terça-feira, 27 de novembro de 2018

MÉTODOS DE CONFINAMENTO E ENGORDA: COMO FAZER RENDER MAIS... PORCOS ... GALINHAS... CRIANÇAS... (João Batista Freire)










MÉTODOS DE CONFINAMENTO E ENGORDA
(COMO FAZER RENDER MAIS PORCOS, GALINHAS, CRIANÇAS...)

(*)João Batista Freire

 Porcos, vacas, suponho ainda que galinhas, perus e outros animais de pelo e penas, confinados, não só engordam mais, como produzem mais leite e carne, botam muitos ovos e fazem menos sujeira. Não sei se essa questão da sujeira é relevante, mas, enfim... melhor sujeira num cantinho apenas do que no pasto ou no terreiro todo. Quando confinados, estes animais se mostram muito mais econômicos: menos terra, pasto e comida, menos mão-de-obra, e, ao mesmo tempo, mais produção. Coisa de país rico, porque países pobres e vastos como o Brasil, por exemplo, não precisam economizar, pelo menos, com bichos e terras.
Muitos homens da terra tornaram-se sábios e acabaram com os latifúndios: dividiram a terra e confinaram os bichos. Mais gente com menos terra, menos miséria. O campo organizava-se, a cidade crescia e racionalizava-se, as chaminés enchiam os céus de fumaça. Tudo se dividia, tudo se procriava. Também os mestres-escolas se modernizavam e faziam o mesmo, e, melhor, com crianças.
De alhos para bugalhos. Mas uma coisa tem muito haver com a outra, e, eu, logo, vou dizer o porquê.
Jeremy Bentham nasceu em 15 de fevereiro de 1748 em Londres. Gênio, lia em grego e latim aos 4 anos de idade. Precoce, faria alegre qualquer escola objetiva destas de hoje. Ainda atual, Bentham logo ganhou adeptos, influenciou a gente do seu tempo e tornou-se líder de pensamentos e pensadores. O que me parece, quando ocorre tal fenômeno, mais uma manifestação da qualidade dos liderados do que do líder. Possivelmente, pela incorrigível  de servos voluntários de que todos padecemos um pouco, desde, pelo menos,  quando Etienne De La Boetie sentou-se para descrever aspectos singulares do espírito humano, talvez, entre 1554 e 1576. De lá para cá recusamo-nos a nos debruçar sobre a gênese de tal servilismo, como denunciado por Marilena Chauí e que bem poderia ter sido feito por aqueles que se preocupavam com  a gênese da inteligência ou dos sentimentos, da sexualidade, ou, ainda, das relações sociais. Nas escolas aprende-se melhor o hábito de sentar do que refletir sobre as leis matemáticas, pois é pra aprender o melhor jeito de colocar o traseiro que vamos à escola, e, não, para exercitar as inquietações mentais. Ou não?
____________
(*)Licenciado em  Educação Física, é mestre e doutor em Psicologia Educacional pela  Universidade de São Paulo. Livre Docente em Pedagogia do Movimento, professor da UNICAMP e coordenador do grupo de estudos Oficinas do Jogo.
Nada de particular contra Jeremy Bentham, brilhante na sua filosofia utilitarista. Também nenhum interesse especial em sua obra ou ideias, das quais nossa sociedade de hoje parece andar, particularmente, saudosa. Do que escreveu, num ponto apenas me detenho, com atenção sempre redobrada: no panóptico, seu projeto para o sistema penitenciário.
