentos. Em 1938, pouco antes do início da
Segunda Guerra Mundial, Bruno Betelheim foi enviado ao campo de concentração de Dachau. Entre Dachau e Buchenwald
permaneceu por dois anos prisioneiro dos nazistas, tentando, desesperadamente,
sobreviver, valendo-se de todos os recursos que possuía, incluindo, a
psicanálise. Para ele, pessoalmente, os conhecimentos psicanalíticos valeram a
vida; para a ciência, valeram uma psicanálise dos horrores dos campos nazistas
de concentração.
O relato de Betelheim é espantoso. Mais espantoso pelos
métodos de disciplina e controle que relata do que pelos detalhes sobre
torturas e mortes. Os objetivos da polícia nazista nos campos eram bem
definidos. Segundo Betelhaim, “um dos
principais objetivos era minar a individualidade dos prisioneiros e
transformá-los em massa dócil da qual não pudesse surgir nenhum ato de
resistência individual ou coletiva.” Uma receita quase generalizada entre
os tiranos: destruir a identidade individual das pessoas frequentemente sob a
panaceia da utopia coletivista, cujo resultado seria, provavelmente, antes o
retorno de espécie animal do que o crescimento da sociedade humana. A ciência
da motricidade humana bem poderia ter nascido num alojamento de prisioneiros em
Dachau, desde que abrisse mão do adjetivo “humana.” Após a sirene de despertar,
isso ainda de madrugada, os prisioneiros tinham 45 minutos para se arrumar
antes que iniciassem os trabalhos do dia. Tempo mais que suficiente para
qualquer um de nós que não habita um alojamento nazista. Entre as diversas
tarefas estava a arrumação das camas. Basta descrevê-la e nada mais será
necessário para que se compreenda o êxito dos métodos disciplinares alemães
durante a Segunda Grande Guerra. Nas palavras de Betelheim:
“Para se
fazer direito a cama era preciso estufar os colchões de palha e nivelá-los de
forma que ficassem lisos como a superfície de uma mesa, ajeitando os lados de
modo a formar um retângulo perfeito. Se houvessem travesseiros, estes deveriam
ser colocados sobre o colchão e também arranjados de modo a formar um cubo
simétrico. Tanto os travesseiros como os colchões tinham de estar recobertos
por uma colcha de xadrez azul e branco. Os quadrados do xadrez eram minúsculos,
mas tinham de estar dispostos de maneira a ficarem perfeitamente alinhados,
tanto no sentido horizontal, como no vertical. Para dificultar as coisas, não
só cada cama tinha de estar impecavelmente alinhada com as demais. Alguns SS
verificavam-no com metros e níveis para
se assegurarem de que as camas tinham sido bem montadas e de que os
retângulos estavam perfeitos; outros, ainda, disparavam tiros raspando nos
colchões para ver se estavam, de fato, absolutamente nivelados.”
Uma tecnologia perfeita, cujo desenlace não ocorreu com o
fim da guerra. Em suas nuances menos perversas continua destruindo esperanças e
individualidades para que os poderes instalados – em suas diversas colorações –
possam persistir controlando as pessoas. Uma tecnologia que procura roubar às
pessoas, muito antes que a morte o faça, sua individualidade. A
individualidade, o homem à subtraiu à espécie. Suprema conquista, nem mesmo o
caráter aparentemente irreversível da morte a derruba. Escreve Morin que “o caráter categórico universal, da
afirmação da imortalidade é da mesma
craveira do caráter categórico, universal, da afirmação da própria
individualidade.” Porém, roubar a individualidade em morte não atende à
economia do poder. Roubá-la em vida, investi-la no Estado sim, atenderia aos
propósitos de disciplina e controle sobre os exemplares individualizados da
massa amorfa. Que os horrores da more se atenuem pela afirmação do grupo
social. “Quando a sociedade se afirma em
detrimento do indivíduo, quando, simultaneamente, o indivíduo sente esta
afirmação mais verídica do que a da sua própria individualidade, a recusa e o
horror da morte dissipam-se, deixam-se vencer.” Investimento que atende ao
seu paroxismo nos estados de guerra, quando, então, a presença maciça do Estado
prevalece sem resistências sobre o indivíduo.