Não sei, exatamente, com que intenções teria Bentham projetado seu panóptico. Não sou dado a estudar o pensamento de pensadores, como se também, não o fôssemos. Mas Foucault era (ambas as coisas) e dissecou o panóptico. Parte de seu livro Vigiar e punir é dedicada à análise do sistema penitenciário de Bentham. Terrível é a palavra que define meus sentimentos diante das colocações de Foucault. Bentham pensou numa construção circular que abrigaria prisioneiros, com a seguinte disposição: as alas fariam fronteira umas com as outras, todas voltadas de frente para uma torre localizada no centro do presídio. Para a torre central e para o mundo exterior eram abertas, portanto, vazadas pela luz natural e iluminadas por ela, tornando, portanto, impossível a privacidade dos prisioneiros. Todos os condenados enxergavam o guarda que os vigiava da torre. Mas nenhum prisioneiro podia enxergar os companheiros do lado. Assim, um único guarda postado na torre central, vigiaria, ao mesmo tempo, todos os condenados. Requinte de vigilância, em pouco tempo podia, até mesmo, retirar o guarda. Simbolizado pelos detentos, ele os vigiaria de dentro de suas almas. Em cada prisioneiro um vigia atento para sempre.
Causa-me arrepios pensar no panóptico quando se tem em mente prisões, manicômios, hospitais ou escolas, principalmente, estas últimas. Métodos de vigilância sempre me causaram mal-estar. Sei para que servem e sei como atuam. Invariavelmente, cerceiam as manifestações corporais e ritualizam a vigilância até que a sentinela se instale simbolicamente dentro do vigiado. Daí para a frente, a tarefa se simplifica, e, somente aí, ela se cumpre.
De todas as instituições panópticas, a que me interessa mais analisar mais particularmente é a escola. Não como o fez Foucault com sua intensidade. Porém, dentro dos limites do texto, do ponto de vista da simbologia da figura do panóptico. Mesmo quando o professor se ausenta por meio a uma prova escrita os alunos relutam em “colar”, ainda que a “cola” seja um recurso absolutamente aceitável dentro das normas previamente estabelecidas – tudo pode desde que o autor da “cola” não seja descoberto. O exame vale uma nota e não, um conhecimento. Na ausência física do examinador, no entanto, permanece a sua presença simbólica que continua a vigiar a todos, a cercear a “cola” de boa parte dos alunos  e a prejudicar a eficiência dos que se propõem a vencer a vigilância simbólica do professor ausente.
O panóptico penetra nas entranhas do vigiados – prisioneiros, doentes, ou alunos, não importa. As crianças, desde cedo, tornam-se vigiados que transgredirão talvez menos. Transgredir torna-se, por vezes, uma arte, tentada por poucos. E quando observo o empenho dos professores de educação física, o meu mesmo, com jogos de construção de regras, nossas preocupações me inquietam. Regras construídas pelos alunos costumam ser pouco transgredidas. Em nome do que se faz isso? Não seria outra maneira de instalar a torre de vigia, dado que transgredir pode se constituir, por vezes, no sintoma mais positivo da reação, da autonomia? A forma mais democrática de vivenciar um jogo, a da construção de regras pelos alunos, teria, de alguma forma, a ver com a representação simbólica do panóptico. Desde que a encaremos (a construção das regras) como panaceia de uma democracia de fachada, que é essa depauperação do próprio nome da democracia, que é esta banalização do conceito de democracia. Não se pode construir por construir regras nos jogos infantis. A construção de regras deveria pressupor a autonomia para transgredi-las de tal forma que os professores que se interessem por este processo não se espantassem com  a sua transgressão, mas antes, se alegrassem com estas reações vivas de autonomia da criança. Quanto a estas transgressões serem chamadas de desonestidade, de falhas de caráter, atribuo isso mais ao incorrigível moralismo que possuímos e à tarefa assumida de bem servir ao poder que, consciente ou inconsciente, representamos.
Mais um pequeno salto, nada tão grande que não permita voltar às crianças e seus confinamentos. Em 1938, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, Bruno Betelheim foi enviado ao campo de concentração  de Dachau. Entre Dachau e Buchenwald permaneceu por dois anos prisioneiro dos nazistas, tentando, desesperadamente, sobreviver, valendo-se de todos os recursos que possuía, incluindo, a psicanálise. Para ele, pessoalmente, os conhecimentos psicanalíticos valeram a vida; para a ciência, valeram uma psicanálise dos horrores dos campos nazistas de concentração.
O relato de Betelheim é espantoso. Mais espantoso pelos métodos de disciplina e controle que relata do que pelos detalhes sobre torturas e mortes. Os objetivos da polícia nazista nos campos eram bem definidos. Segundo Betelhaim, “um dos principais objetivos era minar a individualidade dos prisioneiros e transformá-los em massa dócil da qual não pudesse surgir nenhum ato de resistência individual ou coletiva.” Uma receita quase generalizada entre os tiranos: destruir a identidade individual das pessoas frequentemente sob a panaceia da utopia coletivista, cujo resultado seria, provavelmente, antes o retorno de espécie animal do que o crescimento da sociedade humana. A ciência da motricidade humana bem poderia ter nascido num alojamento de prisioneiros em Dachau, desde que abrisse mão do adjetivo “humana.” Após a sirene de despertar, isso ainda de madrugada, os prisioneiros tinham 45 minutos para se arrumar antes que iniciassem os trabalhos do dia. Tempo mais que suficiente para qualquer um de nós que não habita um alojamento nazista. Entre as diversas tarefas estava a arrumação das camas. Basta descrevê-la e nada mais será necessário para que se compreenda o êxito dos métodos disciplinares alemães durante a Segunda Grande Guerra. Nas palavras de Betelheim:


“Para se fazer direito a cama era preciso estufar os colchões de palha e nivelá-los de forma que ficassem lisos como a superfície de uma mesa, ajeitando os lados de modo a formar um retângulo perfeito. Se houvessem travesseiros, estes deveriam ser colocados sobre o colchão e também arranjados de modo a formar um cubo simétrico. Tanto os travesseiros como os colchões tinham de estar recobertos por uma colcha de xadrez azul e branco. Os quadrados do xadrez eram minúsculos, mas tinham de estar dispostos de maneira a ficarem perfeitamente alinhados, tanto no sentido horizontal, como no vertical. Para dificultar as coisas, não só cada cama tinha de estar impecavelmente alinhada com as demais. Alguns SS verificavam-no com metros e níveis para  se assegurarem de que as camas tinham sido bem montadas e de que os retângulos estavam perfeitos; outros, ainda, disparavam tiros raspando nos colchões para ver se estavam, de fato, absolutamente nivelados.”


Uma tecnologia perfeita, cujo desenlace não ocorreu com o fim da guerra. Em suas nuances menos perversas continua destruindo esperanças e individualidades para que os poderes instalados – em suas diversas colorações – possam persistir controlando as pessoas. Uma tecnologia que procura roubar às pessoas, muito antes que a morte o faça, sua individualidade. A individualidade, o homem à subtraiu à espécie. Suprema conquista, nem mesmo o caráter aparentemente irreversível da morte a derruba. Escreve Morin que “o caráter categórico universal, da afirmação  da imortalidade é da mesma craveira do caráter categórico, universal, da afirmação da própria individualidade.” Porém, roubar a individualidade em morte não atende à economia do poder. Roubá-la em vida, investi-la no Estado sim, atenderia aos propósitos de disciplina e controle sobre os exemplares individualizados da massa amorfa. Que os horrores da more se atenuem pela afirmação do grupo social. “Quando a sociedade se afirma em detrimento do indivíduo, quando, simultaneamente, o indivíduo sente esta afirmação mais verídica do que a da sua própria individualidade, a recusa e o horror da morte dissipam-se, deixam-se vencer.” Investimento que atende ao seu paroxismo nos estados de guerra, quando, então, a presença maciça do Estado prevalece sem resistências sobre o indivíduo.