Para o poder é fundamental que os indivíduos possa ser
controlados. Mas os homens não podem ser controlados como indivíduos. Daí o
deslocamento das individualidades para as sociedades, para as cidades, como se
ambas as instâncias nunca pudessem estabelecer uma harmonia de convívio. Mas
para perder sua individualidade os homens precisam abdicar de suas conquistas,
precisam retornar à condição primitiva de espécie. Os homens, em nome do Estado
se tornam vazios de fantasias, pois, que
assim, como se dizia na sua voz rouca o monstro Gmork, o temível monstro da História sem fim foi encarregado pelo
Nada de perseguir e matar o herói Atreiú, o único que poderia salvar Fantasia,
e, com ela, a esperança dos homens. O poder que estava por trás do Nada
pretendia que todos os habitantes de Fantasia fossem tragados por ele, para
servi-lo. Como dizia Gmork com a sua última conversa com Atreiú, quando este,
finalmente, fosse levado pelo Nada:
“Quem sabe
para que vai servir. É possível, que, com a sua ajuda, se possam convencer os
homens a comprar o que não necessitam, a odiar o que não conhecem, a acreditar
no que os domina ou a duvidar do que os podia salvar. Por seu intermédio,
pequenos seres de Fantasia, fazem-se grandes negócios no mundo dos homens,
desencadeiam-se guerras, fundam-se impérios...”
Métodos de confinamento e engorda –
aplicáveis, indiferentemente a porcos, vacas, galinhas e homens. Atesta-o a
metodologia do traseiro, a mais cruel e mais frequente nas nossas escolas.
Crianças confinadas em salas e carteiras, mais imóveis que os bichos que já
mencionei. Como se, para aprender, fosse necessário o contato permanente do
traseiro com a carteira. Mas, assim como os nazistas o sabiam, o sistema escola
também sabe. O corpo tem que se conformar aos métodos de controle, caso
contrário, as ideias não podem ser controladas. O fascismo, que nunca
desapareceu, sabe que ideias e ações corporais são a mesma coisa. E, se se
quiser controlar as ideias, basta controlar os corpos. Quem tem o controle do
corpo tem o controle das ideias e dos sentimentos. Quem fica confinado em salas
apertadas, sentado imóvel em carteiras militarmente alinhadas por milhares de
horas durante boa parte da vida também aprende a ficar sentado nas cadeiras, de
onde, na maioria das vezes nunca vai conseguir se erguer. Se a Educação - em geral – e a Educação física não sabem, o
poder sabe, e muito bem, como educar a motricidade das crianças, como
educr-lhes o caráter e as ideias.
É que o corpo imita o poder em seus contornos
mais sutis. E aí, o corpo acaba a ser como o poder: imóvel, conservador,
rígido, tenso, asséptico e frio. Como seriam as ideias num caso assim? – Do
mesmo feitio, sem dúvida alguma. Nunca nenhuma educação e nenhuma educação
frísica foram tão eficientes como aquelas praticadas pelos nazistas durante a
ascensão de Adolf Hitler e nem tão bem recebidas pelos “pensadores brasileiros”
da educação – em especial, a do corpo -
da época, como ambas o foram. Homens rígidos de têmpera e coragem,
formados por uma educação e uma ginástica rígidas , tanto na Alemanha, quanto
aqui, para a eugenia da raça.
E em especial, esta ginástica e esta
educação rígidas, hipercorrigidas
chamadas por nossos “pensadores” de hoje biologizantes demais e jamais foram
tão politizantes – no sentido alienante do termo – com o que, aliás, os poderes
se deleitam. A mais eficaz economia do corpo, uma tecnologia mais que perfeita
a serviço do autoritarismo. A economia de gestos nos acampamentos dos
prisioneiros era de tal eficiência que mantinha o controle com um mínino de
esforços e de gastos. A racionalização dos gestos durante as aulas de Educação
Física – só para exemplificar – para os jovens alemães garantia a mão-de-obra
cívica para uma sociedade que pretendia o desaparecimento do indivíduo, a morte
das esperanças, o fim da fantasia, enfim, o desfecho da História sem fim...