Para o poder é fundamental que os indivíduos possa ser controlados. Mas os homens não podem ser controlados como indivíduos. Daí o deslocamento das individualidades para as sociedades, para as cidades, como se ambas as instâncias nunca pudessem estabelecer uma harmonia de convívio. Mas para perder sua individualidade os homens precisam abdicar de suas conquistas, precisam retornar à condição primitiva de espécie. Os homens, em nome do Estado se tornam vazios de fantasias,  pois, que assim, como se dizia na sua voz rouca o monstro Gmork, o temível monstro da História sem fim foi encarregado pelo Nada de perseguir e matar o herói Atreiú, o único que poderia salvar Fantasia, e, com ela, a esperança dos homens. O poder que estava por trás do Nada pretendia que todos os habitantes de Fantasia fossem tragados por ele, para servi-lo. Como dizia Gmork com a sua última conversa com Atreiú, quando este, finalmente, fosse levado pelo Nada:


“Quem sabe para que vai servir. É possível, que, com a sua ajuda, se possam convencer os homens a comprar o que não necessitam, a odiar o que não conhecem, a acreditar no que os domina ou a duvidar do que os podia salvar. Por seu intermédio, pequenos seres de Fantasia, fazem-se grandes negócios no mundo dos homens, desencadeiam-se guerras, fundam-se impérios...”


Métodos de confinamento e engorda – aplicáveis, indiferentemente a porcos, vacas, galinhas e homens. Atesta-o a metodologia do traseiro, a mais cruel e mais frequente nas nossas escolas. Crianças confinadas em salas e carteiras, mais imóveis que os bichos que já mencionei. Como se, para aprender, fosse necessário o contato permanente do traseiro com a carteira. Mas, assim como os nazistas o sabiam, o sistema escola também sabe. O corpo tem que se conformar aos métodos de controle, caso contrário, as ideias não podem ser controladas. O fascismo, que nunca desapareceu, sabe que ideias e ações corporais são a mesma coisa. E, se se quiser controlar as ideias, basta controlar os corpos. Quem tem o controle do corpo tem o controle das ideias e dos sentimentos. Quem fica confinado em salas apertadas, sentado imóvel em carteiras militarmente alinhadas por milhares de horas durante boa parte da vida também aprende a ficar sentado nas cadeiras, de onde, na maioria das vezes nunca vai conseguir se erguer. Se a Educação  - em geral – e a Educação física não sabem, o poder sabe, e muito bem, como educar a motricidade das crianças, como educr-lhes o caráter e as ideias.
É que o corpo imita o poder em seus contornos mais sutis. E aí, o corpo acaba a ser como o poder: imóvel, conservador, rígido, tenso, asséptico e frio. Como seriam as ideias num caso assim? – Do mesmo feitio, sem dúvida alguma. Nunca nenhuma educação e nenhuma educação frísica foram tão eficientes como aquelas praticadas pelos nazistas durante a ascensão de Adolf Hitler e nem tão bem recebidas pelos “pensadores brasileiros” da educação – em especial, a do corpo -  da época, como ambas o foram. Homens rígidos de têmpera e coragem, formados por uma educação e uma ginástica rígidas , tanto na Alemanha, quanto aqui, para a eugenia da raça.
E em especial, esta ginástica e esta educação  rígidas, hipercorrigidas chamadas por nossos “pensadores” de hoje biologizantes demais e jamais foram tão politizantes – no sentido alienante do termo – com o que, aliás, os poderes se deleitam. A mais eficaz economia do corpo, uma tecnologia mais que perfeita a serviço do autoritarismo. A economia de gestos nos acampamentos dos prisioneiros era de tal eficiência que mantinha o controle com um mínino de esforços e de gastos. A racionalização dos gestos durante as aulas de Educação Física – só para exemplificar – para os jovens alemães garantia a mão-de-obra cívica para uma sociedade que pretendia o desaparecimento do indivíduo, a morte das esperanças, o fim da fantasia, enfim, o desfecho da História sem fim...