Não é por acaso que a Educação Física não tem
qualquer importância nas escolas. Não incomodará e não será incomodada enquanto
mantiver como paradigma o estereótipo militar
ou o palavrório inócuo e alérgico a práticas. Mas seria fortemente
incomodada se aprendesse a praticar a liberdade dos corpos. Não terá paz
durante longo tempo enquanto denunciar o universo pedagógico como um universo
do fracasso dos propósitos explícitos, mas, apenas dos explícitos. Melhor
dizendo, os problemas da rejeição da Educação Física agravar-se-ão quando puder
mostrar que as pessoas vão à escola mas não aprendem. Quase ninguém aprende
nada de significativo, apesar de tanto tempo na escola. E as pessoas não
aprendem aquilo que está declarado nos programas pedagógicos, inclusive, porque
aquele não se dirige a pessoas, especialmente, quando se trata de crianças. É
um ensino que se dirige às crianças ideais, e, nunca, às crianças reais. Que
criança pode ser somente, polida, imóvel, dócil, inteligente, bondosa,
silenciosa... enfim, dotada de todas as virtudes que compõem o modelo ideal de
aluno? Criança ri, corre, chuta, faz barulho, perturba. É perversa, bondosa,
amorosa e maldosa. Que pedagogia se dirige a esta criança? Que pedagogia
investe na criança que fantasia, que esperneia, que corre, que ri, que
grita?... Talvez, só uma pedagogia que ainda está nascendo, em parte, na
Educação Física. Ou uma pedagogia que não dê nomes a disciplinas, mas que
admite que as pessoas aprendem como são: criança como criança, adulto como
adulto, velho como velho.
Parece uma loucura, mas é a lógica do sistema
escolar: crianças não podem raciocinar se movendo; não podem refletir jogando;
não podem pensar fantasiando. Elas só aprendem se forem passivas e submissas,
de preferência, a tudo. Então, para que se tornem inteligentes e produtivas,
precisam ser confinadas e engordadas. Esta sim, é a economia que o sistema
escolar faz de tudo para perpetuar.
Os nazistas sabiam. Bentham, com o seu
panóptico, também o sabia. Gmork, o lobo monstruoso de Fantasia, trabalhava em
nome do poder para executar os desígnios do Nada. Em todos os casos era preciso
imobilizar, desesperançar, enrijecer, esterilizar. Em todos os casos era
absolutamente necessário que todos os símbolos fossem substituídos pelos
símbolos do poder. Todos os tiranos, todos os autoritários sempre souberam como
fazer para controlar as pessoas e manter o poder: apenas disciplinar seus corpos, fazendo com que simbolizem tão somente
o nada. A educação em geral e a educação física em particular sempre também
fizeram isto. Também se colocaram a serviço do Nada, também trabalharam e
trabalham para a morte de Fantasia, também constroem seus panópticos. E o fazem
com exemplar eficiência, como, inclusive, a sala de aula tão bem lhes ensinou.
Aprendeu a vender a ilusão do gesto na aula de educação física e da teoria nas
aulas convencionais, o que, aparentemente, no caso da educação física, pode
exercer a motricidade, mas nunca aprendeu – ou ensina, é claro – a receita da
liberdade. Nunca aprendeu a compreender a motricidade ou a complexidade humana.
Nunca aprendeu humanizar a palavra, o contexto, o gesto.
Há algum tempo a motricidade humana vem
ganhando terreno nos textos, nas ideias, nos projetos, nas aulas de Educação
Física. Teve um divulgador importante: o professor Manoel Sérgio Vieira da
Cunha, da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa, que esteve, no Brasil,
durante dois anos, quase sempre polemizando sobre o tema. Como quase sempre
acontece com as ideias novas, as suas foram recebidas com muita desconfiança,
chocou-se demais com as ideias esclerosadas, mesmo dos mais jovens. Mas não
importa. Ficaram por aqui. Parece que no Brasil, apesar de tantas misérias, o
campo ainda é fértil para as novas ideias. Mas não sou eu quem deve defender as
ideias do Professor Manoel Sérgio; ele o faz melhor do que eu. Sem ser o
inventor da ideia, ele a defende e divulgou. Ela estava por aí, procurando quem
bem a acolhesse.Felizmente, caiu no nosso terreno, no terreno da corporeidade,
no terreno da atividade motora.
A motricidade humana rejeita a ideia de
smplificação. Acolhe a ideia de complexidade. Rejeita a ideia de determinação,
de previsibilidade, de irreversibilidade. Acolhe a ideia de caos, de
imprevisibilidade, de incerteza. Do ponto de vista da motricidade, nunca poderíamos
nos referir a pernas que correm, mas a pessoas correndo. Quem corre não é a
perna ou o pé, mas, um ser humano, num determinado terreno, de acordo com as
suas motivações, sob certas condições climáticas, rodeado de cultura, de noções
políticas, econômicas e sociais de um certo momento histórico. Não é apenas um
pé a chutar uma bola, mas um sujeito histórico, num contexto cultural
específico, etc. E ainda, do ponto de vista da motricidade humana, não
poderíamos fixar nossa atenção simplesmente, no sujeito que chuta, muito menos
apenas na bola chutada. Nossa atenção terá que se fixar na ação de chutar, que
não pertence nem ao sujeito e nem à bola. Antes, é um acontecimento original,
pertencente ao momento particular do encontro ente o sujeito motivado para
chutar e a bola chutável. Se voltarmos nossa atenção para a ação de chutar que
só existe naquele momento histórico, estaremos nos dirigindo, simultaneamente,
para o sujeito e para a bola. A palavra chave neste caso é – interação. Quando investigamos o fenômenos
da motricidade humana, nós descrevemos a face cultural do gesto, descrevemos o
visível que não vem desacompanhado, mas antes, traz consigo tudo aquilo que não
se vê. Eu mesmo, recentemente, tive ocasião de afirmar:
“Pela
motricidade o homem se afirma no mundo, realiza-se, dá vazão à vida. Pela motricidade
ele dá registro à sua existência e cumpre a sua condição fundamental de
existir. A motricidade é o sistema vivo do mais complexo de todos os sistemas:
o corpo humano... é o discurso da cultura humana se processando.”
Acho que já posso voltar a falar dos “Métodos de Confinamento e Engorda...”
Pode ser muito interessante confinar uma vaca num estábulo, a comida à frente
de seu pescoço, dosada, medida para o máximo aproveitamento de leite e carne. Tudo vale desde que ela – a vaca – se torne
mais econômica. Até música clássica tem sido tentada com sucesso. Quem diria,
Mozart nos estábulos, a fazer jorrar leite das gordas tetas das vacas!
As vacas ainda têm Mozart; as crianças, nem
isso.Ficam confinadas em espaços menores do que os estábulos, obrigadas a
realizar, individualmente, questões coletivas. O problema é o mesmo para todas
que devem resolvê-lo individualmente. Bem no tempo em que a escola diz que a
criança está entrando na sociedade dos homens. As vacas não compreendem o que
ocorre: as crianças poderiam. As vacas têm a motivá-las, no mínimo, os
instintos; as crianças,o prêmio ou o castigo das notas. Mas, assim como as
vacas só engordam se não puderem realizar muitos movimentos, também as crianças
só “engordarão” se não puderem se mexer. Mas engordar o quê? Ora, engordar o
comportamento esperado. Engordar a incompreensão, a servilidade, a indecisão,
engordar a alienação, a desesperança a inabilidade. Tornam-se mais econômicas.
Em pouco tempo apresentam imensa economia para o poder, à medida em que servem
com mais eficiência. Os cidadãos tornam-se gordos co conhecimento escolar.
Há histórias que, de tanto serem repetidas,
cansam. Criança crítica, criativa, autônoma, crianças da vanguarda da educação
e da Educação Física, já que falamos de bichos, é conversa para boi dormir. A
criança é crítica e criativa quando pode viver como criança. Criança que parece
adulto é de uma estupidez sem par. Ora, a crítica da criança deve se referir ao
contexto de criança que ela vive. Deve se referir ao seu contexto lúdico, seu
universo de fantasias, de habilidades motoras, a seu cotidiano, enfim, ao mundo
que está ao seu alcance. A tarefa básica de crianças muito pequenas é aprender
a simbolizar. Nós, humanos, se não aprendermos a simbolizar, estamos perdidos.