Não é por acaso que a Educação Física não tem qualquer importância nas escolas. Não incomodará e não será incomodada enquanto mantiver como paradigma o estereótipo militar  ou o palavrório inócuo e alérgico a práticas. Mas seria fortemente incomodada se aprendesse a praticar a liberdade dos corpos. Não terá paz durante longo tempo enquanto denunciar o universo pedagógico como um universo do fracasso dos propósitos explícitos, mas, apenas dos explícitos. Melhor dizendo, os problemas da rejeição da Educação Física agravar-se-ão quando puder mostrar que as pessoas vão à escola mas não aprendem. Quase ninguém aprende nada de significativo, apesar de tanto tempo na escola. E as pessoas não aprendem aquilo que está declarado nos programas pedagógicos, inclusive, porque aquele não se dirige a pessoas, especialmente, quando se trata de crianças. É um ensino que se dirige às crianças ideais, e, nunca, às crianças reais. Que criança pode ser somente, polida, imóvel, dócil, inteligente, bondosa, silenciosa... enfim, dotada de todas as virtudes que compõem o modelo ideal de aluno? Criança ri, corre, chuta, faz barulho, perturba. É perversa, bondosa, amorosa e maldosa. Que pedagogia se dirige a esta criança? Que pedagogia investe na criança que fantasia, que esperneia, que corre, que ri, que grita?... Talvez, só uma pedagogia que ainda está nascendo, em parte, na Educação Física. Ou uma pedagogia que não dê nomes a disciplinas, mas que admite que as pessoas aprendem como são: criança como criança, adulto como adulto, velho como velho.
Parece uma loucura, mas é a lógica do sistema escolar: crianças não podem raciocinar se movendo; não podem refletir jogando; não podem pensar fantasiando. Elas só aprendem se forem passivas e submissas, de preferência, a tudo. Então, para que se tornem inteligentes e produtivas, precisam ser confinadas e engordadas. Esta sim, é a economia que o sistema escolar faz de tudo para perpetuar.
Os nazistas sabiam. Bentham, com o seu panóptico, também o sabia. Gmork, o lobo monstruoso de Fantasia, trabalhava em nome do poder para executar os desígnios do Nada. Em todos os casos era preciso imobilizar, desesperançar, enrijecer, esterilizar. Em todos os casos era absolutamente necessário que todos os símbolos fossem substituídos pelos símbolos do poder. Todos os tiranos, todos os autoritários sempre souberam como fazer para controlar as pessoas e manter o poder: apenas disciplinar seus corpos, fazendo com que simbolizem tão somente o nada. A educação em geral e a educação física em particular sempre também fizeram isto. Também se colocaram a serviço do Nada, também trabalharam e trabalham para a morte de Fantasia, também constroem seus panópticos. E o fazem com exemplar eficiência, como, inclusive, a sala de aula tão bem lhes ensinou. Aprendeu a vender a ilusão do gesto na aula de educação física e da teoria nas aulas convencionais, o que, aparentemente, no caso da educação física, pode exercer a motricidade, mas nunca aprendeu – ou ensina, é claro – a receita da liberdade. Nunca aprendeu a compreender a motricidade ou a complexidade humana. Nunca aprendeu humanizar a palavra, o contexto, o gesto.
Há algum tempo a motricidade humana vem ganhando terreno nos textos, nas ideias, nos projetos, nas aulas de Educação Física. Teve um divulgador importante: o professor Manoel Sérgio Vieira da Cunha, da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa, que esteve, no Brasil, durante dois anos, quase sempre polemizando sobre o tema. Como quase sempre acontece com as ideias novas, as suas foram recebidas com muita desconfiança, chocou-se demais com as ideias esclerosadas, mesmo dos mais jovens. Mas não importa. Ficaram por aqui. Parece que no Brasil, apesar de tantas misérias, o campo ainda é fértil para as novas ideias. Mas não sou eu quem deve defender as ideias do Professor Manoel Sérgio; ele o faz melhor do que eu. Sem ser o inventor da ideia, ele a defende e divulgou. Ela estava por aí, procurando quem bem a acolhesse.Felizmente, caiu no nosso terreno, no terreno da corporeidade, no terreno da atividade motora.
A motricidade humana rejeita a ideia de smplificação. Acolhe a ideia de complexidade. Rejeita a ideia de determinação, de previsibilidade, de irreversibilidade. Acolhe a ideia de caos, de imprevisibilidade, de incerteza. Do ponto de vista da motricidade, nunca poderíamos nos referir a pernas que correm, mas a pessoas correndo. Quem corre não é a perna ou o pé, mas, um ser humano, num determinado terreno, de acordo com as suas motivações, sob certas condições climáticas, rodeado de cultura, de noções políticas, econômicas e sociais de um certo momento histórico. Não é apenas um pé a chutar uma bola, mas um sujeito histórico, num contexto cultural específico, etc. E ainda, do ponto de vista da motricidade humana, não poderíamos fixar nossa atenção simplesmente, no sujeito que chuta, muito menos apenas na bola chutada. Nossa atenção terá que se fixar na ação de chutar, que não pertence nem ao sujeito e nem à bola. Antes, é um acontecimento original, pertencente ao momento particular do encontro ente o sujeito motivado para chutar e a bola chutável. Se voltarmos nossa atenção para a ação de chutar que só existe naquele momento histórico, estaremos nos dirigindo, simultaneamente, para o sujeito e para a bola. A palavra chave neste caso é – interação. Quando investigamos o fenômenos da motricidade humana, nós descrevemos a face cultural do gesto, descrevemos o visível que não vem desacompanhado, mas antes, traz consigo tudo aquilo que não se vê. Eu mesmo, recentemente, tive ocasião de afirmar:

“Pela motricidade o homem se afirma no mundo, realiza-se, dá vazão à vida. Pela motricidade ele dá registro à sua existência e cumpre a sua condição fundamental de existir. A motricidade é o sistema vivo do mais complexo de todos os sistemas: o corpo humano... é o discurso da cultura humana se processando.”

Acho que já posso voltar a falar dos “Métodos de Confinamento e Engorda...” Pode ser muito interessante confinar uma vaca num estábulo, a comida à frente de seu pescoço, dosada, medida para o máximo aproveitamento de leite e carne.  Tudo vale desde que ela – a vaca – se torne mais econômica. Até música clássica tem sido tentada com sucesso. Quem diria, Mozart nos estábulos, a fazer jorrar leite das gordas tetas das vacas!
As vacas ainda têm Mozart; as crianças, nem isso.Ficam confinadas em espaços menores do que os estábulos, obrigadas a realizar, individualmente, questões coletivas. O problema é o mesmo para todas que devem resolvê-lo individualmente. Bem no tempo em que a escola diz que a criança está entrando na sociedade dos homens. As vacas não compreendem o que ocorre: as crianças poderiam. As vacas têm a motivá-las, no mínimo, os instintos; as crianças,o prêmio ou o castigo das notas. Mas, assim como as vacas só engordam se não puderem realizar muitos movimentos, também as crianças só “engordarão” se não puderem se mexer. Mas engordar o quê? Ora, engordar o comportamento esperado. Engordar a incompreensão, a servilidade, a indecisão, engordar a alienação, a desesperança a inabilidade. Tornam-se mais econômicas. Em pouco tempo apresentam imensa economia para o poder, à medida em que servem com mais eficiência. Os cidadãos tornam-se gordos co conhecimento escolar.
Há histórias que, de tanto serem repetidas, cansam. Criança crítica, criativa, autônoma, crianças da vanguarda da educação e da Educação Física, já que falamos de bichos, é conversa para boi dormir. A criança é crítica e criativa quando pode viver como criança. Criança que parece adulto é de uma estupidez sem par. Ora, a crítica da criança deve se referir ao contexto de criança que ela vive. Deve se referir ao seu contexto lúdico, seu universo de fantasias, de habilidades motoras, a seu cotidiano, enfim, ao mundo que está ao seu alcance. A tarefa básica de crianças muito pequenas é aprender a simbolizar. Nós, humanos, se não aprendermos a simbolizar, estamos perdidos. O mundo não cabe dentro de nós, a não ser como símbolos. Dessa forma, todas as coisas podem ficar dentro de nós. E quanto mais necessárias, mais precisam ser simbolizadas: pai, mãe, irmãos, amigos, família, casa, relações, sentimentos, objetos. Tarefa que não é automática;  antes, precisa de intermediários – o jogo – para ser mais preciso. A realidade é tratada no jogo para que vire símbolo. Do simples brinquedinho motor de colocar o dedo ou o paninho na boca o jogo mais complexo de criação de regras da atividade coletiva.