O mundo não cabe dentro de nós, a não ser como símbolos. Dessa forma, todas as
coisas podem ficar dentro de nós. E quanto mais necessárias, mais precisam ser
simbolizadas: pai, mãe, irmãos, amigos, família, casa, relações, sentimentos,
objetos. Tarefa que não é automática;
antes, precisa de intermediários – o jogo – para ser mais preciso. A
realidade é tratada no jogo para que vire símbolo. Do simples brinquedinho
motor de colocar o dedo ou o paninho na boca o jogo mais complexo de criação de
regras da atividade coletiva.
Pode-se afirmar, portanto, que correr atrás
de uma bola não é um movimento qualquer. É uma expressão humana, simbólica,
cultural, expressão de uma pessoa e de uma bola, de uma situação, uma manifestação
de pensamentos e sentimentos, postos na criança tanto quanto no objeto que ela
manipula. O gesto humano não é um gesto qualquer: é este gesto impregnado de
símbolos, de história, de cultura que temos que nomear muito particularmente,
e, por isso mesmo, estou chamando de motricidade humana. Poderia até
dispensar o termo, por se tratar de uma redundância, mas, uso-o enfaticamente,
o ser que manifesta o gesto.
A criança não tem que ser confinada e
engordada. Não temos, nós, professores, que trabalhar para essa economia do
poder que se quer perpetuar. É possível, sim, educar sem confinar. É mentira
que criança só aprende se ficar imóvel. O fato concreto é que nós não sabemos
ensinar de outro jeito. O fato é que não sabemos ensinar ao sujeito complexo.
Acostumamo-nos a ideias de coisas simplificadas demais, ordenadas,
determinadas, quantificadas. A lição tão bem aprendida por nós – do panóptico,
dos campos de prisioneiros, da servidão voluntária terá que ser esquecida. Nem
fazendeiros, nem guardas da torre, nem militares fascistas ou servos do rei.
Simplesmente, professores é o que somos.
Quero encerrar com o relato de uma
investigação que realizei recentemente, por ocasião do meu doutoramento. Entre
muitas analises realizadas destaco a que se refere às ações individuais de
crianças diante de necessidades de atuação coletiva.
Este estudo, como outro que realizei, dá-me a
impressão repetida de que caímos no conto do vigário. Uma grande ilusão vendida
por um preço muito alto. Vendemos a nossa própria alma. Somos comparados com
tudo o que somos: corpo e alma, porque tudo é a mesma coisa. No entanto, é
possível que a máxima realização individual venha ocorrer a partir da máxima
realização coletiva, ao contrário do que vemos, e lemos, e ouvimos todos os
dias em todos os canais de que o poder dispõe. Tenho visto essa harmonia entre
o indivíduo e o grupo social ocorrer quando, em algumas ocasiões, as crianças
brincam. Tanto que pude descrevê-la e comentá-la nesse estudo que mencionei.
A tarefa solicitada às crianças era para
passarem correndo sob uma corda em movimento circular, movida por duas pessoas,
como na brincadeira de pular corda. O êxito consistia em correr transversalmente
à corda, sob ela, sem ser bloqueado pela
corda. Nessa minha investigação descrevi a ordem utilizada pelas crianças
durante as passagens: se passavam sozinhas, se passavam em grupos de duas ou
mais crianças. Como não havia uma ordem preestabelecida por ninguém, as
crianças podiam ou não passar a cada batida da corda. Ou seja, podiam ou não
passar nenhuma, como podiam passar duas juntas, e até, as 26 ao mesmo tempo,
que era o total das crianças do grupo. Resumindo, como a disposição das
crianças de um dos lados da corda não constituía uma ordem prévia adequada para
realizar a brincadeira, propus-me investigar a constituição da ordem que
permitiu que a brincadeira se desenvolvesse.
O dado mais surpreendente do trabalho é que
houve somente quatro passagens, durante as 35 ocorridas, em que nenhuma das
crianças passou sob a corda. A isso demos o nome de “batidas vazias”. Também
houve um número muito reduzido de passagens individuais. Na primeira parte da
brincadeira (12 passagens), predominaram passagens em grupos de duas crianças,
na segunda parte (12 passagens), predominaram as passagens em grupos de três;
na última parte (11 passagens), predominaram os grupos de quatro crianças. Ou
seja, sem dúvidas, aumentou, consideravelmente, a organização coletiva do grupo.