Pode-se afirmar, portanto, que correr atrás de uma bola não é um movimento qualquer. É uma expressão humana, simbólica, cultural, expressão de uma pessoa e de uma bola, de uma situação, uma manifestação de pensamentos e sentimentos, postos na criança tanto quanto no objeto que ela manipula. O gesto humano não é um gesto qualquer: é este gesto impregnado de símbolos, de história, de cultura que temos que nomear muito particularmente, e, por isso mesmo, estou chamando de motricidade humana. Poderia até dispensar o termo, por se tratar de uma redundância, mas, uso-o enfaticamente, o ser que manifesta o gesto.
A criança não tem que ser confinada e engordada. Não temos, nós, professores, que trabalhar para essa economia do poder que se quer perpetuar. É possível, sim, educar sem confinar. É mentira que criança só aprende se ficar imóvel. O fato concreto é que nós não sabemos ensinar de outro jeito. O fato é que não sabemos ensinar ao sujeito complexo. Acostumamo-nos a ideias de coisas simplificadas demais, ordenadas, determinadas, quantificadas. A lição tão bem aprendida por nós – do panóptico, dos campos de prisioneiros, da servidão voluntária terá que ser esquecida. Nem fazendeiros, nem guardas da torre, nem militares fascistas ou servos do rei. Simplesmente, professores é o que somos.
Quero encerrar com o relato de uma investigação que realizei recentemente, por ocasião do meu doutoramento. Entre muitas analises realizadas destaco a que se refere às ações individuais de crianças diante de necessidades de atuação coletiva.
Este estudo, como outro que realizei, dá-me a impressão repetida de que caímos no conto do vigário. Uma grande ilusão vendida por um preço muito alto. Vendemos a nossa própria alma. Somos comparados com tudo o que somos: corpo e alma, porque tudo é a mesma coisa. No entanto, é possível que a máxima realização individual venha ocorrer a partir da máxima realização coletiva, ao contrário do que vemos, e lemos, e ouvimos todos os dias em todos os canais de que o poder dispõe. Tenho visto essa harmonia entre o indivíduo e o grupo social ocorrer quando, em algumas ocasiões, as crianças brincam. Tanto que pude descrevê-la e comentá-la nesse estudo que mencionei.
A tarefa solicitada às crianças era para passarem correndo sob uma corda em movimento circular, movida por duas pessoas, como na brincadeira de pular corda. O êxito consistia em correr transversalmente à corda, sob ela, sem ser  bloqueado pela corda. Nessa minha investigação descrevi a ordem utilizada pelas crianças durante as passagens: se passavam sozinhas, se passavam em grupos de duas ou mais crianças. Como não havia uma ordem preestabelecida por ninguém, as crianças podiam ou não passar a cada batida da corda. Ou seja, podiam ou não passar nenhuma, como podiam passar duas juntas, e até, as 26 ao mesmo tempo, que era o total das crianças do grupo. Resumindo, como a disposição das crianças de um dos lados da corda não constituía uma ordem prévia adequada para realizar a brincadeira, propus-me investigar a constituição da ordem que permitiu que a brincadeira se desenvolvesse.
O dado mais surpreendente do trabalho é que houve somente quatro passagens, durante as 35 ocorridas, em que nenhuma das crianças passou sob a corda. A isso demos o nome de “batidas vazias”. Também houve um número muito reduzido de passagens individuais. Na primeira parte da brincadeira (12 passagens), predominaram passagens em grupos de duas crianças, na segunda parte (12 passagens), predominaram as passagens em grupos de três; na última parte (11 passagens), predominaram os grupos de quatro crianças. Ou seja, sem dúvidas, aumentou, consideravelmente, a organização coletiva do grupo.