Nota-se, pelas descrições que, dado o pequeno
número de “batidas vazias”, havia bastante empenho das crianças na brincadeira.
Isto é, elas queriam realizar a atividade. Realizá-la servia evitar a
frustração. Porém, nota-se também, no início da brincadeira era necessário
refrear muito o impulso de correr sob a corda. A falta de habilidade e de
organização iniciais tornaria impossível a realização da brincadeira caso todas
as crianças tentassem passar ao mesmo tempo sob a corda. Mas vejamos: numa situação
desafiadora como essa, a realização consiste em passar correndo sob a corda sem
ser bloqueado por esta. A máxima realização consistiria em passar em todas as
batidas, isto é, em todas as oportunidades. Não passar resulta em frustração.
Passar uma criança sozinha significa essa criança conseguir uma única
realização a cada 24 batidas (já que eram 25 crianças). Passando em duplas,
esta frustração diminuiria, pois poderia passar, provavelmente, após 12
batidas. Em trios, como na segunda parte da brincadeira, uma realização a cada
oito batidas. Na última parte da brincadeira, passando em grupos de quatro,
ocorreu uma realização a cada seis batidas. E, se a organização do grupo
aumentasse, a realização, igualmente, aumentaria, diminuindo a frustração até a
realização máxima, quando todos passassem ao mesmo tempo, se a habilidade das
crianças tornasse, é lógico, isso possível.
Após 35 batidas, no entanto, a brincadeira
terminou. A própria ordem criada continha, em si, o gérmen da desordem. Não foi
possível às crianças aumentar seu poder de realização. As tentativas de passar
mais vezes, passando em grupos de cinco ou mais crianças bateu de frente com a
falta de habilidade para correr, para se organizar, etc. Os limites do coletivo
estavam nos limites do indivíduo e vice-versa.
Para esse caso particular é visível que a
realização individual foi aumentando à medida em que também foi aumentando a
ordem coletiva. Ou seja, à medida em que a motricidade de cada criança foi se
ajustando ao grupo social. O que houve foi uma socialização da motricidade de
cada criança, uma acomodação ao grupo, não importa se consciente ou inconscientemente. O que
importa, no momento é verificar que o desejo de realização individual de cada
criança, se se choca com o desejo de todas as outras é frustrado pelo grupo,
mas, quanto menos tanto mais o grupo se organiza. E essa organização é uma
ordem dada a sentimentos de todas as pessoas do grupo, é o uso social das
habilidades individuais. Indivíduo-e-coletivo completam-se, sem que a
identidade do indivíduo seja morta em
nome do coletivo.
Esse é um pequeno e restrito exemplo, mas não
tanto que não chame a atenção para o fato muito significativo de que a Educação
Física tem o que fazer na escola. Desde, é óbvio, que os professores tenham
clareza do que se passa no meio do jogo.
Crianças não confinadas também aprendem.
Crianças não confinadas precisam de professores e de orientação. Outras
aprendizagens, outros professores, outras orientações.
Bibliografia
Consultada:
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979.
LA BOÉTIE, E de. Discurso da servidão voluntária. Brasiliense: São Paulo, 1 986.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Vozes: Petrópolis, 1 984.
BETELHEIM, B. O coração informado. Paz & Terra: Rio de Janeiro, 1 985.
MORIN, Edgard. O homem e a morte. Europa/América: Lisboa, 1 985.
ENDE M. A
história sem fim. Martins Fontes/Presença: S. Paulo, 1 985.
SÉRGIO, Manoel. Para uma epistomologia da motricidade humana. Compendium: Lisboa, 1
987.
FREIRE, João Batista. De corpo e alma: o discurso da motricidade. Summus: São Paulo, 1
991.
_________. Investigações feitas com René
Brenzinkoffer e Ricardo Machado Leite de Barros – com catalogação de dados para
dissertação de mestrado na área da motricidade humana, 1 976/1 978.