Nota-se, pelas descrições que, dado o pequeno número de “batidas vazias”, havia bastante empenho das crianças na brincadeira. Isto é, elas queriam realizar a atividade. Realizá-la servia evitar a frustração. Porém, nota-se também, no início da brincadeira era necessário refrear muito o impulso de correr sob a corda. A falta de habilidade e de organização iniciais tornaria impossível a realização da brincadeira caso todas as crianças tentassem passar ao mesmo tempo sob a corda. Mas vejamos: numa situação desafiadora como essa, a realização consiste em passar correndo sob a corda sem ser bloqueado por esta. A máxima realização consistiria em passar em todas as batidas, isto é, em todas as oportunidades. Não passar resulta em frustração. Passar uma criança sozinha significa essa criança conseguir uma única realização a cada 24 batidas (já que eram 25 crianças). Passando em duplas, esta frustração diminuiria, pois poderia passar, provavelmente, após 12 batidas. Em trios, como na segunda parte da brincadeira, uma realização a cada oito batidas. Na última parte da brincadeira, passando em grupos de quatro, ocorreu uma realização a cada seis batidas. E, se a organização do grupo aumentasse, a realização, igualmente, aumentaria, diminuindo a frustração até a realização máxima, quando todos passassem ao mesmo tempo, se a habilidade das crianças tornasse, é lógico, isso possível.
Após 35 batidas, no entanto, a brincadeira terminou. A própria ordem criada continha, em si, o gérmen da desordem. Não foi possível às crianças aumentar seu poder de realização. As tentativas de passar mais vezes, passando em grupos de cinco ou mais crianças bateu de frente com a falta de habilidade para correr, para se organizar, etc. Os limites do coletivo estavam nos limites do indivíduo e vice-versa.
Para esse caso particular é visível que a realização individual foi aumentando à medida em que também foi aumentando a ordem coletiva. Ou seja, à medida em que a motricidade de cada criança foi se ajustando ao grupo social. O que houve foi uma socialização da motricidade de cada criança, uma acomodação ao grupo, não importa  se consciente ou inconscientemente. O que importa, no momento é verificar que o desejo de realização individual de cada criança, se se choca com o desejo de todas as outras é frustrado pelo grupo, mas, quanto menos tanto mais o grupo se organiza. E essa organização é uma ordem dada a sentimentos de todas as pessoas do grupo, é o uso social das habilidades individuais. Indivíduo-e-coletivo completam-se, sem que a identidade do indivíduo  seja morta em nome do coletivo.
Esse é um pequeno e restrito exemplo, mas não tanto que não chame a atenção para o fato muito significativo de que a Educação Física tem o que fazer na escola. Desde, é óbvio, que os professores tenham clareza do que se passa no meio do jogo.
Crianças não confinadas também aprendem. Crianças não confinadas precisam de professores e de orientação. Outras aprendizagens, outros professores, outras orientações.

Bibliografia Consultada:

BENTHAM, J. Coleção  Os pensadores. Abril Cultural: São Paulo, 1 979.
LA BOÉTIE, E de. Discurso da servidão voluntária. Brasiliense: São Paulo, 1 986.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Vozes: Petrópolis, 1 984.
BETELHEIM, B. O coração informado. Paz & Terra: Rio de Janeiro, 1 985.
MORIN, Edgard. O homem e a morte. Europa/América: Lisboa, 1 985.
ENDE M. A história sem fim. Martins Fontes/Presença: S. Paulo, 1 985.
SÉRGIO, Manoel. Para uma epistomologia da motricidade humana. Compendium: Lisboa, 1 987.
FREIRE, João Batista. De corpo e alma: o discurso da motricidade. Summus: São Paulo, 1 991.
_________. Investigações feitas com René Brenzinkoffer e Ricardo Machado Leite de Barros – com catalogação de dados para dissertação de mestrado na área da motricidade humana, 1 976/1 978.


Hi HHHHHH